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H-orizontes

H-orizontes

28
Mar24

“A Letra Escarlate” – Nathaliel Hawthorne

Helena

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Na Boston puritana do século XVII, uma mulher sobe ao cadafalso com uma criança nos braços. Sobre o seu peito, sobressai a letra A bordada a vermelho. Hester Pryne, a mulher no cadafalso, foi condenada a usar a letra escarlate no seio e, em consequência, ao opróbrio da sociedade, por ter cometido o pecado do adultério. Recusando-se a revelar o homem que teria sido cúmplice da sua perversão, Hester entrega-se a uma vida isolada dos olhares de desdém dos seus vizinhos.

À situação difícil que o pecado de Hester a tinha votado junta-se a chegada do seu marido, que ficara em Inglaterra quando ela partira para o Novo Mundo e que ela já julgava morto. Desonrado pelo adultério de Hester, o seu marido adota outro nome (Roger Chillingworth), oculta o seu casamento e faz com ela uma chantagem emocional – se ela revelasse a sua verdadeira identidade, ele revelaria a do seu cúmplice pecador.

Inicia-se, assim, uma vida de tormento para Hester Pryne: malvista pelos seus pares, questionada pela sua filha acerca da letra que traz ao peito e obrigada a testemunhar a angústia crescente do homem que com ela pecou – motivada, grandemente, pelo pérfido Roger Chillingworth...

“Não há estrada por onde saiamos deste triste labirinto.”

Este é um livro sobre o pecado, em particular sobre a demonização de que são vítimas aqueles acusados de pecar. Hester Pryne, pecadora por se ter deixado levar por uma afeição externa ao seu casamento, vê-se obrigada a passar o resto da sua vida isolada num casebre afastado do centro de Boston, sem se relacionar com os restantes habitantes e condenando à mesma vida triste a filha que resultou da união adúltera. Sabemos que Hester é uma mulher dotada, hábil na costura, humilde e sempre disponível para apoiar aqueles que precisam. Apesar disso, o seu caráter é demonizado pelos habitantes conservadores da aldeia, puritanos vindos da Europa para construir uma sociedade adequada aos seus valores do outro lado do Atlântico. Assim, A Letra Escarlate é não só um relato pungente da vida de uma pecadora no seio de uma comunidade de religiosidade extrema, como uma crítica à mentalidade puritana contraditória que fez da vida de Hester Pryne uma estrada de solidão e desconsolo. Saídos do Reino Unido em busca de um ambiente mais tolerante para poderem praticar a sua fé, os puritanos acabaram por se tornar uma comunidade intolerante, sendo Hester uma vítima da rigidez dos códigos morais e religiosos por que se regiam.

A tradução desta edição d’A Letra Escarlate (Relógio d’Água, 2017) foi feita por Fernando Pessoa, e não tenho nada a apontar nela. Apesar de não ter lido a versão original deste livro, já li alguns contos de Hawthorne em inglês, pelo que me parece que a cadência da narração e o leque de vocabulário escolhidos coincidirão com aquilo que o autor pretendia concretizar na versão inglesa. Tendo gostado do enredo e apreciado a qualidade da tradução, foi o estilo da narração que acabou por não me cativar e que fez com que a minha impressão geral do livro não fosse a mais positiva. Ainda não encontrei o livro de um autor romântico que me vai fazer começar a deleitar-me com este género.

Posto isto, enquanto clássico das literaturas americana e mundial, A Letra Escarlate é um livro que vale a pena acrescentar à biblioteca pessoal de qualquer um. É especialmente interessante enquanto leitura complementar d’As bruxas de Salem, de Miller, cuja ação decorre no mesmo período, no coração de uma povoação dominada pelo mesmo espartilho puritano que serve de pilar a este romance.

14
Jan24

“A Inquisição – O Reino do Medo” – Toby Green

Helena

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Em A Inquisição – O Reino do Medo, Toby Green abarca os três séculos de atividade da Santa Inquisição na Península Ibérica e nos seus territórios coloniais em África, na América e na Ásia. Através da explicação das áreas de influência da Inquisição ao longo do tempo, juntamente com a exemplificação de casos particulares de perseguição ou perversão, Green propõe-se deixar para o futuro um lembrete do que o domínio do medo e da paranoia pode causar numa sociedade. Este fenómeno de fachada religiosa, cujos objetivos eram, na verdade, políticos e económicos, utilizava retóricas de fácil desconstrução para apelar a comportamentos diametralmente opostos àqueles que são pregados pela própria religião: a discriminação, a desconfiança e o ódio pelo próximo.

