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H-orizontes

H-orizontes

18
Jan24

“O Judeu” – Bernardo Santareno

Helena

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O Judeu é um texto dramático sobre a vida de António José da Silva, um descendente de judeus que se vê encurralado pelo ódio irracional de todos os que o rodeiam, no período áureo da Inquisição portuguesa. Preso e torturado pelos inquisidores duas vezes, assim como Lourença, a sua mãe, e Leonor, a sua esposa, António é um exemplo da crença na importância da liberdade de pensar e representar criticamente um regime que se sabe corrupto e arcaico. No coração de uma sociedade em que os espiões pululavam em cada esquina, António dedicar-se-á à produção de peças teatrais satíricas que lhe trarão o reconhecimento do público e, até, a atenção do rei.

Este, por seu lado, estará entretido na preparação dos casamentos dos infantes e nas visitas às suas numerosas amantes. A magnanimidade do monarca, apreciador da visão mordaz de António, não será suficiente para livrar o acusado de judaísmo da fogueira em que morrerá como mártir pela justiça que não conseguiu encontrar nos cárceres da Inquisição.

Esta peça insere-se no ciclo épico das produções de Bernardo Santareno e, como tal, privilegia o comentário político e social em detrimento da valorização de uma génese trágica que encontramos nas obras do seu ciclo trágico. Tendo lido três peças pertencentes a este último ciclo, penso que o prefiro ao épico. O Judeu não se deu a uma leitura tão rápida e cativante como O Pecado de João Agonia ou O Crime da Aldeia Velha, em muito devido à sua forma e estilo. O facto de muitas das réplicas serem muito longas, em linguagem adaptada à época, e de conteúdo mais complexo abranda o ritmo da leitura, Isto é o oposto do que acontecia nas réplicas perspicazes e concentradas dos outros textos que li.

Ainda assim, é justo que este seja um dos textos mais célebres de Santareno, pela importância dos temas principais da peça e pela inteligência envolvida nos mecanismos da sua construção. Entretecidas nas réplicas das personagens encontram-se excertos de documentos reais, referentes ao caso particular que serve de base a esta peça e à globalidade do funcionamento da Inquisição em Portugal. Para além disso, O Judeu é também uma espécie de “matrioska” teatral, já que são reproduzidos excertos das peças levadas a palco por António José da Silva, textos críticos dentro de um texto crítico, alertando o leitor para o perigo em que ele próprio incorreria se a sua leitura de O Judeu tivesse lugar no período retratado.

A minha experiência de leitura foi curiosa, já que me tenho dedicado a ler outras obras, de não-ficção, acerca da Inquisição. Senti uma diferença substancial entre o impacto que teve em mim a descrição não ficcionada dos acontecimentos e o que teve a leitura de uma história (semi)ficcionada. Apesar de a ficção ocultar ou apenas roçar aspetos muito problemáticos e chocantes que a não-ficção explora em profundidade, é a vivacidade da primeira que torna, paradoxalmente, tudo mais real, mais impactante, mais revoltante, mais próximo de quem lê.

Achei, ainda, relevante a representação da exceção ao comportamento fanático da maioria das personagens por parte do 1º Inquisidor. Num período obscuro que é mais confortável para a contemporaneidade não revisitar, o 1º Inquisidor relembra-nos de que, mesmo sendo fruto do seu tempo, havia quem reconhecesse a falta de sentido, de ética e de humanidade envolvidos nos processos em tudo corrompidos da máquina inquisitorial.

Em suma, O Judeu é uma peça fundamental na paisagem da dramaturgia portuguesa cuja leitura é, no geral, uma experiência agradável que recomendo. Fica em espera a minha vontade crescente de o ver representado em palco, dada a importância da configuração do cenário em algumas cenas que, acredito, teriam um impacto ainda maior quando corporizadas.

 

15
Dez23

“O Crime da Aldeia Velha” – Bernardo Santareno

Helena

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Esta peça de teatro baseia-se em factos reais que ocorreram na aldeia de Soalhães, em 1934. Uma jovem, acusada de práticas de bruxaria, foi queimada viva pela população local, razão pela qual a aldeia ficou conhecida como “Terra do Mata e Queima”.

Em “O Crime da Aldeia Velha”, acompanhamos o desenrolar do drama de Joana, uma rapariga bela que atrai os amores dos rapazes da aldeia e se diverte a manipulá-los. A desconfiança dos habitantes da terra, de que já antes fora alvo a sua mãe, é exacerbada pela morte de dois jovens, numa luta decorrente das provocações de Joana. Depois da morte de um bebé que se seguiu ao seu contacto com Joana e da alteração drástica de comportamentos de mais um rapaz apaixonado por ela, os burburinhos acerca do demónio que a teria possuído sobem de tom. A própria Joana começa a acreditar que traz o diabo no corpo, ainda que o pároco local insista que não é, de todo, disso que se trata. Mas a população vê esta benevolência como a prova de que também o pároco foi vítima do demónio na rapariga e decide tomar as medidas necessárias: exorcizar o diabo em Joana através do fogo purificador.

