“O gesto que fazemos para proteger a cabeça” – Ana Margarida de Carvalho
O gesto que fazemos para proteger a cabeça é uma história de vingança, de abandono e de condenação, cuja ação se concentra entre dois entardeceres.
A ação inicia-se com a jornada de regresso da personagem de Simão Neto à aldeia miserável de Nadepiori, um recanto agreste e ventoso do Alentejo. Enquanto Simão tenta regressar à sua aldeia sem perder a mercadoria de azeitonas recém-apanhadas que transporta, é atacado por uma matilha de cães selvagens a que sobrevive graças à intervenção de um estrangeiro misterioso que se faz acompanhar por um arpão – um homem do mar regressado à terra. Constantino, o sétimo filho de sete irmãos, regressava à sua terra natal depois de sete anos de exílio, determinado a aplicar justiça pelas próprias mãos.
Através de uma narrativa sinuosa, Ana Margarida de Carvalho cede-nos o lugar do observador da vida no interior do Alentejo em pleno Estado Novo, inserindo-nos numa teia de histórias de vida cujos desfechos não foram aqueles que eram esperados, e cuja base é a luta pela vida numa aldeia em que se vive à força, à mercê da liderança impiedosa do povo vizinho.
“porque só um humano entende tanta desumanidade”
O gesto que fazemos para proteger a cabeça é um livro complexo, com seis capítulos e seis pontos finais, sugerindo uma autêntica caminhada, a infinidade laboriosa de um carreiro de formigas, “encarrilhadas umas nas outras, sem parar, como as linhas de um livro”.
Não gostei tanto deste romance como do Que importa a fúria do mar, da mesma autora, uma vez que a sua ação é menos relevante para o seu valor do que a forma como a autora escolhe construir a narrativa – um puzzle de informações, por vezes quase veladas, que me fizeram precisar de o ler duas vezes.
Apesar disso, despertou-me um interesse particular a forma como a conversa entre as mulheres junto ao antigo depósito de água da aldeia revela que é nelas que reside a liderança das vidas em Nadepiori. São elas que estão por trás das decisões e acima das tramas da pobreza, e elas que mantêm as famílias vivas neste fim de mundo – um papel fundamental para a ordem universal das coisas, muito próxima da noção de Saramago de que “esta conversa é que segura o mundo na sua órbita, não fosse falarem as mulheres umas com as outras, já os homens teriam perdido o sentido da casa e do planeta” (SARAMAGO, José - Memorial do Convento. Lisboa: Editorial Caminho, 1982).
Chegados ao final do livro, podemos concluir que “o gesto que fazemos para proteger a cabeça” é, na verdade, uma reação involuntária face ao perigo, um reconhecimento instintivo da vulnerabilidade do Homem, preso num corpo sem saída e condenado à tirania das forças que o ultrapassam.
“a veces hay que caer con el fin de saber dónde estamos”
“uma viagem é sempre deixar para trás”