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H-orizontes

H-orizontes

02
Mar24

“Sei porque canta o pássaro na gaiola” – Maya Angelou

Helena

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Sei porque canta o pássaro na gaiola é um memoir da autoria de Maya Angelou, no qual ela recua até à sua infância em Stamps e partilha a sua experiência de crescimento no sul dos Estados Unidos da América, enquanto menina negra entregue aos cuidados da sua avó.

Nas profundezas do Arkansas, a pequena Marguerite (Maya) familiariza-se desde cedo com a precariedade do trabalho da população negra nas plantações de algodão. Todas as manhãs, os trabalhadores chegavam à loja da sua avó para comprar o farnel do meio-dia e, todas as noites, regressavam de rastos, tanto por causa do trabalho pesado como pela certeza de que este nunca seria suficiente para cobrir as necessidades de uma vida digna.

A casa da avó, onde estão relativamente a salvo da dureza da vida lá fora, não pode proteger para sempre Marguerite e Bailey, o seu irmão mais velho e melhor amigo. À consciência crescente da irracionalidade do ódio que a população branca sente por eles aliar-se-á uma consciência aguda da ausência dos seus progenitores, especialmente depois de serem visitados pelo pai, em Stamps, e visitado a mãe, em St. Louis. Símbolos de uma vida diferente e livre fora dos limites de Stamps, os seus pais tornam-se também símbolos da ascensão social, da instabilidade e do trauma – de facto, é durante a sua estadia com a mãe que Marguerite é assediada e violada pelo seu padrasto, algo que a marca profundamente com um indelével sentimento de culpa.

A narrativa segue pelos anos de amadurecimento dos irmãos, e com ele a sua individualização. É a altura de Marguerite perceber em que medida aquilo em que se quer tornar é condicionado pelo seu passado, pela sua cor de pele e pelas suas decisões de todos os dias.

“As pessoas iam ficar tão espantadas no dia em que eu acordasse do meu sonho negro e feio, e em que o meu verdadeiro cabelo, que era comprido e louro, tomasse o lugar da carapinha que a Mãezinha não me deixava alisar!”

Sei porque canta o pássaro na gaiola provocou em mim aquilo que habitualmente me provoca o género literário do memoir: uma necessidade constante de me relembrar de que aquilo que estou a ler não é um produto de ficção. Tudo é real: o desconforto de Marguerite face aos comentários das crianças brancas sobre a sua avó; o seu amor por Bailey; a sua admiração por Mrs. Flowers, um ícone da emancipação feminina que se destacava no panorama conservador da sua vida em Stamps. Maya Angelou eterniza neste livro a violência da vida negra na América nos anos 30 e 40 do século passado, através do olhar límpido e inocente de uma criança que vai descobrindo o mundo em que vive.

Aquilo que mais me marcou nesta leitura foi a brutalidade da culpa que Marguerite carregou dentro de si durante o seu crescimento, fruto de um evento traumático que, enquanto criança, não tinha ferramentas para compreender nem processar. A tradição religiosa que dominou grande parte da sua infância, juntamente com a relação intermitente que mantinha com os pais, levaram Marguerite a interpretar a sua violação, e as consequências desta, como algo que a tornava indigna de afeto, abandonada pelo deus que venerava. O abuso da inocência de uma criança que ainda não conhece a barreira que separa o carinho do abuso é revoltante, e é-o mais ainda a chantagem emocional com que o abusador tenta silenciá-la.

Assim, Sei porque canta o pássaro na gaiola é uma leitura inspiradora, um testemunho de uma vida marcada por reviravoltas, altos e baixos, traumas e descobertas. Não deixa, no entanto, de ser um livro que aborda temas sensíveis, como a violação e o racismo, de uma forma bastante dura, pelo que não é um livro que recomende para quem procura beleza e conforto. Ainda assim, e porque só enfrentando um passado desagradável podemos construir um futuro mais justo, reitero a minha opinião de que esta é uma história de grande importância para aprendermos a ver a vida a partir dos olhos de outros.

16
Nov23

“Just Kids” – Patti Smith

Helena

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O memoir de Patti Smith faz-nos recuar até à Nova Iorque dos anos sessenta, onde a autora encontrou meios para fazer florescer a sua paixão pelas artes. Chegada à “Grande Maçã” ainda muito jovem, Smith debateu-se contra a precariedade das condições de vida dos aspirantes a artistas que, aqui e ali, povoavam as ruas. Foi nos seus primeiros tempos de vida vivida na corda bamba em Nova Iorque que Patti conheceu Robert, que viria a ser o seu inseparável companheiro na luta por reconhecimento artístico e sustento diário.

Acompanhamos, assim, os altos e baixos da vida da artista, as suas relações, as suas viagens e a sua jornada de descoberta da melhor forma de expressar a sua identidade artística, desde que deixou a casa dos pais até à morte de Robert, por complicações associadas à SIDA.

“Sometimes I just wanted to raise my hand and stop. But stop what? Maybe just growing up.”

