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H-orizontes

H-orizontes

26
Dez22

“La Carne” – Rosa Montero

Helena

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Soledad Alegre é uma sexagenária que nunca conseguiu viver uma relação amorosa saudável e estável em toda a sua vida. O seu último relacionamento, com um homem casado, acabara recentemente e, como se isso não fosse suficiente, o seu ex-amante fá-la saber que comprou bilhetes para ir com a esposa à ópera ver Tristão e Isolda - a peça que servira de banda sonora à sua relação com Soledad, e a que ela também decidira ir. Determinada a contrariar a posição de superioridade de Mario e as expectativas sociais face às relações de uma mulher da sua idade, Soledad decide reservar a companhia de um prostituto através de um site. Adam, de trinta e dois anos, é o homem que ela escolhe para seu acompanhante – jovem, alto e elegante, causa surpresa entre as pessoas que, na ópera, a reconhecem.  Acabada a peça, Soledad prepara-se para se despedir de Adam, quando o dono de uma loja na rua em que passavam chega à porta ensanguentado, seguido do criminoso que sai a correr depois de o ter esfaqueado. A reação de Adam é instantânea e, em poucos segundos, o assaltante está no chão e o rapaz esmurra-o enraivecidamente, até à chegada da polícia.

Apesar de ser imprudente levar o prostituto à sua própria casa, Soledad convida-o a subir. Ainda que as suas intenções fossem simplesmente tratar as sequelas da luta, a solidão de Soledad e a sensualidade de Adam conduzem-na irresistivelmente para uma noite com o jovem escort. Passado o serão e paga a tarifa, tudo estaria resolvido se a figura de Adam não pairasse ainda sobre os pensamentos de Soledad. A essa noite segue-se outra, e depois outras mais, numa cadeia de inércia e carência que, não tarda, começará a levá-la por vias obscuras.

“De modo que a ella lo único que le servía para olvidarse de la Parca, y del desperdicio de la mezquina vida, era el amor.”

Como Rosa Montero faz questão de pedir aos leitores no apêndice de agradecimentos, vou tentar expressar a minha opinião em relação a este livro sem revelar os traços da narrativa que estragariam a experiência de uma primeira leitura. Assim, posso dizer que este é um livro sobre a solidão, o desespero e a inexorabilidade do envelhecimento.

Na figura de Soledad encontramos uma mulher cuja necessidade de amar sempre se sobrepôs à qualidade e à longevidade das suas relações, uma mulher que se vê enrodilhada na intensidade assoberbante dos seus sentimentos. Como se não bastasse que todos os seus esforços nas suas relações lhe saíssem gorados, Soledad depara-se agora com o drama do tempo que passa sem que se dê conta. Será este beijo o último? Será esta noite a última que passa acompanhada? Será este o seu último amor? Soledad ziguezagueia entre questões a que é impossível responder. As páginas de La carne estão impregnadas da exasperação de uma mulher vencida pela solidão uma e outra vez, e por isso uma e outra vez de regresso a uma relação duvidosa pela sensação fugaz de ainda ser querida.

Apesar de não ter gostado da forma como Rosa Montero se infiltra neste romance enquanto personagem muito semelhante à sua existência real e do nível exaustivo a que leva o emprego de factos curiosos que lhe é característico, adorei este livro. Se estão à procura de uma narrativa que vos apanha de surpresa e vos deixa colados às páginas do início ao fim, La carne é o livro certo para vocês.

“La vida es un pequeño espacio de luz entre dos nostalgias: la de lo que aún no has vivido y la de lo que ya no vas a poder vivir.”

27
Ago22

“Instruções para salvar o mundo” – Rosa Montero

Helena

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“Instruções para salvar o mundo”, escrito por Rosa Montero, foi editado em Portugal, em 2008, pela Porto Editora.

Entre o emaranhado de pessoas que todos os dias andam de um lado para o outro na grande cidade de Madrid, contam-se Matías, um taxista viúvo, Daniel, um enfermeiro frustrado, Cerebro, uma velha cientista, e Fatma, uma prostituta feliz. Apesar das suas colossais diferenças, todos eles acabarão por cruzar e marcar as vidas uns dos outros.

Matías deixara de acreditar na possibilidade de ser feliz a partir do momento em que perdera Rita, a sua mulher, vítima de um cancro raro e fatal. Preso num mundo cinzento que teimava em trazer-lhe recordações da sua mulher, Matías refugiava-se no bar Oasis durante as horas que não passava ao volante do seu táxi. Quando, inesperadamente, é abordado por Cerebro, uma idosa respeitável e sombria que passava as noites a diluir as recordações no álcool, reencontra o seu prazer de aprender sobre a vida e sobre o mundo. Cerebro fala ao taxista sobre a tendência do universo para a ordem e a simetria, sobre o impacto de ações isoladas em escalas inimagináveis e sobre a probabilidade de a uma coincidência se seguirem outras.

