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H-orizontes

H-orizontes

29
Ago24

“Slaughterhouse-Five” – Kurt Vonnegut

Helena

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Kurt Vonnegut partiu da sua experiência enquanto prisioneiro de guerra na Segunda Guerra Mundial para escrever Slaughterhouse-Five. Este livro tem como personagem principal Billy Pilgrim, um soldado americano que ganhou a capacidade de viajar no espaço e no tempo após ter sido raptado por extraterrestres do planeta Tralfamadore.

Num vaivém de saltos temporais, abrem-se janelas de onde se pode espreitar o passado e o futuro de Billy. Destacam-se pequenos flashes da sua infância, descrições de quando foi capturado pelos alemães em solo europeu e transportado para um campo de prisioneiros, momentos da sua vida como optometrista, recordações da sua lua de mel, relatos crus da sobrevivência ao bombardeamento aliado de Dresden e a sua sobrevivência a um acidente de avião que desencadeará a sua urgência em contar ao mundo o que aprendeu em Tralfamadore. Mais do que a possibilidade de viajar no espaço e no tempo, interessa a Billy levar às pessoas a conceção da vida mais ampla dos Tralfamadorians: o tempo ocorre simultaneamente, todos os momentos estão estruturados desde sempre para ocorrer da forma em que ocorrem, e a morte é uma circunstância pontual que não interfere com todos os momentos da vida que existem no mesmo plano de tempo, como quem olha para as montanhas numa cordilheira.

Constrói-se, assim, um mosaico de episódios aparentemente desorganizados e finitos, mas, na verdade, coesos e intemporais.

“There are almost no characters in this story, and almost no dramatic confrontations, because most of the people in it are so sick and so much the listless playthings of enormous forces. One of the main effects of war, after all, is that people are discouraged from being characters.”

Quanto mais leio acerca de Vonnegut e da teia de significações que vive por trás da manta de retalhos de Slaughterhouse-Five (Matadouro Cinco na edição portuguesa), mais esta obra me fascina. O meu deslumbramento começou com a descoberta dos acontecimentos de 13 de fevereiro de 1945 em Dresden, que a narrativa aliada abafou durante vários anos e que, atualmente, é um foco de debate pelas questões éticas que levanta. Afinal, milhares de toneladas de explosivos mataram 25 000 pessoas numa cidade comummente considerada segura (menos do que o meio milhão apregoado pela propaganda nazi, mas, ainda assim, um número que nos deixa, no mínimo, desconfortáveis). Vonnegut, enquanto prisioneiro de guerra que testemunhou esta demonstração de suprema insensibilidade humana, transfere para Slaughterhouse-Five o profundo ceticismo resultante do trauma profundo de quem foi obrigado a resgatar os corpos de civis dos escombros de Dresden. Para Vonnegut (e, consequentemente, para a personagem de Billy Pilgrim), a existência da guerra e das atrocidades que a envolvem é inevitável, devido à podridão da natureza humana.  Se isto levou alguns leitores a pôr em causa a mensagem anti-bélica deste romance, parece-me óbvio que se trata precisamente do contrário: Slaughterhouse-Five é um espelho de uma mente lavrada por cicatrizes mal saradas, provocadas por conflitos que condenam gerações jovens inteiras. Jovens, sim, já que, como Vonnegut sublinha no subtítulo The Children’s Cruzade e ao longo da narrativa, são os mais novos que constituem o maior volume de soldados e é a eles que se saqueiam as vidas em prol de um “bem maior” vazio. Billy Pilgrim é, de facto, um anti-herói, mas pela dessensibilização e pela apatia que caracterizam não só alguém que foi enviado para um contexto que não procurou, mas também alguém incapaz de processar a sequência de experiências traumáticas de um prisioneiro de guerra de outra forma que não a sua supressão pela indiferença.

Este é também, portanto, um livro sobre o livre arbítrio (ou a ausência dele). A inevitabilidade da dor, da morte e dos conflitos encontra o seu reflexo na filosofia dos Tralfamadorians. No entanto, se, por um lado, a impossibilidade de escapar à forma como todos os momentos estão estruturados parece castradora, existe conforto na visão da dor como um ponto numa cadeia onde existem simultaneamente muitos outros pontos de momentos de alegria. Mesmo quando tudo parece correr mal, há momentos no passado e no futuro em que esse não é o caso, e esses existem também no presente. Vonnegut transfere essa visão quase cubista da vida para os mecanismos literários que fazem de Slaughterhouse-Five um labirinto de muitas portas, onde se reencontram elementos de alguns episódios noutros que lhes são alheios, padrões de uma tessitura bem engendrada nos bastidores do caos. A cada morte, quer de homens, de lêndeas ou de champanhe: “so it goes”. E inesperadamente, a cada canto, ancorando o leitor à inescapável realidade, uma intervenção de uma personagem seguida de um “That was I. That was me. That was the author of this book.”.