A minha experiência de leitura deste memoir foi muito influenciada pelo facto de eu não conhecer previamente a sua autora. Isto fez com que, naturalmente, o meu interesse não fosse equivalente ao que me levou a ler, por exemplo, o memoir do Trevor Noah, no início deste ano. Parti para este memoir como quem parte para uma experiência puramente literária e, nesse sentido, não fiquei muito impressionada. A história é linear, mas é povoada por muitas personagens que nem sempre são muito relevantes. Para além disso, deduzo que esta seja uma narrativa muito atrativa para aqueles que se reveem na perseguição do sonho de uma vida boémia ou nos sacrifícios a que estariam dispostos a fazer para vingar no mundo da arte. Como não é o meu caso, poucas coisas me uniam à voz narrativa, a apenas aspetos pontuais captavam realmente a minha atenção. Esse foi o caso dos encontros casuais com pessoas de renome que Smith relata esporadicamente, entre eles uma vez em que se cruzou com Salvador Dalí, outra com Allen Ginsberg e outra com Jim Morrison. Nova Iorque era um formigueiro de artistas nos anos sessenta, e este livro é a prova viva disso.

Interessou-me particularmente que a maior parte da ação se aclimatasse no cerne daquela que ficou conhecida como a “Beat Generation”. Allen Ginsberg, Jack Kerouac e William Burroughs são nomes que já me eram familiares, que pertencem a um período que me fascina e que orbitavam os mesmos espaços que Patti Smith, ao mesmo tempo que ela. Esta coincidência inesperada despertou a minha curiosidade em relação à obra de Patti Smith e à forma como se insere neste movimento cultural e literário.

Não esperava que a história de Robert tivesse um fim tão prematuro, nem sabia que também tinha sido uma vítima da epidemia de SIDA que vitimou tantas pessoas nos anos oitenta.  A descrição da vivência de Patti da doença e da morte daquele que a acompanhou ao longo do seu processo de autoconhecimento e conquista da independência foi a minha parte preferida de todo o memoir. É um retrato tocante da vulnerabilidade do ser humano quando confrontado pelas forças que escapam ao seu controlo, e uma ode à amizade que se eterniza no livro que, afinal, foi Robert a pedir-lhe que escrevesse.

Em suma, Just Kids é um livro sobre a persistência, o sacrifício, o amor e a perda, dominado pela certeza de que, no final, é a arte que nos salva.

30
Set23

“Finding Me” – Viola Davis

Helena

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Neste memoir, Viola Davis abre as portas da sua vida aos leitores, convidando-os a descobrir o passado horrível que esconde o seu sorriso, o sorriso de uma atriz de renome internacional, vencedora de um Emmy, um Grammy, um Oscar, um BAFTA, um Globo de Ouro… uma mulher bem-sucedida.

Nada poderia preparar o leitor desconhecedor das origens de Viola para a história que ela põe a descoberto em Finding Me. O retrato de uma infância na pobreza extrema, numa casa mergulhada na violência e sem as condições mais básicas de higiene é chocante. A pavimentar a estrada para o sucesso, Viola encontrou o abuso, a discriminação, a depressão, a realidade de viver da representação nos EUA, enquanto mulher negra em condições económicas precárias.

Englobando toda a vida de Viola até à altura em que este memoir foi publicado, Finding Me é um livro sobre resiliência, persistência e sofrimento, sobre as reviravoltas da vida e sobre o que pode acontecer quando a sorte, o trabalho e a esperança se alinham.

“The fear factor was minimized for me. I already knew fear. My dreams were bigger than the fear.”

Apesar de já ter visto a entrevista da Oprah a Viola Davis da Netflix, na qual ela se refere com algum detalhe à sua infância difícil, o relato que a atriz faz em Finding Me dos episódios de precariedade, trauma e abuso que viveu deixou-me sem palavras. A jornada de superação e posterior sucesso de Viola é inspiradora e um exemplo pelo qual eu considero muito importante a publicação deste livro. Para além disso, enquanto alguém que teve a sorte de não se debater com as mesmas circunstâncias terríveis na infância, penso que é uma leitura que contribui grandemente para o aprofundamento do sentido de empatia do leitor, pela facilidade com que nos permite aceder ao lugar do outro.

Finding Me provocou em mim a mesma sensação de incredulidade de quando vou a encontros com escritores ou vejo entrevistas a artistas na Internet: atrás da obra de arte, está um humano, uma pessoa como eu que tem uma história, sonhos por concretizar, batalhas para combater.  Viola, uma menina pobre, discriminada, rotulada, traumatizada, cresceu para se tornar numa mulher de sucesso, uma atriz fenomenal com um passado inimaginável.

É bastante óbvio que o trabalho de base de Viola não é, ao contrário do que acontece, por exemplo, com Trevor Noah, escrever. Em consequência, falta a este memoir a destreza narrativa com que o humorista consegue abrilhantar as histórias do Born a Crime. Ainda assim, Finding Me é um livro muito acessível, sem deixar de ser duro e incomodativo. Este livro teve duas consequências imediatas em mim: fez-me sentir extremamente grata por tudo aquilo que tenho, mesmo nos dias menos bons, que, em comparação com a infância de Viola, são muito bons; e fez-me querer ver todos os filmes e séries em que Viola entra, em maratona.

