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H-orizontes

H-orizontes

22
Out24

“Go Set A Watchman” – Harper Lee

Vários anos depois do final de To Kill A Mockingbird, Jean Louise é-nos apresentada como uma jovem adulta, residente em Nova Iorque, que regressa de tempos a tempos a Maycomb, a sua terra natal. É um destes regressos que constitui o enredo de Go Set A Watchman. Muito mudou desde a última vez que tivemos notícias da família Finch: Jem, o irmão de Jean Louise, morreu, vítima de um ataque cardíaco; Atticus envelheceu e vive agora com dores nas articulações, acompanhado pela sua irmã Alexandra; Hank, após anos de relacionamento amoroso com Jean Louise, tenta repetidamente levá-la a aceitar o seu pedido de casamento.

Dois grandes dilemas aguardam Jean Louise nesta estadia em Maycomb. Por um lado, ela sabe que a sua relação com Hank se baseia num amor unilateral a que não consegue corresponder, mas não encontra forma de lho dizer. Por outro, depois de assistir a um conselho municipal onde abundam discursos racistas aos quais Atticus não se opõe, Jean Louise encontra a confusão e o desamparo da sua criança interior, criada numa conceção irrealista do seu próprio pai. Assim, esta é a história de Jeane Louise na sua jornada de descoberta de si mesma e dos que a rodeiam, agora através de um olhar adulto e ciente do mundo vasto que existe para lá dos limites de Maycomb.

“Mr. Stone set a watchman in church yesterday. He should have provided me with one. I need a watchman to lead me around and declare what he seeth every hour on the hour. I need a watchman to tell me this is what a man says but this is what he means, to draw a line down the middle and say here is this justice and there is that justice and make me understand the difference.”

Numa tentativa de surpreender os leitores com uma modelação do caráter aparentemente reto e previsível de Atticus Finch, Harper Lee constrói uma narrativa algo forçada acerca das nuances dos dilemas morais enfrentados por aqueles que crescem sob a influência de uma visão do mundo de que não se conseguem libertar. Neste mea culpa pela narrativa do salvador branco que alicerça To Kill A Mockingbird, Harper Lee cai, em Go Set A Watchman, no extremo oposto: a vilanização de Atticus através do olhar desapontado de Jean Louise, aqui a cicerone da frustração branca dos estados do Norte face ao conservadorismo sulista.

Muito pouco acontece, de facto, nesta narrativa que tenta “ganhar pontos” ao pôr-se do lado das “causas certas”: o fim do racismo, a emancipação da mulher e a resolução de conflitos geracionais. Estas questões não deixam de impulsionar reflexões interessantes, e o desfecho do romance em todas estas dimensões não me desagradou, mas é-me difícil ver Go Set A Watchman como uma continuação natural de To Kill A Mockingbird e como uma narrativa com mais polpa do que a abordagem desses temas, sem um bom enredo que a suporte.

É um conselho comum para aspirantes a escritores que escrevam a história que sentem que precisa de ser contada. Na minha opinião, esta história não é relevante o suficiente para ser contada, tendo resultado na sensação de que se trata de um epílogo longo e pretensamente provocador do clássico que o precede (e em relação ao qual guardo a memória de uma experiência de leitura agradável). 

23
Mar24

“O Processo” – Franz Kafka

Joseph K., gerente de um banco, acorda numa manhã da sua vida pacata para se deparar com a visita de membros do aparelho judicial, que lhe comunicam que se encontra envolvido num novo e complexo processo. Apesar de não o prenderem, deixam K. num estado psicológico de prisão perpétua, já que não conhece a natureza do seu processo, nem os seus responsáveis na Justiça, nem o motivo de estar envolvido nele.

Ao longo de 190 páginas, Joseph K. tenta em vão clarificar o seu processo judicial e provar a sua inocência – algo praticamente impossível, dado não se conhecer aquilo de que o consideram culpado. Quase “atirado” de um lado para o outro pelas exigências da irracional Justiça, K. vai-se movimentando naquele que se revela o universo corrupto, incompreensível e contraditório dos processos judiciais. No final de contas, lutar contra a sua sentença ou aceitá-la passivamente parecem levá-lo ao mesmo resultado desolador de uma condenação sem fundamento.

«Mas eu não sou culpado», respondeu K., «é um erro. E, por falarmos nisso, como é que um homem pode ser considerado culpado? Somos todos homens, tanto uns como outros.»

Através da história bizarra de Joseph K, Kafka leva-nos a refletir acerca do funcionamento das instituições fundamentais da sociedade ocidental – especialmente, acerca da completa ausência de sentido prático que as caracteriza. Apesar de as autoridades comunicarem a K., no início do seu processo, que ele não vai ser preso, o que efetivamente acontece é uma prisão alargada a toda a existência do arguido. O processo entranha-se na vida de K., tanto pela incógnita em que consiste a acusação que o envolveu, como pela ininteligibilidade do seu desenrolar. Por mais que K. tente intervir para acelerar o decorrer dos acontecimentos, tudo o que ele se dispõe a fazer é irrelevante ou nocivo para o seu estatuto de acusado. A impossibilidade de se sair vitorioso de uma batalha com as instituições é resumida pelo pintor com que K. se encontra para tentar encontrar uma solução: um caso só pode ser resolvido através de uma absolvição definitiva, de uma absolvição aparente ou de um adiamento indefinido. A primeira nunca ocorre, a segunda conta com uma absolvição ratificada pelo juiz, mas não pelo Supremo Tribunal (o que leva a que seja possível que o processo seja recuperado e recomeçado a qualquer momento), e o terceiro, que consiste em evitar que o processo passe das primeiras fases, exige visitas constantes ao juiz e uma vigilância permanente da situação do acusado. Em suma, um acusado está inevitavelmente condenado a uma vida de instabilidade e preocupação, afundado em burocracia que não consegue entender.

O próprio recurso aos conhecimentos do pintor constitui parte da crítica à rede de influências que permeia o funcionamento das instituições. Só com o recurso a pessoas com ligações mais ou menos lícitas ao sistema judicial consegue fazer algum progresso (ainda que apenas aparente e insatisfatório) no decorrer do seu processo.

Um aspeto que captou particularmente a minha atenção foi a ubiquidade do sistema judicial, materializada pela existência de escritórios do tribunal em sótãos de zonas residenciais. Assim como as vidas dos residentes se encontram permanentemente debaixo de extensões do aparelho judicial, literalmente, também as vidas dos cidadãos estão condenadas a desenrolar-se sob a inexorável burocracia segundo a qual, bem ou mal, nos regemos.

A minha experiência de leitura d’O Processo foi surpreendentemente positiva. Acabei por gostar muito mais deste livro do que do célebre A Metamorfose, talvez por tê-lo lido numa fase da vida em que consigo compreender melhor o que realmente está em causa numa história aparentemente sem sentido, ou por ter uma mensagem crítica mais fácil de destrinçar. Este pode ser, no fundo, um livro sobre a falta de sentido da vida, e sobre como não importa o que façamos para tentar compreendê-la ou combater o seu rumo. Recomendo esta leitura a toda a gente.

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