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H-orizontes

H-orizontes

23
Nov22

“O gesto que fazemos para proteger a cabeça” – Ana Margarida de Carvalho

Helena

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O gesto que fazemos para proteger a cabeça é uma história de vingança, de abandono e de condenação, cuja ação se concentra entre dois entardeceres.

A ação inicia-se com a jornada de regresso da personagem de Simão Neto à aldeia miserável de Nadepiori, um recanto agreste e ventoso do Alentejo. Enquanto Simão tenta regressar à sua aldeia sem perder a mercadoria de azeitonas recém-apanhadas que transporta, é atacado por uma matilha de cães selvagens a que sobrevive graças à intervenção de um estrangeiro misterioso que se faz acompanhar por um arpão – um homem do mar regressado à terra. Constantino, o sétimo filho de sete irmãos, regressava à sua terra natal depois de sete anos de exílio, determinado a aplicar justiça pelas próprias mãos.

Através de uma narrativa sinuosa, Ana Margarida de Carvalho cede-nos o lugar do observador da vida no interior do Alentejo em pleno Estado Novo, inserindo-nos numa teia de histórias de vida cujos desfechos não foram aqueles que eram esperados, e cuja base é a luta pela vida numa aldeia em que se vive à força, à mercê da liderança impiedosa do povo vizinho.

“porque só um humano entende tanta desumanidade”

O gesto que fazemos para proteger a cabeça é um livro complexo, com seis capítulos e seis pontos finais, sugerindo uma autêntica caminhada, a infinidade laboriosa de um carreiro de formigas, “encarrilhadas umas nas outras, sem parar, como as linhas de um livro”.

Não gostei tanto deste romance como do Que importa a fúria do mar, da mesma autora, uma vez que a sua ação é menos relevante para o seu valor do que a forma como a autora escolhe construir a narrativa – um puzzle de informações, por vezes quase veladas, que me fizeram precisar de o ler duas vezes.

Apesar disso, despertou-me um interesse particular a forma como a conversa entre as mulheres junto ao antigo depósito de água da aldeia revela que é nelas que reside a liderança das vidas em Nadepiori. São elas que estão por trás das decisões e acima das tramas da pobreza, e elas que mantêm as famílias vivas neste fim de mundo – um papel fundamental para a ordem universal das coisas, muito próxima da noção de Saramago de que “esta conversa é que segura o mundo na sua órbita, não fosse falarem as mulheres umas com as outras, já os homens teriam perdido o sentido da casa e do planeta” (SARAMAGO, José - Memorial do Convento. Lisboa: Editorial Caminho, 1982).

Chegados ao final do livro, podemos concluir que “o gesto que fazemos para proteger a cabeça” é, na verdade, uma reação involuntária face ao perigo, um reconhecimento instintivo da vulnerabilidade do Homem, preso num corpo sem saída e condenado à tirania das forças que o ultrapassam.

“a veces hay que caer con el fin de saber dónde estamos”

“uma viagem é sempre deixar para trás”

30
Out22

“A casa do pó” – Fernando Campos

Helena

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Partindo do Itinerário de Terra Santa, publicado no século XVI, Fernando Campos reconstrói e ficciona a história de Frei Pantaleão de Aveiro, cujas origens incertas são aproveitadas para preencher as lacunas de um relato de viagem que sobreviveu aos séculos.

João, noviço franciscano de vocação frágil, é um jovem sem passado nem origens. Apesar disso, aceita ser ordenado e embarca numa viagem em busca da fé, da verdade e de si próprio. Durante a sua jornada até à Terra Santa, confissões pouco claras, encontros inesperados e assaltos perigosos trazem ao de cima a explicação do seu nome franciscano (Pantaleão de Aveiro), as revelações que ambicionava… um passado que já não pode reaver.

Apesar de as minhas experiências com romances históricos terem sido, até à data, bastante positivas, este não correspondeu às minhas expectativas. O cerne da intriga perde-se nas longas descrições do narrador sobre as terras por onde passa, os costumes com que se depara e os acontecimentos no seio da igreja católica. Embora a inclusão destas observações seja compreensível, por respeito ao Itinerário que despoletou o conceito deste livro, penso que podia ter sido feito de um modo menos pesado e aborrecido, articulando-as com o enredo em vez de as condensar em parágrafos massudos.