13
Abr23

“Greenlights” – Matthew McConaughey

Helena

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Para escrever Greenlights, Matthew McConaughey releu e analisou criticamente os registos diarísticos que remontam à sua adolescência e o acompanharam durante toda a vida, a fim de selecionar informação que pudesse ser coesa no seu todo e relevante para o público em geral. Assim, McConaughey encadeia uma série de narrativas que, de uma forma ou de outra, contribuíram para o tornar naquilo que é hoje – experiências mais ou menos boas (redlights e yellowlights) que, a longo prazo, trouxeram consequências positivas (greenlights).  

Este livro não correspondeu às minhas expectativas. Apesar de constituir um bom repositório das experiências de vida de uma das maiores figuras de Hollywood dos nossos dias, o seu ritmo é quebrado pelos fragmentos de escritos mais ou menos poéticos e filosóficos que McConaughey recolheu nos seus cadernos. O intuito de acrescentar profundidade à narrativa acaba por falhar, quase caindo no ridículo.

À parte isso, foi uma experiência positiva na medida em que me permitiu saber mais acerca de um dos meus atores favoritos, quer a nível da sua vida pessoal como da sua evolução na carreira da cinematografia. É certo que a mensagem que este memoir tenta transmitir é positiva (a noção de que é necessário trabalhar persistentemente e enfrentar desafios inesperados para conseguirmos alcançar um patamar melhor e mais alto, mais próximo dos nossos sonhos), mas é de notar que nem tudo se faz sem um pouco de sorte. A história de McConaughey não seria a mesma sem uma determinada sequência de oportunidades, assim como certos eventos e acasos constituem o fio condutor da vida de cada um de nós.

 

02
Mar23

“Born a Crime – Stories from a South African Childhood” – Trevor Noah

Helena

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África do Sul, anos 80 do século XX. A libertação de Nelson Mandela e o fim do Apartheid alteram o status quo da sociedade sul-africana, derrubando os ideais de supremacia branca consolidados em décadas de estruturas governativas colonialistas. É durante este atribulado período de transição que se desenrola a infância de Trevor Noah, atual comediante e apresentador de televisão, filho de uma mulher sul-africana e de um homem germano-suíço – o resultado de uma união punida pelas leis segregacionistas do pré-Apartheid.

Através de 18 capítulos, que correspondem a 18 histórias da infância de Trevor, ficamos um bocadinho mais perto de entender a experiência de uma criança que, sem poder incluir-se no grupo dos meninos negros nem no dos meninos brancos, foi trilhando o seu caminho, simultaneamente único, mas de alguma forma comum às crianças mulatas sul-africanas nos anos 80.

“Before that day, I had never seen people being together and yet not together, occupying the same space yet choosing not to associate with each other in any way.”

Este livro surpreendeu-me imenso pela positiva, por ser tão bem conseguido em todos os aspetos: por sensibilizar os leitores para as condições de vida sob o regime de repressão do Apartheid, por reproduzir tão vivamente a história de uma infância fascinante e por retratar um povo cujos costumes e cicatrizes ainda hoje são passados herdados de geração em geração.

Ao mesmo tempo que se trata de um livro coeso e bem construído, Trevor varia o seu registo narrativo e despreza a cronologia no que toca ao relato dos acontecimentos. Assim sendo, Born a Crime conjuga discursos sóbrios e solenes e registos informais e divertidos que faz com que os leitores sintam que estão a assistir a um dos seus espetáculos de stand-up comedy. Quanto à organização temporal, mesmo que os relatos não correspondam à ordem cronológica dos acontecimentos (afinal, esta não é uma biografia, mas sim um memoir), isso em nada impede que, no final, o leitor consiga visualizar o quadro da infância de Trevor com todas as suas nuances e pormenores.

A dedicatória de Born a Crime é dirigida a Patricia Noah, a mãe de Trevor, uma personagem omnipresente na sua narrativa e que influenciou em grande medida, direta e indiretamente, o adulto em que ele se veio a tornar. Sem recorrer a longos agradecimentos ou a discursos laudatórios, Trevor faz desta obra um monumento à força de vontade da sua mãe, uma mulher inspiradora na sua resiliência. Para além disso, ao ter sido vítima de violência doméstica, cuja desvalorização por parte das autoridades conduziu a consequências extremas, a sua história é particularmente relevante para sublinhar a importância do reconhecimento e da condenação de comportamentos abusivos no seu estado mais precoce.

Assim, recomendo vivamente a todos que deem uma oportunidade a este livro, uma história brutal e hilariantemente real que vos fará rir à gargalhada, franzir o sobrolho e ferver de revolta, no espaço de um par de capítulos.

“language, even more than color, defines who you are to people.”

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