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H-orizontes

H-orizontes

18
Mar23

“Não se pode morar nos olhos de um gato” – Ana Margarida de Carvalho

Helena

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Em finais do século XIX, já depois da abolição da escravatura, um navio que traficava escravos naufraga na sua travessia entre a Baía e o Rio de Janeiro. Após uma violenta disputa em pleno mar pelo mísero espaço disponível na jangada salva-vidas, sete pessoas dão à costa, numa praia rodeada por falésias altas, sem vestígios de presença humana. Apesar do desânimo geral, rapidamente estabelecem regras básicas e uma hierarquia de trabalho: o capataz regula o consumo na única fonte de água potável da praia, um olho de água que a maré tapa e descobre, enquanto os outros recolhem moluscos para comer.

Para surpresa de todos, mais um sobrevivente alcança a praia deserta: um dos escravos do porão do navio, maltratado e recebido com o horror e o ódio dos restantes náufragos. Todavia, as circunstâncias não dão margem para conflitos, e todos se juntam no único propósito de seres humanos numa situação limite: a sobrevivência.

Do trágico presente numa praia brasileira, viaja-se pelo espaço e pelo tempo para se dar a conhecer o passado dos náufragos infelizes: um jovem que vive desde sempre sob o peso da culpa; um clérigo cujo nascimento milagroso não chegou para melhorar a situação familiar precária; um criado que ainda sente nas narinas o cheiro do Mondego e esconde um grande segredo sob o seu otimismo; uma mulher criada por engordadores de escravos, a quem apenas restava tentar imitar os requintes de uma Europa que nunca conheceu; um negro que viveu a crueldade da exploração, que viu morrer os amigos e esvair-se a sua dignidade; uma menina a quem o destino foi esfarrapado por um pai de afetos abusivos; e um capataz cujo olhar seduzia por enquanto qualquer mulher. Como conseguirão sobreviver pessoas tão distintas, cada um consumido pelo seu próprio desespero?

“Não são os deuses que dormem, nós é que os sonhamos.”

O segundo livro de Ana Margarida de Carvalho, publicado em 2016 pela Teorema, conjuga com mestria a representação da violência na época histórica retratada e do sofrimento intemporal inerente à condição humana. Aos horrores da escravatura e do tráfico humano somam-se questões de identidade, de culpa, de problemas de família e do grande desespero que acompanha o instinto de sobrevivência.

Apesar de, aparentemente, a principal linha narrativa do romance ser essencialmente estática, o fator mais impactante desta história é o conteúdo das analepses que revelam o passado de cada uma das personagens, o maior ou menor fardo que cada um deles carrega na sua consciência. Ainda que todos provenham de origens drasticamente distintas, é numa situação-limite que as suas diferenças se esbatem e é possível que se percecionem como seres humanos dominados pela necessidade de sobreviver. É essa a mensagem mais poderosa do romance: por mais diferentes, falíveis e imperfeitos que sejamos, une-nos a nossa condição humana e o nosso destino inexorável.

Esta é mais uma leitura desafiante, principalmente devido ao estilo característico de Ana Margarida de Carvalho, que defende que não se deve simplificar algo que pode ser apresentado de forma complexa, e que é nitidamente influenciado por Saramago e António Lobo Antunes.

14
Mar23

“Kafka à beira-mar” – Haruki Murakami

Helena

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Em Kafka à beira-mar, Murakami leva-nos a acompanhar a jornada de Kafka Tamura, um rapaz de quinze anos que decide fugir de casa em busca da sua mãe e da sua irmã, das quais não guarda quaisquer recordações. Durante a viagem, conhece Sakura, uma rapariga mais velha que lhe deixa o seu contacto e a inquietante hipótese de que fosse ela a sua irmã esquecida.

Pouco tempo depois da sua chegada a Takamatsu, Kafka descobre o sítio que o acolheria durante a maior parte da sua estadia: uma biblioteca privada, cheia de livros com os quais podia ocupar o seu tempo. Aí conhece Oshima, o empregado da entrada, cuja cumplicidade o acompanhará ao longo das reviravoltas que a sua busca trará à sua vida.

Paralelamente à linha narrativa de Kafka, e aproximando-se lentamente dela, surge a história de Nakata, um velho de Nakano cujas capacidades cognitivas se viram reduzidas após um misterioso acidente com crianças numa floresta, na altura da Segunda Guerra Mundial. Apesar de não conseguir processar e produzir ideias complexas, Nakata possui a capacidade excecional de comunicar com gatos, pelo que é frequentemente encarregado de trazer de volta a casa gatos de estimação perdidos. É numa das suas buscas que Nakata dá por si em casa de Johnie Walker, uma personagem bizarra que se dedica a matar gatos para recolher as suas almas. Confrontado com a atitude de Johny, o velho toma uma atitude que nunca julgara possível e vê-se obrigado a fugir de Nakano, sem saber para onde.

Numa narrativa mágica e cativante, as sendas de duas personagens entrecruzar-se-ão de formas improváveis e caberá ao leitor descobrir o que une um leitor órfão e um velho que comunica com gatos.

“Things outside you are projections of what's inside you, and what's inside you is a projection of what's outside. So when you step into the labyrinth outside you, at the same time you're stepping into the labyrinth inside.”

Haruki Murakami, um escritor de referência no realismo mágico japonês, constrói em Kafka à beira-mar um enigma cuja explicação fica ao encargo do próprio leitor. Este não é um livro que recomendaria aos leitores que (como eu) gostam de histórias sem pontas soltas. Não faltam pontas soltas neste romance, cheio de significados ocultos e tramas que apenas podem ser reconstituídas pela imaginação de quem lê, e dotado de um forte sentido metafórico que não consegui compreender totalmente.

Entretecidas na trama narrativa encontram-se referências a temas como a filosofia, a música e a literatura, que enriquecem este livro e captam de uma forma intensa a relação que pode existir entre as pessoas e as manifestações culturais e filosóficas, assim como a sua importância para a compreensão da vida e da sociedade.

Pude reparar na tendência frequentemente apontada a Murakami de sexualizar as suas personagens femininas, todas elas retratadas com uma carga predominantemente erótica e com um papel fortemente sexual nas relações que estabelecem com as personagens masculinas do romance – por vezes em relações chocantes pelo fosso etário que separa os intervenientes.

Ainda assim, e apesar de o final não ter correspondido às expectativas que que o romance começou por criar, considero que este livro é uma boa escolha para uma iniciação em romances de Murakami, um conjunto de peças de puzzle sem um desenho para nos orientar em direção à sua solução.

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