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H-orizontes

H-orizontes

29
Set24

“Os livros que devoraram o meu pai” – Afonso Cruz

Helena

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Depois de completar doze anos, Elias Bonfim descobre que o facto de ser órfão de pai não se deve a qualquer tipo de acidente que tenha ceifado a vida ao seu progenitor. O seu pai, Vivaldo Bonfim, já não está neste mundo, mas não de uma forma eufemística. Vivaldo migrou, antes de Elias nascer, para o mundo das histórias. Trabalhador no 7º Bairro Fiscal, Vivaldo escapava às burocracias entediantes através dos livros, uma forma de escapismo tão eficaz que acabou por engoli-lo – por devorá-lo.

No décimo segundo aniversário de Elias, a sua avó paterna oferece-lhe a chave para a biblioteca de Vivaldo. A partir daí, Elias lança-se numa busca fervilhante pelo seu pai através das narrativas que este tinha visitado através da leitura. Em paralelo com a sua vida escolar, partilhada com Bombo, o seu melhor amigo, e Beatriz, a sua grande paixão, os seus dias são marcados por viagens de mãos dadas com a literatura. Na Londres de Stevenson, na S. Petersburgo de Dostoievski, na ilha de Wells e no futuro distópico de Bradbury, Elias calcorreia as ruas e conversa com as personagens que tinham conhecido ou ouvido falar de Vivaldo Bonfim.

“Para uns, a raiz é a parte invisível que permite à árvore crescer. Para mim, a raiz é a parte invisível que a impede de voar como os pássaros. Na verdade, uma árvore é um pássaro falhado.”

Li Os livros que devoraram o meu pai, pela primeira vez, quando tinha catorze anos. Desde aí, muito cresceu a minha biblioteca pessoal e a minha enciclopédia mental. Não será, portanto, de estranhar que a minha experiência de leitura tenha sido substancialmente diferente, oito anos e toda uma educação literária depois. Agora que O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, Crime e Castigo, Fahrenheit 451 e A Ilha do Dr. Moreau fazem parte do meu repertório, pude perceber melhor o entretecer destes quatro romances numa trama deslumbrantemente coerente. Só agora abarco na totalidade o alcance da imaginação de Afonso Cruz no prolongamento da vida das personagens de cada um dos romances referidos após o seu fim original (Prendick, de A ilha de Dr. Moreau, terá sido internado num asilo por suspeitar ser ele próprio uma experiência de Moreau e estar a transformar-se num cão, por exemplo). Isto não quer, de todo, dizer que esta leitura tenha como requisito um conhecimento prévio dos livros acima mencionados. Pelo contrário, é uma excelente introdução a algumas obras da literatura canónica, graças ao fabuloso poder de síntese do autor.

As minhas impressões relativamente ao estilo de Afonso Cruz permaneceram, contudo, intocadas, já que reencontrei com o mesmo fascínio a forma original e singela como o autor projeta uma ideia ou uma imagem na página. Ainda que o registo desta narrativa reflita a simplicidade que o seu público-alvo requer, em nada isso faz com que Os livros que devoraram o meu pai seja uma leitura menos deleitosa do que, por exemplo, O Princípio de Karenina.

Percebi, principalmente, que, contrariamente àquilo que me ficara na memória desde a minha última leitura, este não é um livro sobre um menino que anda à procura do pai, nem sobre os problemas da sua vida amorosa, nem sobre a sua relação com o seu melhor amigo. Os livros que devoraram o meu pai é um livro sobre livros, sobre leitores, e sobre como livros e leitores são, em última instância, uma e a mesma matéria – afinal, todos somos feitos de histórias.

09
Nov22

“Que Importa a Fúria do Mar” – Ana Margarida de Carvalho

Helena

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Que Importa a Fúria do Mar, publicado pela primeira vez em 2013, foi obra finalista do Prémio LeYa em 2012 e venceu, por unanimidade, o Grande Prémio de Romance e Novela APE-DGLAB de 2013.

Eugénia, jornalista ambiciosa permanentemente remetida para os programas a que ninguém presta atenção, depara-se com mais um trabalho que não a fascina nem atrai: entrevistar um idoso sobrevivente do campo de concentração do Tarrafal. “Veio parar a túmulo bafiento. A um viveiro de ácaros, camadas geológicas de ácaros, moscas e cogumelos das infiltrações.” Aquilo que Eugénia não espera é que Joaquim da Cruz, um homem apanhado no lugar errado à hora errada, na revolta comunista da Marinha Grande de janeiro de 1934, desperte nela um fascínio que a fará regressar, uma e outra vez, à casa de Joaquim e às suas palavras esparsas e vagarosas.

Assim, de entre a repressão de um regime ditatorial, a jornalista vê surgir uma história de amor entre um homem condenado e uma mulher que lhe prometeu uma espera eterna. “O Tarrafal? Mas isso é uma história de amor…”

“Querida irmã, há tantas coisas bonitas que ainda não há.”

Neste romance, Ana Margarida de Carvalho dá voz às vítimas do regime salazarista que a repressão política e intelectual enviou para os horrores do campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. No entanto, Que Importa a Fúria do Mar ultrapassa os tormentos dos injustamente condenados à violência e à exploração, abrangendo também as consequências das infâncias atribuladas, o poder das paixões e o impacto que pequenos acasos podem ter numa vida inteira.

As páginas deste romance transbordam de referências intertextuais, como a Fernando Pessoa, aos seus heterónimos e a Bob Dylan. Num fluxo de consciência entretecido com a narrativa, formas de expressão populares e eruditas formam uma teia rica de linguagem e estilo que fazem deste livro uma viagem pelas heranças cultural e literária portuguesas.

Esta narrativa contraria o sentido comum do mar para os artistas e os poetas: um meio de evasão e libertação, cheio de oportunidades e de vida. Que Importa a Fúria do Mar apresenta o mar como algo que reprime e aprisiona os homens. Uma sensação de claustrofobia atravessa a obra através do paralelo entre o mar que impossibilita a fuga dos prisioneiros no Tarrafal e o mar que atemoriza a infância da narradora, encerrada no quarto das traseiras da casa dos tios, onde a mãe a deixara antes de prosseguir a sua vida.

Que Importa a Fúria do Mar é um livro para ler e reler, um exemplo de como a literatura é o resultado da conjugação de influências antigas e técnicas narrativas novas, desafiando os leitores a voltar ao passado, ainda que com os pés bem assentes no presente.

“A mim, o não-sentido da poesia basta-me.”

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