Consequentemente, aquilo que podia ter sido um romance cativante sobre a descendência oculta da realeza portuguesa e as peripécias de uma jornada repleta de perigos acabou por se revelar um manual para os aficionados do catolicismo e de retratos bastante exaustivos das paisagens e matizes culturais que compunham a bacia mediterrânica do século XVI.

Assim, tratando-se de um livro que apenas me despertou interesse no início e no final, A casa do pó não se encontra entre os livros que recomendaria aos meus amigos leitores.

26
Mai22

“Manhã submersa” – Vergílio Ferreira

Helena

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António Lopes da Silva, que a família pobre confiou a uma educação religiosa, deixa a sua terra beirã para pisar pela primeira vez o seminário. Uma vez aí, António vê-se a braços com as saudades de casa, a rigidez dos mestres, a violência dos castigos e a crueldade azeda de alguns dos seus colegas. De facto, nada no seminário lhe agrada, porém encontra-se proibido de expressar o seu tormento: as cartas enviadas para casa são previamente lidas pelos padres e admitir a sua falta de vocação desgraçaria a sua família. Assim, António regressa ao seminário, uma e outra vez, resignando-se inocentemente ao seu destino e àquilo que os outros lhe apresentam como indubitável. Mas a fé não atinge todos os corações, e a dureza do seminário não consegue domar os espíritos de todos os adolescentes que descobrem que talvez o seu lugar não seja à frente de um altar.

“Pela primeira vez estremeci de medo até aos limites da vida, não tanto, porém, da fúria do comboio, como dessa coisa insondável e enorme, tão grande para mim, que era partir.”

Este foi o primeiro livro de Vergílio Ferreira que li. Manhã Submersa é um relato cru das vivências de uma criança encurralada entre a sua infância e aquilo que os adultos planearam para o seu futuro. Assim, a narrativa balança entre o desejo intenso de António de voltar para casa e renunciar a tudo o que esperam dele e a sua resignação em relação ao seu dever para com a sociedade e a sua família.

Numa autêntica viagem ao interior rural português do século passado, Manhã Submersa encerra um retrato vívido da dura realidade da época: mães pobres cediam os seus filhos ao cuidado de famílias abastadas, que os sustentavam até poderem ingressar num seminário. A carreira eclesiástica, muito valorizada pela opinião pública, era vista como uma fonte de estabilidade económica para muitas famílias que viviam na sempiterna precariedade. Como consequência, a vocação e a necessidade confundiam-se nos corredores dos seminários, santuários separados do mundo real por uma cortina de boa reputação que escondia os maus-tratos e abusos de que as crianças eram vítimas.

Apesar de conter algumas reflexões mais ou menos profundas ao longo da narração, este é um romance acessível e de leitura fácil. Vergílio Ferreira demonstra neste livro um profundo domínio da língua portuguesa, apetrechando as frases de artifícios linguísticos sem interromper a fluidez da narrativa nem fazer com que esta se torne aborrecida.

Em conclusão, Manhã Submersa é um universo em si próprio, um mundo de pobreza, de medo e de inocência que nos é dado a conhecer pelos olhos límpidos de uma criança com uma infância por viver.

09
Dez21

“Quantas Madrugadas Tem a Noite” – Ondjaki

Helena

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Em Quantas Madrugadas Tem a Noite, somos transportados para uma noite num bar de Luanda e transformamo-nos no interlocutor do narrador, um grande apreciador de cerveja e de estórias.

Embalados pelo narrador, acompanhamo-lo madrugada adentro, enquanto ele desenrola o novelo da história de Adolfo Dido. Este homem de nome caricato tinha falecido por causa da mordidela de uma carraça do grande cão que ocupava a maior sala da Kota das Abelhas (uma senhora que produzia mel e era grande amiga de Adolfo e dos seus companheiros). O sossego da morte, contudo, não chegou depressa ao corpo de Adolfo: as suas ex-mulheres, Dona Divina e Kibebucha, tentando lucrar com a mais recente proposta do governo de compensar monetariamente as viúvas de antigos combatentes, fingem que Adolfo era um antigo soldado e reclamam para si o subsídio do governo. Com o avançar do caso, as proporções obrigam a que se abra um processo judicial que envolverá também os amigos e familiares do falecido.

Quem receberá o dinheiro? Será a fraude de DonaDivina e Kibebucha descoberta? Porque será o cão da Kota das Abelhas tratado como um sultão?

Aquilo que começou por ser uma leitura destinada à familiarização com a variante angolana do português acabou por se revelar uma experiência divertida e diferente de todas as que já tinha tido.