Tal como os livros de Tralfamadore, conjuntos de símbolos em representação de momentos não relacionados que se revelavam objetos de maravilhamento quando olhados como um todo, também Slaughterhouse-Five é um mosaico de episódios aparentemente aleatórios e quase tragicómicos que, à distância de uma análise global, desabrocham num universo de sentidos.

04
Dez22

“The Bell Jar” – Sylvia Plath

Helena

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Esta narrativa acompanha a espiral descendente da saúde mental de Esther Greenwood, uma aluna excecional que passa um mês em Nova Iorque, a trabalhar numa revista de moda como prémio de uma bolsa. Em Nova Iorque, Esther é confrontada com um mundo complexo de convenções sociais, eventos superficiais e várias maneiras de encarar a feminilidade e a sexualidade. Quando regressa a casa, com a cabeça repleta de hipóteses relativamente a um futuro que parece cada vez mais difícil de escolher, Esther fica a saber que não foi aceite no programa de escrita que, enquanto aspirante a poetisa, tanto almejava frequentar. Presa nos seus próprios pensamentos e angústias, a protagonista deste romance começa a percorrer círculos mentais autodestrutivos, cujas consequências a levarão a internamentos sucessivos em várias instituições psiquiátricas.

“it wouldn’t have made one scrap of a difference to me, because wherever I sat – on the deck of a ship or at a street café in Paris or Bangkok – I would be sitting under the same glass bell jar, stewing on my own sour air.”

Comecei a ler este livro por sugestão da minha professora de Inglês e devorei-o numa semana. The Bell Jar, um romance em que a ficção e o registo autobiográfico se misturam, foi carimbado por Sylvia Plath com o sentimento de angústia de alguém que vive preso na sua doença mental. Assim sendo, a leitura deste livro não é recomendável aos leitores que não se encontrem num estado mental equilibrado, ou que sejam sensíveis a episódios de depressão, violência, tentativas de suicídio e linguagem racista própria do enquadramento ideológico da época.

Há quem classifique The Bell Jar como uma versão feminina de The Catcher in the Rye, mas The Bell Jar é muito mais do que a história de uma rapariga revoltada com a sociedade e com o processo tão exigente que é crescer. Esther Greenwood não só batalha contra um mundo que a obriga a afunilar o espectro de objetivos que se imagina a alcançar, mas também contra o ideal feminino dos anos 50 (“The trouble was, I hated the idea of serving men in any way.”), contra os estigmas da virgindade e da contraceção, contra os preconceitos em relação às doenças mentais e contra a persistência do seu corpo em continuar a viver.

É impossível separar o percurso de vida da personagem principal deste romance da vida da sua autora, uma mulher extremamente inteligente a quem nem os internamentos nem os tratamentos de eletrochoques conseguiram manter a salvo do suicídio, um mês após a publicação de The Bell Jar. Da mesma forma, é impossível separá-lo da época em que se insere, os anos 50 do século passado, retratados através das notícias nos jornais (a execução dos Rosenberg), da comida e das relações interpessoais. Assim sendo, este livro não deve ser posto de parte por apresentar uma visão preconceituosa e discriminatória das comunidades negra e homossexual, que devem ser entendidas como fruto da cultura racista e intolerante dos Estados Unidos na década que antecedeu a luta pelos direitos civis.

Não tenho palavras para descrever o quanto este livro me cativou, impressionou e perturbou do início ao fim. Vão ter de ler e sentir por vocês!

“I took a deep breath and listened to the old brag of my heart.

I am, I am, I am.”

23
Nov22

“O gesto que fazemos para proteger a cabeça” – Ana Margarida de Carvalho

Helena

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O gesto que fazemos para proteger a cabeça é uma história de vingança, de abandono e de condenação, cuja ação se concentra entre dois entardeceres.

A ação inicia-se com a jornada de regresso da personagem de Simão Neto à aldeia miserável de Nadepiori, um recanto agreste e ventoso do Alentejo. Enquanto Simão tenta regressar à sua aldeia sem perder a mercadoria de azeitonas recém-apanhadas que transporta, é atacado por uma matilha de cães selvagens a que sobrevive graças à intervenção de um estrangeiro misterioso que se faz acompanhar por um arpão – um homem do mar regressado à terra. Constantino, o sétimo filho de sete irmãos, regressava à sua terra natal depois de sete anos de exílio, determinado a aplicar justiça pelas próprias mãos.

