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H-orizontes

H-orizontes

29
Jul24

“Dora Bruder” – Patrick Modiano

Helena

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A partir do anúncio de um jornal parisiense que comunicava o desaparecimento de Dora Bruder, de quinze anos, em dezembro de 1941, Patrick Modiano lança-se num processo de busca obsessiva pelos pormenores da história desta rapariga, com a qual partilha o espaço geográfico em que se movimenta, ainda que a décadas de distância. Pouco a pouco, vão-se desvendando os contornos da figura misteriosa de Dora Bruder, uma adolescente de ascendência judaica que o seu pai decidiu proteger, não incluindo o seu nome no recenseamento obrigatório dos judeus e fazendo-a ingressar no internato do Sagrado Coração de Maria. Foi desta instituição que Dora fugiu, sem se saber como nem por que motivo. Deixa-se ao leitor a liberdade para preencher as lacunas que os dados concretos deixaram em branco, e para fazer o seu papel nesta cadeia de passagem do testemunho que o tempo não deve quebrar.

Este livro cativou-me pelo conceito de que parte e desiludiu-me pela sua concretização. Pensava que o interesse do autor pela história de vida de uma rapariga parisiense judia o levasse a tecer uma narrativa focada nela, em que preenchesse as lacunas e desse corpo a uma história sólida envolvente. Em vez disso, Modiano descreve o seu processo de busca pela identidade de Dora Bruder, um processo bastante centrado nas interseções da vida desta com a do autor e no estabelecimento de relações entre datas que permitem criar um pequeno friso cronológico do que terá sido grande parte da sua vida, sem, no entanto, a aprofundar em pormenores. A fuga de Dora do pensionado do Sagrado Coração de Maria é um dos períodos deixados em branco que, a meu ver, tinham potencial para dar origem a uma narrativa mais densa. As poucas informações acerca dela e o facto de Modiano ter um especial interesse na sua história por partilhar os espaços em que ela se movimentava, mas que o leitor não frequenta, levam a que a relação do leitor com a figura de Dora não seja tão intensa como aquela que seria de esperar. Para além disso, e como consequência da familiaridade do autor com o espaço em que se movimenta, há muitas referências a ruas parisienses que tive alguma dificuldade em visualizar, já que aos nomes das ruas não se associam descrições.

O que achei mais interessante nesta narrativa foram as pequenas histórias de pessoas que pontuaram a pesquisa de Modiano e aqui encontraram uma voz. Os escritores Friedo Lampe e Felix Hartlaub, um apolítico e um combatente a favor de uma causa que lhe tinha sido imposta, são imortalizados em Dora Bruder como vítimas da máquina de morte que colheu as vidas de homens que, como eles, apenas se interessavam pela beleza do pôr do sol e pelos detalhes do dia-a-dia das pessoas comuns. Fica, também, para a história a ação das “amigas dos judeus”, mulheres arianas revoltadas contra as medidas antijudaicas que usavam estrelas de David ao peito e em volta da cintura, em modo de protesto.

Pode ser que eu e Dora Bruder nos tenhamos cruzado numa má altura e que eu possa regressar a ele mais tarde, com outros olhos. No fundo, gostei deste livro e recomendo-o pela forma inovadora como conta uma história que poderia corresponder à de muitas outras vidas perdidas no caos do Holocausto, sem cair em clichés. A dureza do passado é, de certo modo, atenuada pelo facto de o leitor ser confrontado com factos em segunda mão – o autor encontrou estes registos e transmite-nos as suas conclusões. Em suma, é um livro curto que nos leva numa viagem no tempo e no espaço, até aos dias de pesadelo nazi na Cidade Luz.

26
Ago23

“Noite” – Elie Wiesel

Helena

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No início do ano de 1944, a cidade romena onde Elie Wiesel vivia com a sua família ainda não tinha sido confrontada com a ameaça do fascismo que lavrava pelo solo europeu, em plena Segunda Guerra Mundial. Contudo, nenhuma povoação da Roménia viria a escapar à ocupação alemã que se seguiu, na primavera de 1944, a um pacto entre os nazis e o governo.

Assim, com apenas quinze anos, Elie Wiesel é enviado para o campo de concentração de Auschwitz, onde é separado da mãe e dos irmãos. Ficou apenas com o pai, de quem recusou separar-se até ao final da sua jornada. Apesar de a reta final da Segunda Guerra Mundial começar a vislumbrar-se no horizonte, as atrocidades perpetradas nos campos de concentração não eram, de forma nenhuma, menos degradantes. O frio, a fome e a exaustão andam de braço dado com Elie e os seus companheiros de campo, durante um ano que pareceu uma noite e cujo fim não chegou a ser presenciado por todos.

Noite faz parte do corpus de documentos e ações de sensibilização que contribuíram para que o Nobel da Paz de 1986 fosse atribuído a Elie Wiesel.

Na primeira metade da obra, aquilo que mais me impactou foi a perda de fé do narrador no Deus a que se dedicava integralmente antes de ter sido deportado. Quando confrontado com o completo desrespeito pela dignidade humana de que os prisioneiros do campo de concentração eram vítimas, Wiesel sentiu-se abandonado pela divindade que julgava misericordiosa e boa. O narrador chega, aliás, a afirmar que os Homens são superiores a Deus, por possuírem força de espírito suficiente para continuarem a adorá-Lo, mesmo quando Ele permite que o seu povo fosse condenado ao sofrimento e à miséria.

Na segunda metade, é gritante o poder da degradação extrema das condições de vida na desintegração dos laços que se pensavam inquebráveis entre indivíduos. A degradação da relação entre pai e filho, em particular, é posta em evidência enquanto resultado da necessidade crescente de apelar aos instintos mais primários de sobrevivência. O próprio autor, depois de uma longa jornada ao longo da qual se recusou a separar-se do seu progenitor, confessa-se aliviado após a sua morte, por permitir que ele concentrasse toda a sua energia na sua própria sobrevivência.

Um dos aspetos mais perturbadores deste relato é a descrença da população na terra-natal de Wiesel em relação à chegada do fascismo. A guerra alastrava pela Europa, mas nunca chegaria à Roménia. Os fascistas chegaram à Roménia, mas nunca chegariam às povoações mais pequenas. A repressão chegou às aldeias, mas o perigo para os judeus não podia ser real. A postura de negação em relação à ameaça do fascismo existia em 1944 e existe nos nossos dias, e é importante que consigamos identificar estes padrões para podermos prevenir a repetição de um dos episódios mais negros da História europeia.

Noite é mais um livro do cânone das narrativas sobre o Holocausto, um relato cru e revoltante de uma das tantas vidas que devemos recordar, com respeito e atenção, nos tempos que correm e nos que estão por vir.

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