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H-orizontes

H-orizontes

30
Abr24

“História de um homem comum” – George Orwell

Helena

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George Bowling, o protagonista do História de um homem comum, também publicado sob o título Emergir para respirar, é um homem de quarenta anos que vive nos subúrbios de Londres com a mulher e os filhos, e que ganha a vida trabalhando numa agência de seguros. Saturado da rotina e da sua família barulhenta, Bowling decide usar o pouco dinheiro que conseguiu guardar longe da vista da mulher numa viagem curta e revitalizadora a Lower Binfield, a sua querida terra natal.

Através de uma analepse, ficamos a conhecer um pouco da infância de Bowling, antes da Primeira Guerra Mundial, e dos episódios a que regressa com mais felicidade nas suas recordações (principalmente, dos que se relacionam com a sua paixão pela pesca). Essa é a Lower Binflield a que Bowling deseja regressar, e assim escapar ao mundo industrializado, regimentado e à beira de uma inevitável Segunda Guerra Mundial, que o rodeia em Londres. No entanto, quando finalmente se decide a levar a cabo os seus planos, a Lower Binfield que encontra não é aquela que lhe provia a sua memória de há vinte e cinco anos…

“Pensando bem, neste momento não deve haver, em toda a Inglaterra, uma única janela de onde alguém esteja a disparar uma metralhadora.

Mas, e daqui a cinco anos? Ou dois anos? Ou um ano?”

Apesar de, geralmente, preferir a não-ficção de Orwell às suas obras de ficção, História de um homem comum foi uma leitura muito agradável. Para além de ser mais fácil para o leitor embrenhar-se nesta história do que no mundo distópico de 1984, Orwell triunfa invariavelmente na transmissão das suas convicções sociopolíticas através de personagens imaginárias. A indignação intermitente de George Bowling com o estado da sociedade em que vive, atenuada pela pesada inércia que prende os trabalhadores ao ganha-pão quotidiano, é uma manifestação de todos os George Bowlings que, apanhados numa conjuntura (inter)nacional pouco promissora, numa vida familiar aborrecida e num emprego mediano, veem no fascismo uma inevitabilidade que, embora incómoda, passará ao lado dos trabalhadores mais insignificantes do sistema. Bowling fica perturbado com a passagem de bombardeiros pelo céu de Londres, mas não partilha da urgência dos representantes dos movimentos antifascistas que dão palestras em reuniões de bairro. Nos pensamentos de Bowling que passam para a página encontramos não só uma recusa à resistência ativa, mas também uma pista para aquilo que Orwell sempre teve preocupação em sublinhar: o extremismo é tão nocivo quando tem origem à direita como à esquerda do espectro político.

À parte a leitura política que se possa fazer deste romance, A história de um homem comum espelha o modo de vida dos trabalhadores da sociedade capitalista em que ainda vivemos, presos no seu emprego desinteressante e maquinal e na sua família barulhenta e esgotante. É, ainda, um testemunho do desejo que reside em cada um de regressar ao espaço e ao tempo onde outrora se foi feliz, e da desilusão que acompanha a desgostosa tomada de consciência da desapiedada passagem do tempo.

Orwell escreveu o História de um homem comum em Marrocos, enquanto recuperava de ferimentos que sofrera na Guerra Civil Espanhola. Assim, percorre este livro um sentimento pessimista relativamente a conflitos armados, que devemos interpretar como um apelo à adoção de uma atitude oposta à de Bowling: baixar os braços face à aproximação da guerra não resolverá conflitos do presente nem do futuro. Apesar de ser uma obra menos célebre do autor, recomendo a leitura deste livro enquanto prova da sua versatilidade e da sua perspetiva sobre a condição humana, que viria a agudizar-se ao longo da sua carreira literária.

20
Jan23

“Livros e cigarros” – George Orwell

Helena

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Livros e cigarros é uma coletânea de ensaios da autoria de George Orwell, publicados entre 1936 e 1947.

