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H-orizontes

H-orizontes

02
Dez23

“Giovanni’s Room” – James Baldwin

Helena

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Esta narrativa de amor falhado inicia-se com David, a personagem principal, na sua casa no sul de França, contemplando as consequências das suas ações levadas a cabo durante os meses que passou sozinho em Paris, enquanto a sua noiva viajava por Espanha.

Recuando no tempo, acompanhamos desde o início a jornada conturbada de David na sua relação com um jovem barista que conheceu numa noite em que acompanhava um dos seus amigos parisienses. Giovanni, belo e sedutor, desperta em David impulsos que, ainda que não sentidos pela primeira vez, ele tende a reprimir e a contrariar. Com o passar do tempo, a sua intimidade com Giovanni aumenta, assim como o amor genuíno que este nutre por David. Contudo, David está preso dentro de si, preocupado com o regresso de Ella, com os preconceitos da sociedade e com a sua autoperceção. Giovanni é um rapaz vulnerável na Paris buliçosa e sem piedade, mas também o seu casamento com Ella balança, periclitante, sobre a necessidade de encaixar numa sociedade padronizada e de cumprir os sonhos que alimentara desde sempre. Encurralado entre mundos mutuamente exclusivos, David é forçado a encontrar-se com quem ele realmente é.

“If you cannot love me, I will die. Before you came I wanted to die, I have told you many times. It is cruel to have made me want to live only you make my death more bloody.”

Giovanni’s Room (O Quarto de Giovanni em português) não é um livro que recomendaria a leitores que precisam de gostar das personagens que povoam os romances que leem. David é uma personagem imperfeita e falível que despoleta no leitor um cocktail de emoções, muitas delas negativas. É um narrador egoísta e perturbado que deixa que as consequências do seu conflito interno reverberem naqueles que o rodeiam. Por errar uma e outra vez, por tentar gerir todas as esferas da sua vida e não conseguir por não saber como o fazer, por não ser capaz de tratar corretamente aqueles que lhe são próximos por nem sequer se perceber a si próprio, David é mais do que uma personagem de papel e tinta, é a voz real daqueles que tentam trilhar um caminho na vida enquanto se descobrem a si e aos outros.

O amor e as suas diversas facetas são o pilar da história conturbada de David em Paris. O amor não correspondido, o amor carnal, o amor incondicional, o amor imaginado e o amor prometido entrecruzam-se nas relações que as personagens estabelecem entre si. Como substrato desta complexidade de sentimentos amorosos, encontramos o problema da indefinição da identidade sexual de um indivíduo numa sociedade heteronormativa que o influencia grandemente. Não fosse a insistência de David em abafar os impulsos sexuais que ele sabia serem vistos como condenáveis, não teria de gerir um casamento insatisfatório enquanto torturava Giovanni com a volubilidade dos seus sentimentos. O efeito borboleta despoletado pelas ações do narrador nas vidas de todos os que o rodeiam fez-me refletir acerca do impacto que cada um de nós pode ter naqueles que nos são queridos – muitas vezes, sem que nos apercebamos disso.

Esta leitura deixou-me a braços com uma grande tristeza - uma tristeza boa, se é que isso é possível. Só uma narrativa bem tecida pode despertar no leitor sentimentos reais em relação a personagens fictícias. Esta não é uma história com um final feliz, assim como não o são as de muitas vidas.

Por se tratar de uma narrativa circular, só no fim podemos entender por completo a situação na qual David se encontrava no início do romance. Foi com outro olhar que regressei às primeiras páginas e revi a opinião que formara no início de um narrador deslocado, inocente e preocupado. Este é daqueles livros que pede uma releitura que se afigura tão boa ou melhor do que a primeira.

09
Fev22

“Madame Bovary” – Gustave Flaubert

Helena

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Emma Bovary, a personagem que dá nome a este romance, é uma jovem sonhadora que cresceu mergulhada nas histórias de amor que lia às escondidas pelos recantos do convento onde era educada. Depois da morte da sua mãe, Emma regressa a casa, convencida de que já experienciara todas as emoções que lhe seria dado sentir na vida.

Charles Bovary recebera a primeira instrução com um padre, mas acabara por se formar em medicina.  Um dia, Charles é chamado para socorrer Rouault, o pai de Emma, que se encontrava doente. A chegada do médico é para a rapariga uma lufada de ar fresco, uma quebra no tédio que a leva a deslizar para uma afeição que supõe próxima das paixões dos romances que lia.

Depois de casar com Charles, porém, Emma, agora Madame Bovary, descobre que a sua relação se encontra longe daquilo que tinha idealizado. Apesar de Charles ser totalmente dedicado a ela, de a mimar e de a adorar, Emma não consegue deixar de se sentir entediada e desiludida com a figura rude e desajeitada do marido. Perante esta vida estagnada na infelicidade, Madame Bovary e os seus rasgos românticos não resistem a cair na tentação excitante do adultério.

Dominada pelos seus ideais de paixão, caprichosa e sem olhar a gastos, Emma percorrerá, sem dar por isso, o caminho que a conduzirá à ruína. Afinal, a vida não é um conto de fadas.

Apesar de termos acabado de entrar no segundo mês do ano, tenho a certeza de que Madame Bovary estará entre as leituras mais divertidas de 2022. Apesar de não ser um romance trepidante, dei por mim a perder a noção do tempo enquanto acompanhava as alegrias e desgraças de Emma, peripécia atrás de peripécia, mais incrédula a cada passo que ela dava em direção à sua própria desgraça.

Conjugando um realismo leve e um determinismo bem marcado, Flaubert pinta em Madame Bovary um preciso retrato de época: a persistência do ensino eclesiástico, a propagação dos valores de Voltaire, as experiências da medicina no século das luzes e o adultério como uma via de escape para a infelicidade matrimonial estão no centro deste clássico que cativou o interesse de gerações.

Esta leitura não poderia ter sido feita numa altura mais apropriada, uma vez que tenho vindo a estudar o fenómeno da literariedade e o processo de leitura. Emma é um bom exemplo da falta de domínio do conceito de ficcionalidade. Convencida de que os romances idílicos que lia podiam ser transferidos para a realidade, Madame Bovary perde a noção de que as expectativas sobre as quais construiu a sua vida não passam de uma ilusão presa entre as páginas dos livros que leu, e todo o enredo gira em torno das consequências disso.

Assim, este clássico oitocentista surpreendeu-me pela positiva e revelou-se uma das experiências de leitura mais prazerosas dos últimos meses.

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