O foco primário de Green são os acontecimentos relativos à Inquisição Espanhola, já que se fundou primeiro e foi abolida mais tarde do que a portuguesa, e que registou um maior leque de alvos de perseguição do que a portuguesa. Judeus, cristãos-novos, feiticeiras, sodomitas, bígamos, mouriscos e maçons são alguns dos rótulos atribuídos às vítimas de uma necessidade coletiva de culpabilização externa e de união face a um inimigo comum, numa Espanha de território recém-unificado.

Ao longo de 300 páginas, assistimos à queda em cadeia de gerações no precipício do preconceito e do conservadorismo, aos resultados pouco ortodoxos da repressão de instintos básicos da população e à evolução e aprofundamento de uma mentalidade que levou, em última instância, ao derrubamento dos impérios ibéricos e da própria instituição.

“A atitude genérica em relação ao acusado era resumida por Eymeric ao declarar a morte na câmara de tortura uma forma de bruxaria rancorosa destinada a frustrar o inquisidor”

Este livro cumpriu com aquilo que eu esperava dele. Pude não só aprofundar os meus conhecimentos acerca do processo de instalação da Inquisição em Portugal e em Espanha e das motivações socioeconómicas da perseguição aos judeus, mas também aprender que os acusados mortos ou fugidos eram queimados em efígie, que existiam casos bizarros de beatas e exorcistas, e que não era preciso uma justificação fundamentada para todo um novo bode expiatório começar a ser perseguido (fossem mouriscos, bígamos, feiticeiras ou maçons).

Mais do que um livro que descreve a forma como as raízes da Inquisição grassaram em solo peninsular enquanto instituição persecutória de minorias em nome da pureza, segurança ou sacralidade de um povo, este é um livro sobre a sede de poder. Desde a afirmação do poder através do medo irracional e permanente aos abusos de poder por parte de inquisidores, familiares da Inquisição e confessores, este corruptor da sociedade encontrava-se na base do estabelecimento de relações sociais em solo ibérico e colonial. O que me pareceu mais interessante e de maior relevo em relação a este fenómeno foi a forma como o comportamento dos judeus fugidos para as colónias se alterava no seu destino: chegados a uma terra em que os alvos da perseguição eram outros (os escravos e os indígenas), os anteriores oprimidos assumiam rapidamente o papel de opressores. A crueza de caráter que atravessa as histórias compiladas neste volume põem à prova a fé do leitor na bondade humana.

Os únicos aspetos negativos que tenho a apontar a este livro são o facto de partir de um projeto tão ambicioso que impede que se siga uma linha cronológica sem avanços e recuos, e a qualidade da tradução, que apresenta algumas gralhas e erros, questões que podem interferir com uma leitura fluida.

Em suma, apesar dos ziguezagues da linha temporal (necessários para abarcar todas as facetas da instituição que o autor se propôs explorar), este é um livro que recomendaria aos interessados por História europeia, particularmente pelo período (demasiado longo) em que a Inquisição vigorou na Península Ibérica. Não é uma leitura reconfortante, mas apenas sendo confrontados com a realidade mais desagradável do nosso passado podemos compreender o presente e preparar o futuro.

16
Ago23

"Purple Hibiscus" - Chimamanda Adichie

Helena

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Numa Nigéria pós-colonial, política e economicamente instável, a família de Kambili vive num contexto de abundância e privilégio que está longe de ser a norma. Apesar de dispor de condições e oportunidades em muito superiores à média, a vida de Kambili aproxima-se mais de um pesadelo exasperante do que de um sonho próspero. O seu pai, Eugene, é fervorosamente religioso, e a imagem de um homem caridoso e bom que passa aos habitantes de Enugu contrasta fortemente com a agressividade com que educa os seus filhos. Contudo, mesmo que sufocada pelo rigor com que o pai determina o que pode ou não acontecer no dia a dia dos seus filhos, Kambili não tem as ferramentas para reconhecer na sua educação as marcas da repressão.

No entanto, uma visita à casa da tia Ifeoma, que vive em condições muito mais precárias, enquanto viúva com três filhos, trará a Kambili uma nova perceção da família e do mundo, da prática da religião e da necessidade legítima de rir. 

"It was hard to turn my head, but I did it and looked away.”