A peculiaridade mais evidente deste livro é o facto de ele ter sido escrito num registo popular da língua angolana. Ondjaki eleva a linguagem de um homem num bar de Luanda a um estatuto de linguagem literária, recorrendo inclusivamente a palavras e expressões cujo significado só conseguimos descortinar se consultarmos o glossário no final do livro.

Para além de constituir uma história com uma intriga muito original e um final surpreendente, Quantas Madrugadas Tem a Noite também consegue transmitir a essência do povo angolano, numa época de guerra e de cheias. Narrado pela voz de uma personagem impregnada da simplicidade alegre do povo, este livro não só nos faz rir como também nos deixa a refletir acerca dos temas que o narrador abraça nos seus devaneios: a mudança, o peso do passado, o valor de todos os momentos, a morte e a quantidade de madrugadas que pode ter uma só noite.  

“Mas a fome é que manda no mundo, a par com o dinheiro”

“poesia é a beleza de te cuspirem em cima e inda te porem os lábios a rir.”

“a poesia não se faz, se vive; a poesia não se procura tipo diamante, se encontra tipo arco-íris: ou há ou não há – sorte e azar dos olhos no depois da chuva.”

07
Set21

A valorização das artes, enquanto dimensão fundamental de uma formação de base humanista

Helena

Quando pensamos no futuro da Humanidade, a nossa mente é imediatamente invadida pelas conquistas promissoras das ciências e da tecnologia: o desenvolvimento da inteligência artificial, a iminência da vida em Marte, a popularização dos carros elétricos. E a cultura? Na minha opinião, a valorização das artes está intimamente ligada ao progresso da Humanidade.

A expressão artística, desde a pintura à literatura, tem um impacto a longo prazo na formação humanista das gerações. A sua influência presente baseia-se na sua função crítica, através da chamada de atenção para os problemas atuais e para a consequente necessidade de alteração dos valores vigentes. Em "Os Maias", o autor expõe a sociedade lisboeta retrógrada, inculta e fundada em estruturas corruptas da Regeneração, pretendendo abalar os seus alicerces. Quanto ao impacto futuro, a arte é essencial para fomentar o espírito crítivo das gerações vindouras e evitar a repetição dos erros do passado. É nesse sentido que assistimos à proliferação de livros e filmes que abarcam temas como o racismo, a escravatura e o Holocausto.

Em segundo lugar, a valorização das tendências vanguardistas é fundamental para o progresso criativo e a alteração de mentalidades. O estímulo das vanguardas, pela sua ousadia na rutura dos cânones estabelecidos, equivaleria ao fomento da ambição e das capacidades de inovação das gerações no presente. É a sucessão de correntes artísticas, como o Romantismo, o Realismo e o Modernismo, juntamente com os princípios que as definem, que sustenta a metamorfose da matriz subjacente à sociedade ao longo dos séculos.

A valorização das artes surge, assim, como uma dimensão fundamental de uma formação de base humanista, uma vez que possibilita a interpretação crítica do passado e impulsiona o progresso futuro. Assim sendo, considero urgente a edificação da consciência artística na sociedade, a vinda do "Quinto Império" profetizado por Fernando Pessoa, um império espiritual fundado na cultura e no conhecimento. Nas palavras do poeta, "É a Hora!".

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(Exame de Português, 12º ano, 2021, 1ª fase)

18
Jul21

“O ano da morte de Ricardo Reis” – José Saramago

Helena

mês de dezembro do ano de 1935 está a chegar ao fim, quando o Highland Brigade chega ao porto de Lisboa. Entre os viajantes do navio encontra-se Ricardo Reis, heterónimo pessoano regressado do Brasil por ocasião da morte de Fernando Pessoa.

Na capital, Ricardo Reis instala-se no Hotel Bragança, onde conhece Lídia, a criada, em tudo oposta à musa do poeta, sua homónima. Junto de Lídia, Reis reencontra o fervor de uma relação de amor físico, ocasional e desigual – a simplicidade humilde da criada contrasta fortemente com o estatuto elevado e o discurso do heterónimo. A este amor carnal opõe-se o amor platónico que Ricardo Reis vai nutrir por Marcenda Sampaio, uma rapariga de Coimbra que visita Lisboa todos os meses em busca de cura para a sua mão paralisada.

