“Os livros que devoraram o meu pai” – Afonso Cruz
Depois de completar doze anos, Elias Bonfim descobre que o facto de ser órfão de pai não se deve a qualquer tipo de acidente que tenha ceifado a vida ao seu progenitor. O seu pai, Vivaldo Bonfim, já não está neste mundo, mas não de uma forma eufemística. Vivaldo migrou, antes de Elias nascer, para o mundo das histórias. Trabalhador no 7º Bairro Fiscal, Vivaldo escapava às burocracias entediantes através dos livros, uma forma de escapismo tão eficaz que acabou por engoli-lo – por devorá-lo.
No décimo segundo aniversário de Elias, a sua avó paterna oferece-lhe a chave para a biblioteca de Vivaldo. A partir daí, Elias lança-se numa busca fervilhante pelo seu pai através das narrativas que este tinha visitado através da leitura. Em paralelo com a sua vida escolar, partilhada com Bombo, o seu melhor amigo, e Beatriz, a sua grande paixão, os seus dias são marcados por viagens de mãos dadas com a literatura. Na Londres de Stevenson, na S. Petersburgo de Dostoievski, na ilha de Wells e no futuro distópico de Bradbury, Elias calcorreia as ruas e conversa com as personagens que tinham conhecido ou ouvido falar de Vivaldo Bonfim.
“Para uns, a raiz é a parte invisível que permite à árvore crescer. Para mim, a raiz é a parte invisível que a impede de voar como os pássaros. Na verdade, uma árvore é um pássaro falhado.”
Li Os livros que devoraram o meu pai, pela primeira vez, quando tinha catorze anos. Desde aí, muito cresceu a minha biblioteca pessoal e a minha enciclopédia mental. Não será, portanto, de estranhar que a minha experiência de leitura tenha sido substancialmente diferente, oito anos e toda uma educação literária depois. Agora que O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, Crime e Castigo, Fahrenheit 451 e A Ilha do Dr. Moreau fazem parte do meu repertório, pude perceber melhor o entretecer destes quatro romances numa trama deslumbrantemente coerente. Só agora abarco na totalidade o alcance da imaginação de Afonso Cruz no prolongamento da vida das personagens de cada um dos romances referidos após o seu fim original (Prendick, de A ilha de Dr. Moreau, terá sido internado num asilo por suspeitar ser ele próprio uma experiência de Moreau e estar a transformar-se num cão, por exemplo). Isto não quer, de todo, dizer que esta leitura tenha como requisito um conhecimento prévio dos livros acima mencionados. Pelo contrário, é uma excelente introdução a algumas obras da literatura canónica, graças ao fabuloso poder de síntese do autor.
As minhas impressões relativamente ao estilo de Afonso Cruz permaneceram, contudo, intocadas, já que reencontrei com o mesmo fascínio a forma original e singela como o autor projeta uma ideia ou uma imagem na página. Ainda que o registo desta narrativa reflita a simplicidade que o seu público-alvo requer, em nada isso faz com que Os livros que devoraram o meu pai seja uma leitura menos deleitosa do que, por exemplo, O Princípio de Karenina.
Percebi, principalmente, que, contrariamente àquilo que me ficara na memória desde a minha última leitura, este não é um livro sobre um menino que anda à procura do pai, nem sobre os problemas da sua vida amorosa, nem sobre a sua relação com o seu melhor amigo. Os livros que devoraram o meu pai é um livro sobre livros, sobre leitores, e sobre como livros e leitores são, em última instância, uma e a mesma matéria – afinal, todos somos feitos de histórias.