Bernardo Santareno triunfa, mais uma vez, na representação microscópica da vida em povoações pequenas no início do século passado. A expressividade dos diálogos, numa linguagem que em tudo se assemelha ao registo oral aldeão, deixa transparecer a moldura mental das personagens que povoam a peça – uma moldura mental de desconfiança, intriguismo e profunda religiosidade.

Contrariamente ao que acontece com a maioria das peças de teatro que já tive oportunidade de ler, não senti que “O Crime da Aldeia Velha” precisasse de ser visto em palco para ser plenamente apreciado. As didascálias são muito claras e expressivas, de modo que este texto dramático pode ler-se quase como se se tratasse de um texto narrativo.

Em suma, esta é uma peça de leitura fácil e cativante, uma adaptação bem conseguida de acontecimentos reais e uma representação perturbadora das consequências mais radicais da ignorância e da superstição.

 

22
Out23

“O Pecado de João Agonia” – Bernardo Santareno

Helena

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Em meados dos anos sessenta do século passado, a família Agonia aguarda em casa o regresso de João, filho que partira para Lisboa para cumprir o serviço militar obrigatório. João regressa, mas vem diferente: mais sombrio e fechado em si próprio, sente repúdio pela capital que deixou e deseja recolher-se à pacatez em que cresceu.

Em casa, Fernando, irmão mais velho, tenciona agendar um casamento com Maria Giesta, e Teresa, a irmã mais nova, tenta ignorar o interesse que Tóino, irmão de Maria Giesta, tem vindo a demonstrar por ela, rapariga quase demasiado crescida para continuar solteira. Em vez de partilhar e contribuir para esta alegria, João Agonia virá perturbá-la: a sua afeição crescente por Tóino e as notícias de Lisboa trazidas por Manuel alteram profundamente o ambiente da casa e a perceção que as personagens têm umas das outras.

No canto da sala, os agouros da avó Rosa recrudescem intermitentemente…

Esta peça de teatro, de leitura obrigatória para o meu terceiro semestre de Literatura Portuguesa, surpreendeu-me pela positiva. Nunca tinha lido peças da autoria de Bernardo Santareno e a verosimilhança que ele confere às réplicas das personagens contribui grandemente para uma boa experiência de leitura (já que ela nunca se equipara ao assistir a uma representação ao vivo).

O Pecado de João Agonia pode ser visto como uma obra problemática nos tempos que correm, tendo em conta alguma da linguagem a que se recorre relativamente ao tratamento de membros da comunidade LGBTQ+. Contudo, inserindo a peça no seu tempo e tendo em atenção o facto de se tratar de uma obra que tem como centro a injustiça e a irracionalidade na discriminação e maltrato dos homossexuais, penso que é perfeitamente legítimo.

Mesmo sabendo que se tratava de uma tragédia inserida no século XX, não estava à espera de um final tão drástico, mas que, simultaneamente, fez sentido. O Pecado de João Agonia é um grito de alerta que nos chega de há meio século e nos confronta cruamente com comportamentos que mudaram menos do que seria necessário.

01
Out23

“Waiting For Godot” – Samuel Beckett

Helena

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Waiting for Godot, do Nobel da Literatura Samuel Beckett, é uma peça de teatro que põe no centro do palco Gogo e Didi, dois amigos que estão presos a um compromisso de contornos bastante vagos: um encontro com Godot, uma entidade desconhecida que lhes trará algo que também desconhecem. As únicas personagens que interrompem a monotonia da sua espera, ainda que temporariamente, são Pozzo e Lucky, uma estranha dupla de senhor e servo.

Mesmo quando lhes surge no espírito a ideia de abandonar a paisagem inóspita onde se encontram, Gogo e Didi não se movem. Não podem ir embora, Godot ainda não chegou. Enquanto esperam, o par de amigos tenta preencher o vácuo com hipóteses e reflexões sobre a vida nas circunstâncias hipotéticas de fim da humanidade em que se encontram.

“We always find something, eh Didi, to give us the impression we exist?”

Waiting for Godot é uma peça que se inclui no conceito de Teatro do Absurdo, produções teatrais que partem de ideias existencialistas para expressar a falta de propósito da vida humana.  Assim sendo, não é um texto cujo significado é entregue linear e diretamente ao leitor. Por detrás dos diálogos absurdos entre as personagens, vive o reconhecimento da inutilidade de tentar dar sentido à vida, a valorização da amizade e a prova da incapacidade da linguagem para expressar toda a complexidade da experiência humana. Não é uma peça muito entusiasmante, já que quase nada acontece, mas isso faz parte do seu objetivo: colocar sob os holofotes o que resta dos Homens quando a única coisa que têm é a esperança de encontrar o representante de uma metafísica que os mantém à tona.