Enquanto romance de lançamento de Chimamanda Adichie, este livro é fenomenal. Esta é uma leitura desconfortável, claustrofóbica e revoltante, e é fantástica por isso mesmo. Apesar de nunca mencionar termos como “opressão”, Adichie transmite ao leitor a sensação vívida de viver sob o jugo de uma autoridade absoluta e abusiva.

Todas as personagens deste romance tiveram, de uma forma ou de outra, impacto em mim. Kambili, em primeiro lugar, pela inocência infantil com que venerava o pai, uma figura de amor e de sucesso, cujos comportamentos incompreensíveis eram suportados por uma consciência profundamente interiorizada da sua autoridade incontestável. Jaja, pela sua coragem em fazer frente ao pai, rompendo a tradição familiar com as suas próprias mãos, e por assumir as culpas que nem sempre eram dele, juntamente com as suas consequências. A mãe, enquanto mulher presa nos ciclos da violência doméstica, vítima de um marido violento e de uma sociedade mesquinha, cuja vida se desenrolava num beco sem saída. A tia Ifeoma, pelo seu comportamento empoderado, pela sua generosidade e pela sua integridade na defesa dos valores que eram mais importantes para ela – a verdade, a tolerância e a felicidade dos seus. Amaka, pelo seu modelamento enquanto personagem redonda, e os restantes primos pela resiliência alegre com que lidavam com a escassez que assombrava o seu dia a dia. O padre Amadi, pela sua perceção moderada de uma religião que devia ser acolhedora pelos seus valores, e não assustadora pelo seu rigor. Até o pai de Kambili, por boas e más razões: uma figura paterna que traumatizava os filhos como meio de transferência do seu próprio trauma, preso entre os deveres de denunciador do regime e de ajuda aos mais necessitados e os de educar duas crianças no seio de uma igreja cuja ordem dava sentido à sua vida.

Apesar de o tom geral de Purple Hibiscus ser de repressão e insegurança, esta é uma história de crescimento e libertação. Através do contacto com a sua família paterna, Kambili encontra a sua identidade, começa a questionar criticamente o ambiente em que foi criada e torna-se dona dos seus próprios objetivos. Assim, um romance de opressão e extremismo torna-se num romance de superação e de esperança.

Tenho um fascínio particular por livros que me levam a descobrir formas de viver e de pensar que me são alheias, e este livro é uma autêntica porta para as vivências da população nigeriana pós-colonial, tanto das franjas mais abastadas como das camadas mais pobres. Adichie faz um excelente trabalho de representação cultural ao incluir, por exemplo, excertos de conversas em igbo, a língua local, ou ao referir os nomes das comidas que pontuavam a alimentação quotidiana.

Comprei este livro enquanto esperava pela chegada de um comboio atrasado, e ainda bem. Tenho a certeza de que vai parar ao topo dos meus favoritos de 2023.

30
Out22

“A casa do pó” – Fernando Campos

Helena

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Partindo do Itinerário de Terra Santa, publicado no século XVI, Fernando Campos reconstrói e ficciona a história de Frei Pantaleão de Aveiro, cujas origens incertas são aproveitadas para preencher as lacunas de um relato de viagem que sobreviveu aos séculos.

João, noviço franciscano de vocação frágil, é um jovem sem passado nem origens. Apesar disso, aceita ser ordenado e embarca numa viagem em busca da fé, da verdade e de si próprio. Durante a sua jornada até à Terra Santa, confissões pouco claras, encontros inesperados e assaltos perigosos trazem ao de cima a explicação do seu nome franciscano (Pantaleão de Aveiro), as revelações que ambicionava… um passado que já não pode reaver.

Apesar de as minhas experiências com romances históricos terem sido, até à data, bastante positivas, este não correspondeu às minhas expectativas. O cerne da intriga perde-se nas longas descrições do narrador sobre as terras por onde passa, os costumes com que se depara e os acontecimentos no seio da igreja católica. Embora a inclusão destas observações seja compreensível, por respeito ao Itinerário que despoletou o conceito deste livro, penso que podia ter sido feito de um modo menos pesado e aborrecido, articulando-as com o enredo em vez de as condensar em parágrafos massudos.

Consequentemente, aquilo que podia ter sido um romance cativante sobre a descendência oculta da realeza portuguesa e as peripécias de uma jornada repleta de perigos acabou por se revelar um manual para os aficionados do catolicismo e de retratos bastante exaustivos das paisagens e matizes culturais que compunham a bacia mediterrânica do século XVI.

Assim, tratando-se de um livro que apenas me despertou interesse no início e no final, A casa do pó não se encontra entre os livros que recomendaria aos meus amigos leitores.

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