“Recitatif” – Toni Morrison
O único conto publicado pela Nobel da Literatura de 1993 retrata o crescimento de duas meninas que se conheceram no orfanato de St. Bonny’s, depois de ambas terem sido retiradas às suas mães. Desde o início que sabemos que as meninas são diferentes, por uma ser branca e uma ser negra numa América onde isso implica uma série de considerações a nível identitário. No entanto, Morrison omite a informação sobre a cor de pele de cada uma das meninas. Em consequência, Recitatif é um puzzle, um labirinto de pistas contraditórias que faz do leitor o próprio alvo da experiência desta peça de literatura experimental.
À medida que crescem, Twyla e Roberta encontram-se esporadicamente em episódios que nos permitem tirar algumas ilações sobre a dinâmica de relacionamento entre pessoas de raças diferentes, nos Estados Unidos, por volta dos anos 50 do século passado: um encontro num hostel onde Twyla trabalha, no meio de um protesto contra a dessegregação nas escolas e num supermercado para as pessoas de classe alta.
No final de contas, Twyla e Roberta definem-se por aquilo que é comum ao ser humano: a busca pelo sentido de identidade, a permanência da memória e o desejo de libertação em relação a um passado traumatizante. Afinal, quem espancou a Maggie?
“Easy, I thought. Everything is so easy for them. They think they own the world.”
A forma como Toni Morrison consegue atingir tanto numa narrativa tão curta é genial. Ao remover da caracterização das personagens algo que, à época, seria extremamente importante para a sua definição enquanto indivíduos, Morrison deixa um espaço aberto que completa com apontamentos e situações que põem o leitor na berma da ambiguidade. Por essa razão, esta é uma experiência de leitura que leva o leitor a aprender mais sobre si próprio do que sobre as personagens cuja história de vida vai desvendando. Consoante a visão estereotipada do leitor da dualidade brancos/negros, a narrativa assume contornos consideravelmente diferentes. Assim, esta é uma história importantíssima para tomarmos consciência dos nossos próprios preconceitos raciais.
Para alcançar este efeito de ambiguidade, Morrison teve de adotar um registo de linguagem que não deixasse transparecer a herança linguística e cultural de nenhuma das personagens. Com efeito, o equilíbrio entre um registo de indivíduo americano branco e um de raízes afro-americanas é essencial para o funcionamento desta narrativa, e é alcançado na perfeição.
Esta edição de Recitatif (Knopf, 2022) é acompanhada por uma introdução de Zadie Smith que, tendo optado por lê-la depois de ler o texto principal, me apresentou o conto sob uma série de novas luzes. Aconselho vivamente os leitores a que se dediquem a leituras complementares a esta, nomeadamente artigos de análise da obra, já que põem em destaque aspetos que podem passar despercebidos e aprofundam o sentido de genialidade da bibliografia de Morrison.
Em suma, apesar de ainda não existir uma tradução portuguesa deste conto, penso que esta é uma leitura obrigatória para uma melhor compreensão do mundo que nos rodeia, do passado de que resultamos e daquilo que, inconscientemente, somos.