Paralelamente à vida de Matías, desenrola-se a de Daniel Ortíz, um enfermeiro que perdera a paixão pela sua profissão há muitos anos e cujo casamento apenas se mantinha por preguiça e comodismo. Enterrado na inércia e na passividade sobre as quais alicerçara a sua personalidade, Daniel encontra refúgio no Second Life, uma plataforma virtual que oferece aos seus utilizadores a possibilidade de criarem uma vida completamente diferente da sua, num universo independente povoado por todas as outras pessoas às quais a vida real não bastava. O quotidiano de Daniel é tão monótono e entediante que não faz ideia de que, algures nas suas consultas nas urgências do San Felipe, tenha diagnosticado incorretamente aquilo que se viria a revelar um cancro raro e fatal, o desmoronamento da alegria e dos sonhos de um taxista a quem só resta o desejo de vingança e as conversas num bar.

Enquanto tudo isto se desenrola, os noticiários transmitem os mais recentes assassinatos perpetrados pelo “assassino da felicidade”, cuja identidade se desconhece e que elege como vítimas os idosos vulneráveis de quem já ninguém se lembra.

“Ya sabes, somos polvo de estrellas.”

Rosa Montero volta a construir um romance fundado na revolta e na exasperação desenterradas pelo luto. Por ter vivido uma situação semelhante àquela por que Matías passa nesta narrativa, a autora consegue concretizar um retrato fiel do processo de perda, do desespero face à inexorabilidade da doença e na necessidade irracional de encontrar alguém para culpar, para encarnar a causa de todo o sofrimento. Apesar de ser notório que Rosa tenha encontrado uma zona de conforto na narração do luto, da morte e do cancro, o que torna as suas obras algo repetitivas, é inegável que o faz de um modo credível e cativante.

Este livro orbita em volta de pessoas banais com vidas banais. Afinal, nem todas as histórias que valem a pena ser contadas precisam de ter protagonistas excecionais. Nesta narrativa, nenhuma personagem é perfeita, nem particularmente especial. É uma narrativa sobre vidas medíocres e círculos viciosos, sem que isso impeça que também transmita uma mensagem de esperança, a certeza da possibilidade de, a qualquer momento e por qualquer motivo, se mudar de vida.

Em resumo, Instruções para salvar o mundo é um romance acerca da desesperada necessidade humana de ser feliz e da resiliência inimaginável de que os Homens são dotados quando se trata de sobreviver.

30
Ago21

“La buena suerte” – Rosa Montero

Helena

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A bordo do comboio que faz a ligação entre Madrid e Málaga, viaja um homem misterioso e taciturno, com os olhos presos ao ecrã do seu computador. Este homem é Pablo Hernando Berrocal, um célebre arquiteto que tem uma conferência agendada na cidade andaluza. Contudo, o conferencista não chega a cumprir o seu compromisso. Assim que chega ao seu destino, Pablo apressa-se a pedir informações sobre os transportes que o poderiam levar até à penúltima paragem do comboio em que viajara: a minúscula e decrépita cidade de Pozonegro.

Do dia para a noite e sem razão aparente, Pablo Hernando compra e instala-se por um tempo indeterminado num apartamento horrível de um prédio de Pozonegro. É neste prédio que o arquiteto conhece Raluca, uma mulher de origem romena que pintava quadros de cavalos e fora outrora dada como louca. Alegre e solícita, Raluca rapidamente passa a ocupar um lugar muito importante na nova vida de Pablo: é ela quem o ajuda a fazer compras para a casa, quem lhe arranja um trabalho como repositor no supermercado Goliat e quem o ajuda a dissipar as sensações de estar sozinho, de não ser confiável e de não saber amar.

Assim, num refúgio recôndito da paisagem espanhola, Pablo depara-se com uma oportunidade para começar de novo, olhando em frente ao mesmo tempo que é obrigado a lidar com os fantasmas do seu passado e com as sombras destes no seu presente. No final de contas, todos os moradores de Pozonegro têm segredos: o arquiteto famoso, a pintora amalucada, a gótica bizarra, o octogenário com problemas respiratórios ou a vizinha do andar de cima cuja filha Pablo consegue ouvir gritar…

“La alegría es un hábito.”

Depois de me ter apaixonado pela escrita de Rosa Montero com A ridícula ideia de não voltar a ver-te, decidi continuar a explorar as suas obras, desta vez o seu livro mais recente. A sinopse prometia uma boa história, e o livro não desiludiu.