No primeiro ensaio, que dá nome ao livro, Orwell reflete acerca dos hábitos de despesas da população britânica, a fim de rebater o argumento de que o número reduzido de leitores se deve ao elevado custo dos livros. Segundo as suas contas, o dinheiro gasto em itens como maços de tabaco seria suficiente para um indivíduo enriquecer o seu conhecimento literário.

Em Memórias de um livreiro e Confissões de um crítico literário, desmistifica-se o ideal embelezado da vida dos livreiros e críticos literários. Estes vivem de tal maneira assoberbados pelos livros que os rodeiam que acabam por perder o prazer da leitura, lidando diariamente com clientes com um interesse livresco artificial e com enormes quantidades de livros que nunca leriam de livre vontade.

A prevenção da literatura é um ensaio sobre a forma como a liberdade de expressão e de imprensa é posta em causa sistemática e quase impercetivelmente pelas camadas mais esclarecidas da população, num processo mascarado por ideais sociais e políticos que potenciam a distorção da realidade e a restrição das liberdades individuais em nome de um bem maior.

Em Um, dois, esquerda ou direita – O meu país, Orwell debate a importância real dos acontecimentos da Grande Guerra, comparando o impacto que tiveram na sua infância com a importância que lhes é conferida pela sociedade. Para além disso, explora-se a dualidade do conceito de patriotismo, comummente associado aos ideais conservadores quando, na verdade, a geração de Orwell o vivia quase apoliticamente, como resultado da sua educação.

Por fim, Assim morrem os pobres e Ah, ledos, ledos dias são, respetivamente, ensaios sobre a experiência do autor numa ala popular de um hospital francês e no colégio que frequentou antes de ingressar em Wellington, ambas marcantes e catalisadoras de reflexões acerca das condições dos serviços de saúde da primeira metade do século XX e do impacto do ambiente educativo na formação intelectual e emocional de uma criança.

“A liberdade do intelecto implica a liberdade de relatar o que vimos, ouvimos e sentimos, e não sermos obrigados a forjar factos e sentimentos imaginários. As tiradas conhecidas contra a «fuga à realidade», o «individualismo», o «romantismo» e assim por diante não passam de um artifício retórico, cujo fito é conferir um verniz de respeitabilidade à perversão da história.”

Livros e cigarros é, simultaneamente, uma reflexão ponderada sobre temas que continuam a marcar a atualidade e uma oportunidade única de conhecer melhor a vida de Orwell, relatada pelo próprio.

Numa altura em que todos os anos são dados a conhecer os escassos hábitos de leitura dos portugueses, é oportuno perguntarmo-nos acerca do porquê de assim ser. Numa época em que o paradoxo da tolerância está a chegar à liberdade de expressão e de imprensa, em que opiniões individuais são bombardeadas e acusadas de pecados exagerados com uma facilidade espantosa, é importante que cada um de nós tome parte na luta pela defesa das liberdades individuais. Num tempo em que os direitos das crianças e as repercussões psicológicas da infância são cada vez mais valorizadas, é de especial interesse a leitura deste relato das vivências de Orwell, uma criança humilde da classe média, numa escola elitista, castradora e contraditória nos seus valores básicos. Para alguém que conheceu a essência da educação inglesa através de romances de Eça de Queiroz, chocaram-me particularmente as condições em que as crianças viviam, ao mesmo tempo sujeitas à intransigência dos superiores, aos tabus sociais e à discriminação, e entregues a si mesmas e aos poucos recursos de que dispõem para enfrentar as adversidades.

Assim, Livros e cigarros é mais uma coletânea de ensaios imperdível, que espicaça o espírito crítico e a curiosidade de quem a lê.

14
Jan23

“De noite todo o sangue é negro” – David Diop

Helena

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Em plena Primeira Guerra Mundial, Alfa Ndiaye, um soldado senegalês, acompanha as últimas horas de vida do seu amigo Mademba, o seu “mais do que irmão”, com “o lado de dentro do lado de fora”, na terra de ninguém. Por três vezes, Mademba pede a Alfa que o mate e acabe com o seu sofrimento, mas por três vezes Alfa recusa. Só depois de o seu “mais do que irmão” morrer, com as entranhas espalhadas pelo chão, é que Alfa se apercebe do que poderia ter feito e não fez, e de como seguir as regras nem sempre é o mais adequado.

