"De Profundis" - Oscar Wilde
É do interior da cela de Oscar Wilde que nos chega De Profundis, uma longa carta que escreveu ao seu amado, dois anos após ter sido condenado por práticas homossexuais. No entanto, esta está longe de ser uma carta de amor, e muito menos um testemunho pessoal de contornos homoeróticos. Wilde envia para o mundo fora das grades uma missiva na qual sintetiza as conclusões a que lhe permitiram chegar dois anos sem liberdade – conclusões sobre si, sobre o Outro, sobre Cristo e sobre a Arte.
But while I see that there is nothing wrong in what one does, I see that there is something wrong in what one becomes. It is well to have learned that. (Wilde, 1905, p.30)
A moral não é, como se sabe, o ponto forte de Wilde – nem o próprio está interessado em trabalhar nesse sentido. Para Wilde, a moral é um conjunto de regras arbitrárias e desprezíveis, obstáculos no caminho para a concretização grandiosa e plena de um indivíduo. Não há, portanto, nestas páginas, lugar para o arrependimento sofrido de quem se autoexamina e reprova pela forma como o seu comportamento difere do dos demais. Existe, em vez disso, uma clareza de espírito face à importância de analisar as circunstâncias que o conduziram ao ponto em que se encontra e de aprender com elas a ser um homem mais sábio, completo e ciente de si. Nas palavras do próprio, “[t]o regret one's own experiences is to arrest one's own development” (Wilde, 1905, p.43).
Every single work of art is the fulfilment of a prophecy: for every work of art is the conversion of an idea into an image. Every single human being should be the fulfilment of a prophecy: for every human being should be the realisation of some ideal, either in the mind of God or in the mind of man. (Wilde, 1905, p.77)
Wilde equipara Cristo a um poeta a quem foi retirado o individualismo - uma alma dinâmica e sensível, um homem ideal na forma como existiu para si e para o seu próximo. Na conceção do autor, a espiritualidade permeia a arte, do mesmo modo que permeia o ser humano. Um e outro são materializações de um ideal, concretizações de uma intenção que carregam no seu conteúdo o botão idílico da sua génese. Por isso, são fonte de desgosto para Wilde as igrejas protestantes, os sonetos de Petrarca e a tragédia formal francesa, em contraste com as saudosas lendas do Rei Artur, com catedrais como a de Chartres e com a Commedia de Dante. O racionalismo renascentista esventrou a paisagem cultural europeia do espírito cristão que a alimentava e substituiu-o por regras obsoletas. É esse o movimento que Wilde considera culpado pelo marasmo anímico dos seus contemporâneos, e é nítido o seu sentimento de alienação e insatisfação em relação à massa humana cuja estreiteza espiritual a impede de o compreender.
Art is a symbol, because man is a symbol. (Wilde, 1905, p.61)
No final de contas, é a arte que move Wilde e é a arte que, para Wilde, move o mundo. Pois que importam a metafísica e o cálculo matemático, se é Platão que nos fala junto ao ouvido, através dos milénios? A arte enquanto além-do-real, enquanto encarnação da ideia, enquanto sublimação do espírito, é quanto-baste para sustentar a humanidade. É o ponto de toque entre ela e o divino.
E De Profundis é prova disso.
(citações retiradas da edição de De Profundis, de Oscar Wilde, realizada pela Methuen&Co. Ltd. em 1905)