“O lodo e as estrelas” – Telmo Ferraz
“A todos os que trabalharam em túneis de minas ou barragens e hoje têm silicose.” Esta é a dedicatória de O lodo e as estrelas, um conjunto de entradas de diário do padre Telmo Ferraz que nos transportam para as arribas mirandesas (em particular, as da aldeia de Picote) durante a construção das barragens hidroelétricas do Douro. Através de pequenos quadros, abrem-se as portas das barracas precárias onde viviam os trabalhadores famintos, pobres, doentes e mal pagos. O padre Telmo, observador no terreno, conheceu, acompanhou e ajudou todas as pessoas mencionadas neste livro e muitas mais que não são mencionadas, mas que ainda hoje são lembradas nas pequenas povoações vizinhas das centrais. Esta é a história daqueles que morreram debaixo de telhados de papel, de estômago vazio, depois de dias a tossir sangue.
“Pensei: anquanto chobir, este Probe tem de quemer la lhama de ls caminos, cun l fiel que le trai la lhembráncia cuntina de la mulher i de ls filhos.”
(“Pensei: enquanto chover, este Pobre tem de comer a lama dos caminhos, com o fel que lhe traz a recordação contínua da mulher e dos filhos.”)
Lancei-me para a leitura de O lodo e as estrelas apenas com o conhecimento de que se tratava de um relato fidedigno das condições de vida dos trabalhadores na construção das barragens do Douro. Surpreendeu-me, por isso, quando deparei com uma narrativa constituída pelas entradas do diário do Padre Telmo Ferraz, em vez de com um registo narrativo convencional. Mas, como diz o famoso slogan, “primeiro estranha-se, depois entranha-se”, e rapidamente se me afigurou como a melhor maneira para transmitir a brutalidade da realidade descrita pelo pároco impotente face à miséria absoluta em que viviam os que o rodeavam.
O facto de esta ser uma edição bilingue (em português e em mirandês) enriquece imensamente o conteúdo do livro, já que isso permite que a história se ancore na realidade tanto geográfica como linguística. Os trabalhadores das barragens, vindos de fora, não falavam mirandês – pelo contrário, a discriminação e a troça sentida pelos locais relativamente à sua língua resultou numa tentativa de reprimir o seu uso nas gerações mirandesas seguintes. Hoje, a valorização da língua mirandesa (em muito impulsionada pelo tradutor deste livro, Amadeu Ferreira, de pseudónimo Francisco Niebro) e a sua consequente reivindicação pelos habitantes das terras de Miranda têm vindo a fomentar a tradução de obras canónicas, como a Bíblia, e locais, como O lodo e as estrelas.
A dureza das circunstâncias transmitidas para o mundo pelo Padre Telmo Ferraz é tal que O lodo e as estrelas foi censurado pelo regime salazarista, que vigorava aquando da sua publicação. Esse facto reforça a importância desta leitura, um olhar pungente para o avesso da narrativa gloriosa da revolução hidroelétrica do Estado Novo. Em português ou em mirandês, as palavras deste livro são as estrelas cuja luz ilumina aqueles cujas vidas e cujas vozes se perderam no lodo.