“Born a Crime – Stories from a South African Childhood” – Trevor Noah
África do Sul, anos 80 do século XX. A libertação de Nelson Mandela e o fim do Apartheid alteram o status quo da sociedade sul-africana, derrubando os ideais de supremacia branca consolidados em décadas de estruturas governativas colonialistas. É durante este atribulado período de transição que se desenrola a infância de Trevor Noah, atual comediante e apresentador de televisão, filho de uma mulher sul-africana e de um homem germano-suíço – o resultado de uma união punida pelas leis segregacionistas do pré-Apartheid.
Através de 18 capítulos, que correspondem a 18 histórias da infância de Trevor, ficamos um bocadinho mais perto de entender a experiência de uma criança que, sem poder incluir-se no grupo dos meninos negros nem no dos meninos brancos, foi trilhando o seu caminho, simultaneamente único, mas de alguma forma comum às crianças mulatas sul-africanas nos anos 80.
“Before that day, I had never seen people being together and yet not together, occupying the same space yet choosing not to associate with each other in any way.”
Este livro surpreendeu-me imenso pela positiva, por ser tão bem conseguido em todos os aspetos: por sensibilizar os leitores para as condições de vida sob o regime de repressão do Apartheid, por reproduzir tão vivamente a história de uma infância fascinante e por retratar um povo cujos costumes e cicatrizes ainda hoje são passados herdados de geração em geração.
Ao mesmo tempo que se trata de um livro coeso e bem construído, Trevor varia o seu registo narrativo e despreza a cronologia no que toca ao relato dos acontecimentos. Assim sendo, Born a Crime conjuga discursos sóbrios e solenes e registos informais e divertidos que faz com que os leitores sintam que estão a assistir a um dos seus espetáculos de stand-up comedy. Quanto à organização temporal, mesmo que os relatos não correspondam à ordem cronológica dos acontecimentos (afinal, esta não é uma biografia, mas sim um memoir), isso em nada impede que, no final, o leitor consiga visualizar o quadro da infância de Trevor com todas as suas nuances e pormenores.
A dedicatória de Born a Crime é dirigida a Patricia Noah, a mãe de Trevor, uma personagem omnipresente na sua narrativa e que influenciou em grande medida, direta e indiretamente, o adulto em que ele se veio a tornar. Sem recorrer a longos agradecimentos ou a discursos laudatórios, Trevor faz desta obra um monumento à força de vontade da sua mãe, uma mulher inspiradora na sua resiliência. Para além disso, ao ter sido vítima de violência doméstica, cuja desvalorização por parte das autoridades conduziu a consequências extremas, a sua história é particularmente relevante para sublinhar a importância do reconhecimento e da condenação de comportamentos abusivos no seu estado mais precoce.
Assim, recomendo vivamente a todos que deem uma oportunidade a este livro, uma história brutal e hilariantemente real que vos fará rir à gargalhada, franzir o sobrolho e ferver de revolta, no espaço de um par de capítulos.
“language, even more than color, defines who you are to people.”