Mais do que uma história que faz de uma personagem pré-existente o seu protagonista, reinventando-a, O ano da morte de Ricardo Reis é um romance de crítica aos mais variados aspetos do período em que a ação se desenrola. O avanço do fascismo na Europa, a iminência da guerra civil espanhola, a miséria do país no tempo da ditadura, a cegueira do fanatismo religioso e a hipocrisia e dissimulação do regime salazarista são pontos-chave das suas reflexões e dos comentários que pontuam as suas conversas com o fantasma de Fernando Pessoa.

“o homem, claro está, é o labirinto de si mesmo”

Este não foi o primeiro livro de Saramago que li – e ainda bem.

Em primeiro lugar, O ano da morte de Ricardo Reis é, em comparação com o Memorial do Convento, muito mais complexo, não em termos de linhas narrativas, mas em termos de conteúdo. Este livro apresenta, paralelamente a uma linha de ação simples, reflexões de um teor e profundidade que podem ser pouco acessíveis às pessoas que não possuem uma bagagem intelectual considerável. Esses momentos da narrativa correspondem, geralmente, aos encontros de Ricardo Reis com o fantasma de Fernando Pessoa, durante os quais eles se dedicam a discutir os assuntos da atualidade e a debater problemas existenciais. Embora a maior parte das reflexões seja muito interessante, desenrolam-se, por vezes, raciocínios difíceis de compreender, para além de serem pontuados pelos aforismos saramaguianos que me deixam sempre com a sensação de que não entendi o seu sentido por completo.

O ano da morte de Ricardo Reis exige, como seria de esperar, um conhecimento relativamente aprofundado acerca do heterónimo, da sua poesia e da sua filosofia de vida. Caso contrário, a verdadeira magia deste romance passar-nos-á ao lado. Certos comportamentos de Reis, a sua relação com Pessoa e os outros heterónimos e as suas reflexões são baseados nos princípios pelos quais Ricardo Reis se rege – a renúncia ao compromisso e à perturbação, a consciência aguda da mortalidade e a convicção de que “Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo”.

“Não digamos, Amanhã farei, porque o mais certo é estarmos cansados amanhã, digamos antes, Depois de amanhã, sempre teremos um dia de intervalo para mudar de opinião e projeto, porém ainda mais prudente seria dizer, Um dia decidirei quando será o dia de dizer depois de amanhã, e talvez nem seja preciso, se a morte definidora vier antes desobrigar-me do compromisso, que essa, sim, é a pior coisa do mundo, o compromisso, liberdade que a nós próprios negámos.”

Outro motivo que me leva a preferir o Memorial do Convento ao O ano da morte de Ricardo Reis é o período histórico em que a ação se desenrola. No Memorial, a ação remonta ao século XVIII, ao período de construção do convento de Mafra. Já O ano da morte de Ricardo Reis insere-se no período do regime salazarista e do avanço dos fascismos em território europeu. Apesar de considerar muito relevante esta altura da História e de ter desfrutado da forte crítica do autor à conjuntura portuguesa da época, principalmente através da ironia, este não me atrai tanto como os períodos históricos anteriores – no final de contas, nunca fui grande fã da História do pós-século XIX.

Apesar de tudo, a genialidade de Saramago volta a transparecer, inegável, através das páginas do romance. O seu estilo particular acrescenta riqueza a uma obra já de si engrandecida pela incrível capacidade criativa do autor Nobel da Literatura.

Em conclusão, penso que este é um livro de leitura obrigatória para os fãs de Saramago, constituindo em simultâneo um exemplar do seu poder inventivo e um compêndio da essência da portugalidade.

26
Mai21

A importância do sonho

Helena

“Eles não sabem que o sonho / É uma constante da vida / Tão concreta e definida / Como outra coisa qualquer”. A capacidade de sonhar é uma característica própria do ser humano. São os sonhos que impulsionam a vida e que alimentam o constante dinamismo da Humanidade, permitindo-lhe progredir.

“Nada melhor do que um sonho para criar o futuro”. Como afirmava Victor Hugo, os sonhos são o melhor “motor” para a perseguição dos objetivos de cada um. Sem sonhos, os Homens viveriam sem um propósito, como barcos à deriva no mar da vida. Sem o sonho de se tornar um futebolista profissional, Cristiano Ronaldo não teria tido ânimo suficiente para superar todas as provações com que se deparou, e não seria, hoje, o melhor jogador do mundo.