Através de uma narrativa sinuosa, Ana Margarida de Carvalho cede-nos o lugar do observador da vida no interior do Alentejo em pleno Estado Novo, inserindo-nos numa teia de histórias de vida cujos desfechos não foram aqueles que eram esperados, e cuja base é a luta pela vida numa aldeia em que se vive à força, à mercê da liderança impiedosa do povo vizinho.

“porque só um humano entende tanta desumanidade”

O gesto que fazemos para proteger a cabeça é um livro complexo, com seis capítulos e seis pontos finais, sugerindo uma autêntica caminhada, a infinidade laboriosa de um carreiro de formigas, “encarrilhadas umas nas outras, sem parar, como as linhas de um livro”.

Não gostei tanto deste romance como do Que importa a fúria do mar, da mesma autora, uma vez que a sua ação é menos relevante para o seu valor do que a forma como a autora escolhe construir a narrativa – um puzzle de informações, por vezes quase veladas, que me fizeram precisar de o ler duas vezes.

Apesar disso, despertou-me um interesse particular a forma como a conversa entre as mulheres junto ao antigo depósito de água da aldeia revela que é nelas que reside a liderança das vidas em Nadepiori. São elas que estão por trás das decisões e acima das tramas da pobreza, e elas que mantêm as famílias vivas neste fim de mundo – um papel fundamental para a ordem universal das coisas, muito próxima da noção de Saramago de que “esta conversa é que segura o mundo na sua órbita, não fosse falarem as mulheres umas com as outras, já os homens teriam perdido o sentido da casa e do planeta” (SARAMAGO, José - Memorial do Convento. Lisboa: Editorial Caminho, 1982).

Chegados ao final do livro, podemos concluir que “o gesto que fazemos para proteger a cabeça” é, na verdade, uma reação involuntária face ao perigo, um reconhecimento instintivo da vulnerabilidade do Homem, preso num corpo sem saída e condenado à tirania das forças que o ultrapassam.

“a veces hay que caer con el fin de saber dónde estamos”

“uma viagem é sempre deixar para trás”

29
Nov21

“Quem disser o contrário é porque tem razão” – Mário de Carvalho

Helena

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Neste ensaio galardoado com o prémio P.E.N. Clube 2015, Mário de Carvalho, figura de destaque na atual paisagem literária portuguesa, decompõe a criação literária nos seus vários componentes e guia o leitor através das “camadas” que compõem um texto literário. Desde a importância da perspetiva da narração à necessidade de estabelecer a ambiguidade perturbadora indissociável da boa literatura, são abordados os pontos-chave e os conceitos fundamentais para uma compreensão mais aprofundada do fenómeno de criação de uma narrativa de ficção.

Este livro demarca-se da maior parte dos guias para aspirantes a escritores por se recusar a dar instruções como as daqueles que encaram a escrita como um processo linear. O próprio título reflete a posição do autor relativamente ao conteúdo deste ensaio: pode ser que quem diga o contrário também tenha razão, já que o exercício pode ser levado a cabo das mais diversas formas.

“Pensar que se fica apto a escrever depois de ler um compêndio de escrita criativa é o mesmo que julgar que se passa a dominar uma língua após ter comprado um dicionário.”

Este livro foi-me recomendado pela minha professora de Introdução aos Estudos Literários, pela sua relação com os conteúdos lecionados na cadeira. Assim, a minha leitura não foi feita na perspetiva de quem pretende escrever um livro, mas na de alguém que pretendia compreender alguns conceitos e princípios que alicerçam o mundo da literatura. Chegada ao fim deste ensaio, posso afirmar que este cumpriu o seu objetivo: reconheci nestas páginas conceitos com que já tinha contactado em contexto de aula, e fiquei a conhecer outros que certamente me serão muito úteis ao longo do semestre.

Apesar de se tratar de um ensaio muito acessível ao público em geral, dada a simplicidade das explicações do autor acerca de conceitos técnicos, considero-o ligeiramente elitista. Isto porque Mário de Carvalho recorre à enumeração de inúmeros exemplos de obras literárias para ilustrar as suas explicações, partindo do princípio de que o leitor é já um grande conhecedor dos grandes clássicos. Em todo o caso, estes exemplos abrem caminhos para novas leituras.

Em conclusão, Quem disser o contrário é porque tem razão é um ensaio esclarecedor e enriquecedor, adequado tanto para aqueles que almejam conceber uma obra de ficção como para aqueles que procuram entender os meandros do mundo da literatura.

“A boa literatura liberta.”

“Dificilmente conseguirá ser inovador e original aquele que não considerar os outros.”

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