Desperto para a consciência da arbitrariedade da guerra e da total ausência de sentido nas ordens a que, durante tanto tempo, obedeceu, Alfa começa a descer numa espiral de sentimentos de culpa que lhe exigem uma redenção. Depois da morte de Mademba, Alfa começa a voltar para a trincheira depois dos outros soldados. Fica no campo de batalha, à espera de uma vítima, de um inimigo de olhos azuis que possa esventrar e, contrariamente ao que fez com Mademba, matar à sua primeira súplica. De volta à trincheira, trazia a espingarda e a mão do inimigo que matara, algo que os seus companheiros começaram por louvar, mas rapidamente começaram a associar a uma loucura que não era igual àquela que lhes era pedida quando se lançavam para o campo de batalha. E se o soldado senegalês for um feiticeiro? Corre o rumor de que ele é um demm, um devorador de almas…

“Creio ter compreendido que aquilo que está escrito lá em cima não é senão uma cópia daquilo que o homem escreve cá em baixo.”

Deparando-se com a abundância de cartas tocantes de soldados nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial nos arquivos europeus, David Diop lançou-se numa busca por cartas do mesmo género enviadas pelos soldados senegaleses na frente de batalha. Face à natureza puramente burocrática dos documentos que encontrou, Diop propôs-se produzir uma obra que colmatasse essa lacuna nos testemunhos de um povo. Assim nasceu De noite todo o sangue é negro, vencedor do Booker Prize de 2021.

Neste livro curto, mas intenso, David Diop apresenta uma face da guerra que raramente se vê retratada nos romances que a tomam como pano de fundo: o contingente negro de soldados vindos das colónias para combater ao lado das tropas dos seus colonizadores. Alfa e Mademba são dois dos senegaleses que abandonaram o seu país em direção a uma realidade completamente diferente, a uma trincheira onde era esperado que os soldados não pensassem, apenas obedecessem com uma loucura irracional ao apito que os enviava para o campo de batalha. Assim, Diop posiciona os holofotes sobre a estereótipo de que os soldados africanos eram vítimas, permanentemente associados à selvajaria e à brutalidade, com a finalidade de aterrorizarem o inimigo.

Apesar de um cenário de guerra ser uma realidade dura e dramática por si só, o autor adota uma perspetiva que lhe permite fazer uma análise da mente humana face a uma situação limite: a morte lenta de um “mais do que irmão”, prolongada pela incapacidade humana de pensar de forma objetiva numa situação tão inesperada e tão cruel. A partir daí, Diop usa as palavras de Alfa para explorar o paradoxo absurdo da guerra: era correto e desejável matar indiscriminadamente qualquer pessoa que ocupasse o lado oposto da terra de ninguém, mas mutilar as mãos do inimigo e recolhê-las como troféu era, nas palavras do comandante, contra as regras da “guerra civilizada”. Num universo em que o apelo à violência é arbitrário e o espírito crítico desencorajado, o sentimento de revolta de Alfa cresce e agrava a sua necessidade de vingança.

Para além de expressar claramente a quebra cultural que os soldados africanos sofriam na sua vinda para solo europeu, David Diop equacionou a questão de muitos deles não falarem mais do que a sua língua nativa. Assim, recorrendo a repetições e formulações típicas da língua indígena, alterou a cadência e o ritmo da narrativa para os aproximar aos do fluxo de consciência autêntico de Alfa Ndiaye. Esta escolha confere, ainda, um tom poético e místico ao texto traduzido.

Em conclusão, De noite todo o sangue é negro é um livro imperdível, violento, marcante, com um final surpreendente, e que, a meu ver, deve ser complementado pela visualização de entrevistas dadas pelo autor sobre a sua inspiração e processo de escrita.

“A guerra é isso: é quando Deus está atrasado em relação à música dos homens”

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