Num registo muito terra-a-terra, Montero insere-nos diretamente na realidade de uma povoação diminuta e esquecida e põe-nos frente a frente com a versão mais autêntica dos seus habitantes. Cada personagem é dotada de uma personalidade forte e única, e a autora consegue congregar, num espaço tão exíguo, uma variedade espantosa de tipos de caráter. Como consequência disso, este livro não é apenas uma história de autossuperação e regeneração, mas também uma análise da variedade de naturezas e intenções humanas.

Tal como tinha feito em A ridícula ideia de não voltar a ver-te, a autora elege a morte como um dos principais eixos da narrativa. O efeito da morte de Clara na esfera psicológica de Pablo, seu marido, é fiel e comovedoramente explorado, algo simultaneamente enriquecedor para a narrativa e uma provável estratégia catártica para a escritora, cujo próprio marido faleceu há alguns anos.

Este livro fascinou-me particularmente pela maneira como a ação se desenrola em dois sentidos: a sucessão presente de acontecimentos na nova vida de Pablo Hernando e o contínuo desvelar de segredos do passado das personagens. O passado, o presente e o futuro, o irreparável, a mudança e a esperança interligam-se neste romance como tendo saído diretamente da teia complexa do tempo, realistas, inalienáveis.

Assim, este romance é não só uma história sobre recomeços, como também uma história sobre o amor, a violência, o luto, a cobiça, a interajuda, a beleza da diferença e o eterno conflito entre o Bem e o Mal nos corações humanos.

“la belleza ayuda a curar el dolor del mundo.”

Em conclusão, La buena suerte emergiu das águas turvas do período pandémico em que foi escrito para trazer aos seus leitores uma nova esperança: mesmo aos momentos mais difíceis podem seguir-se novos tempos de felicidade.

“el único siempre que de verdad existe es hoy”

18
Set20

"A ridícula ideia de não voltar a ver-te" – Rosa Montero

Helena

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Quem foi Manya Sklodowska? A maior parte de nós não associaria este nome à célebre mulher que foi a primeira a receber um Prémio Nobel, a primeira a licenciar-se em Ciências na Sorbonne, a primeira a doutorar-se em Ciências em França, a primeira a ter uma cátedra, … a responsável, juntamente com o seu marido, pela descoberta do polónio e do rádio e pelo desenvolvimento dos estudos sobre a radioatividade.

Manya Sklodowska, que adotou, depois de casar, o nome Marie Curie, ultrapassou, na infância, a morte da mãe, quebrou os preconceitos sociais, dedicou-se ao trabalho que a apaixonava com todas as suas forças e tornou-se um ícone, não só na História da Ciência, como também para as mulheres que se deparam com um caminho pejado de obstáculos até ao seu objetivo.

Este livro dá-nos a descobrir a vida fascinante da cientista polaca enquanto mulher robusta, persistente e austera, e põe-nos em contacto com o seu lado mais sensível e humano, uma vez que se baseia num documento muito especial: o diário de Curie durante o primeiro ano após a morte de Pierre Curie, o seu marido. “Mas este não é um livro sobre a morte” e, como tal, Rosa Montero não se limita a realçar as emoções da cientista após a perda do seu cônjuge e a estabelecer um paralelo com a sua própria experiência de luto. A ridícula ideia de não voltar a ver-te engloba, também, reflexões sobre temas variados, como a evolução do papel da mulher na sociedade, a intimidade de um casal e a ambição, o que o enriquece infinitamente.

A experiência de leitura  deste livro pode ser sintetizada pela célebre expressão “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”. Recebi-o com uma certa estranheza, por não se tratar de um romance “comum”, mas sim de uma mistura peculiar de biografia, autobiografia e depósito de reflexões. Contudo, à medida que avançava na leitura, este novo registo cativava-me cada vez mais.

Aquilo que me pareceu mais bizarro neste livro foi a utilização de hashtags por parte da autora, para sinalizar temas ou conceitos fulcrais das suas reflexões. Esta peculiaridade, que, inicialmente, me pareceu um pouco descabida, revelou-se uma estratégia inteligente para permitir aos leitores localizar as reflexões com base num índice de hashtags, no fim do romance.

A ridícula ideia de não voltar a ver-te conjuga a brutalidade das emoções que transparecem no diário de Marie Curie, uma visão diferente em relação à morte e ao luto (“na nossa sociedade a morte é vista como uma anomalia e o luto, como uma patologia”), um discurso feminista e uma forte intertextualidade, com referências que vão desde Fernando Pessoa a Georges Braque.

“Quando nos libertamos da ilusão da nossa própria importância, tudo mete menos medo.”

"Afinal, os vivos não passavam de projetos de cadáveres."

“Para viver temos de narrar-nos; somos um produto da nossa imaginação”

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