“Que sempre que o homem sonha / O mundo pula e avança”. Que seria da Humanidade sem os sonhos? Que seria da Humanidade, se um grupo de marinheiros não se tivesse lançado ao mar desconhecido, movidos pelo sonho de dar “novos mundos ao mundo”? Que seria da Humanidade, se não tivesse havido quem sonhasse levar o Homem à Lua? “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. O progresso coletivo assenta nos sonhos dos indivíduos, na vontade de quem ousa ir mais além. A evolução não acontece sem uma rutura da ordem estabelecida, e nada melhor para instigar uma rutura do que a força de um sonho.

Em conclusão, o sonho é a base da existência humana, imprescindível a uma vida com sentido e ao progresso da civilização. Nas palavras de Saramago, “são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita”.

25
Ago20

"Memorial do Convento" - José Saramago

Helena

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O “Memorial do Convento” tem como principais linhas narrativas aquelas que são apresentadas na contracapa do livro: “Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento em Mafra. Era uma vez a gente que construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido. Era uma vez.”.

Assim, este romance histórico começa por retratar o problema com que a família real portuguesa se deparava no dealbar do século XVIII: as dificuldades na conceção de um herdeiro para a coroa. A preocupação do rei leva-o a aceder à sugestão de um frade franciscano e a prometer a edificação de um convento caso Deus o abençoasse com descendência. Como, depois disso, a rainha consegue engravidar, iniciam-se os preparativos para a construção de um convento em Mafra. Nesta construção virão a trabalhar milhares de homens, entre os quais Baltasar Sete-Sóis, um antigo soldado que tinha perdido a mão esquerda na guerra. Contudo, antes do seu regresso a Mafra, a sua terra natal, Baltasar passa algum tempo em Lisboa, onde conhece o padre Bartolomeu Lourenço, também conhecido por “Voador”, pelos seus projetos de máquinas que permitiriam ao Homem voar, e Blimunda Sete-Luas, que consegue ver as pessoas por dentro.

Conjugando habilmente uma história de amor puro, um retrato da época pormenorizado, uma crítica social mordaz, uma perspetiva popular de um dos períodos mais marcantes da História portuguesa e uma passarola voadora movida a vontades, Saramago constrói um romance magnífico, que é de leitura obrigatória para os alunos do 12º ano de escolaridade.

Confesso que, antes de iniciar esta leitura, a receava. Isto devia-se à consciência de que José Saramago escrevia de uma maneira bastante peculiar, usando vírgulas no lugar de pontos finais e travessões. Contrariamente ao que receava, o registo de Saramago não dificultou a leitura, antes ajudou a torná-la especial. A colocação perfeita das vírgulas permite que as frases fluam pelas páginas, embalando o leitor na sua jornada pelo reinado de D. João V.

Esta época histórica é retratada fiel e detalhadamente pelo autor, desde a vida da família real e da corte às procissões religiosas e às condições de vida do povo. Algumas descrições, de tão ricas em pormenores, são um pouco aborrecidas, como é o caso das procissões e das deslocações da família real.

A inserção de provérbios e expressões populares no discurso proporcionam uma aproximação entre o leitor e o narrador, para além de realçar a sua perspetiva popular ou assinalar uma certa ironia. Esta está, aliás, muito presente no discurso saramaguiano, sublinhando a crítica que a ele está subjacente, que tem como alvos a Inquisição, a Igreja e os autos de fé, as convenções sociais, os protocolos da corte, as touradas e os gastos exorbitantes e irresponsáveis da Coroa.

O contraste das relações entre o rei e a rainha e entre Baltasar e Blimunda realça a diferença entre uma história de amor por conveniência e uma de amor verdadeiro, constituindo um panegírico da simplicidade dos amores genuínos.

O desfecho inesperado e comovente encerra com chave de ouro um romance simultaneamente emocionante e enriquecedor. Um ícone da literatura portuguesa.

“a diferença que há entre tijolo e homem é a diferença que se julga não haver entre quinhentos e quinhentos, quem isto não entender à primeira não merece que lho expliquem segunda.”

“são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita”

“a grande, interminável conversa das mulheres (…), nem eles imaginam que esta conversa é que segura o mundo na sua órbita, não fosse falarem as mulheres umas com as outras, já os homens teriam perdido o sentido da casa e do planeta”

“e circulavam burros à nora, de olhos tapados para terem a ilusão de caminhar a direito, não sabendo, como não sabiam os donos, que andando realmente a direito também acabariam por vir parar ao mesmo lugar, porque o mundo é ele uma nora e são os homens que, andando em cima dele, o puxam e fazem andar.”

"Tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas."

"(...) todo o homem sabe o que tem, mas não sabe o que isso vale."

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