Mais do que um par de amigos agarrados à esperança da vinda de um tal Godot, esta é uma peça sobre a esperança da humanidade nalguma espécie de libertação, uma salvação, um resgate milagroso da estagnação agonizante da vida. É uma peça sobre aquilo que nos move, e também sobre o que nos faz ficar.

30
Set23

“Finding Me” – Viola Davis

Helena

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Neste memoir, Viola Davis abre as portas da sua vida aos leitores, convidando-os a descobrir o passado horrível que esconde o seu sorriso, o sorriso de uma atriz de renome internacional, vencedora de um Emmy, um Grammy, um Oscar, um BAFTA, um Globo de Ouro… uma mulher bem-sucedida.

Nada poderia preparar o leitor desconhecedor das origens de Viola para a história que ela põe a descoberto em Finding Me. O retrato de uma infância na pobreza extrema, numa casa mergulhada na violência e sem as condições mais básicas de higiene é chocante. A pavimentar a estrada para o sucesso, Viola encontrou o abuso, a discriminação, a depressão, a realidade de viver da representação nos EUA, enquanto mulher negra em condições económicas precárias.

Englobando toda a vida de Viola até à altura em que este memoir foi publicado, Finding Me é um livro sobre resiliência, persistência e sofrimento, sobre as reviravoltas da vida e sobre o que pode acontecer quando a sorte, o trabalho e a esperança se alinham.

“The fear factor was minimized for me. I already knew fear. My dreams were bigger than the fear.”

Apesar de já ter visto a entrevista da Oprah a Viola Davis da Netflix, na qual ela se refere com algum detalhe à sua infância difícil, o relato que a atriz faz em Finding Me dos episódios de precariedade, trauma e abuso que viveu deixou-me sem palavras. A jornada de superação e posterior sucesso de Viola é inspiradora e um exemplo pelo qual eu considero muito importante a publicação deste livro. Para além disso, enquanto alguém que teve a sorte de não se debater com as mesmas circunstâncias terríveis na infância, penso que é uma leitura que contribui grandemente para o aprofundamento do sentido de empatia do leitor, pela facilidade com que nos permite aceder ao lugar do outro.

Finding Me provocou em mim a mesma sensação de incredulidade de quando vou a encontros com escritores ou vejo entrevistas a artistas na Internet: atrás da obra de arte, está um humano, uma pessoa como eu que tem uma história, sonhos por concretizar, batalhas para combater.  Viola, uma menina pobre, discriminada, rotulada, traumatizada, cresceu para se tornar numa mulher de sucesso, uma atriz fenomenal com um passado inimaginável.

É bastante óbvio que o trabalho de base de Viola não é, ao contrário do que acontece, por exemplo, com Trevor Noah, escrever. Em consequência, falta a este memoir a destreza narrativa com que o humorista consegue abrilhantar as histórias do Born a Crime. Ainda assim, Finding Me é um livro muito acessível, sem deixar de ser duro e incomodativo. Este livro teve duas consequências imediatas em mim: fez-me sentir extremamente grata por tudo aquilo que tenho, mesmo nos dias menos bons, que, em comparação com a infância de Viola, são muito bons; e fez-me querer ver todos os filmes e séries em que Viola entra, em maratona.

05
Out19

"Frei Luís de Sousa" - Almeida Garret

Helena

Em pleno período de domínio filipino tem lugar a história de Madalena e Manuel, um casal que se juntou após a morte de D. João de Portugal, marido de Madalena, em Alcácer-Quibir.

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Manuel e Madalena têm uma filha, Maria, muito perspicaz e inteligente, prematuramente marcada pelas rosáceas nas faces que indiciam a tuberculose. Certo dia, chega ao casarão de Almada a notícia da vinda dos governadores de Lisboa, atacada pela peste, e da sua tenção de se hospedarem no palacete. Decidido a contrariar as vontades daqueles que mantinham o reino nas garras dos espanhóis, Manuel incendeia o seu casarão e foge com a família para o palácio que fora de D. João de Portugal. Uma vez no palácio, Madalena mergulha em receios, superstições e maus augúrios, numa inquietação constante e relação à estadia naquela residência. E é numa sexta feira, quando é deixada em casa na companhia de Jorge, seu cunhado, que Madalena se depara com o culminar dos seus presságios, quando um mendigo de longas barbas a visita para lhe anunciar que D. João de Portugal ainda vive…

Faço a este livro uma crítica predominantemente negativa, por várias razões. Em primeiro lugar, é um texto dramático, género que não aprecio muito. Seguidamente, não o achei muito interessante nem cativante, quer pelo enredo em si como pelos diálogos entre as personagens (que, claro, são a estrutura da obra). A história é muito simples e previsível, pelo que, mesmo que haja reviravoltas na ação, não causam um efeito de surpresa tão grande. Apesar de ser acessível, o final deixou-me um pouco confusa. Os pontos positivos são a construção frásica simples e o vocabulário de fácil compreensão. Para se entender bem este livro, é preciso ter, também, um bom conhecimento do contexto da época.

Independentemente disso, é uma obra de leitura obrigatória para o 11º ano.

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