"Down and Out in Paris and London" - George Orwell
Publicado pela primeira vez em 1933, Down and Out in Paris and London foi o livro que introduziu George Orwell – antes disso, simplesmente Eric Blair - na paisagem literária europeia. Este relato autobiográfico, que não teria vindo a existir sem a recusa terminante e orgulhosa de Orwell do futuro que os anos em Eton tinham delineado para si, é evidentemente o dealbar daquilo que seria a sua principal vocação. A sua temporada miserável em Paris e em Londres, tal como período que passara na Birmânia enquanto polícia imperial, a sua participação na Guerra Civil Espanhola e o trabalho que viria a ter na BBC fariam de George Orwell um homem dedicado à denúncia de verdades incómodas e da manipulação política das narrativas históricas. Talvez motivado pelo combate a esta última, ele próprio escreve sobre aquilo que julga não poder ser ignorado.
Provando que um acaso é quanto basta para que se mergulhe na pobreza, um furto deixa Orwell sem dinheiro, em Paris, e leva à sua incursão no universo da quase-mendicidade: penhora os seus bens, alimenta-se à base de pão e procura trabalho, durante muito tempo, em vão. Juntamente com Boris (um antigo empregado de mesa russo), acaba por encontrar um emprego como plongeur num hotel. Essa experiência é material para uma reflexão sobre o trabalho precário enquanto ciclo de exploração aparentemente infinito. Mantendo os trabalhadores no limite da exaustão, ocupando a maior parte do seu tempo e pagando apenas o suficiente para que a vida naquelas precisas condições seja possível, não resta energia, ocasião ou margem de risco para se procurar uma alternativa.
Uma oferta de emprego como tutor em Londres resgata Orwell desta espiral de exploração – antes de o lançar para uma nova temporada de miséria. Em solo inglês, é informado de que não poderá começar a trabalhar de imediato. Seguem-se semanas de dormidas em albergues fétidos, barulhentos e atulhados, de torradas com chá (muitas vezes, graças à caridade religiosa) e de contacto com homens em circunstâncias semelhantes à dele. Destaca-se Bozo, que faz pinturas no chão para ganhar dinheiro. Sujeito ao clima chuvoso de Londres e às repreensões das autoridades, encontra beleza nas estrelas do céu e sustento nos seus pensamentos. Orwell nota que a mendicidade é, invariavelmente, muito mais custosa para aqueles que não beneficiaram de uma educação, já que não há via mental por onde possam escapar à fome, ao cansaço e à desesperança.
O que resta da dignidade de um homem quando sente os seus pés enterrados na pantanosa indigência? Malnutridos, cansados, forçados ao nomadismo, os homens com que Orwell partilhou as ruas e os albergues vivem revoltados, mas diminuídos, entregues aos seus instintos por não lhes ser possível aspirar a mais. Há, no entanto, quem resista. Orwell, por exemplo, ainda que ressentido pela falta do tabaco, recusa-se a apanhar beatas do chão.
Qual é, então, o interesse em permitir que esta faixa da população se mantenha abaixo do limiar da pobreza? A esta questão, colocada ainda antes da instituição do Estado Social, Orwell responde com o desinteresse dos mais ricos em educar aqueles que podem tornar-se uma ameaça à sua posição e com o desprezo a que a mentalidade do pós-revolução industrial vota os trabalhadores (já que Orwell defende que a mendicidade é, em si, um trabalho) incapazes de gerar lucro. Hoje, já com políticas públicas de apoio aos mais necessitados, o problema mantém-se. O fosso entre ricos e pobres aprofunda-se e o capitalismo prospera, voraz. Soma-se ao individualismo crescente a generalizada extinção do dinheiro físico. Nem de esmolas poderá, num mundo que Orwell já não pode dispor em crónicas, um mendigo viver.
Down and Out in Paris and London termina em jeito de promessa, que serve de lição de moral:
I shall never again think that all tramps are drunken scoundrels, nor expect a beggar to be graceful when I give him a penny, nor be surprised if men out of work lack energy, nor subscribe to the Salvation Army, nor pawn my clothes, nor refuse a handbill, nor enjoy a meal at a smart restaurant. That is a beginning.
