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H-orizontes

H-orizontes

12
Set24

“O lodo e as estrelas” – Telmo Ferraz

Helena

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“A todos os que trabalharam em túneis de minas ou barragens e hoje têm silicose.” Esta é a dedicatória de O lodo e as estrelas, um conjunto de entradas de diário do padre Telmo Ferraz que nos transportam para as arribas mirandesas (em particular, as da aldeia de Picote) durante a construção das barragens hidroelétricas do Douro. Através de pequenos quadros, abrem-se as portas das barracas precárias onde viviam os trabalhadores famintos, pobres, doentes e mal pagos. O padre Telmo, observador no terreno, conheceu, acompanhou e ajudou todas as pessoas mencionadas neste livro e muitas mais que não são mencionadas, mas que ainda hoje são lembradas nas pequenas povoações vizinhas das centrais. Esta é a história daqueles que morreram debaixo de telhados de papel, de estômago vazio, depois de dias a tossir sangue.

“Pensei: anquanto chobir, este Probe tem de quemer la lhama de ls caminos, cun l fiel que le trai la lhembráncia cuntina de la mulher i de ls filhos.”

(“Pensei: enquanto chover, este Pobre tem de comer a lama dos caminhos, com o fel que lhe traz a recordação contínua da mulher e dos filhos.”)

Lancei-me para a leitura de O lodo e as estrelas apenas com o conhecimento de que se tratava de um relato fidedigno das condições de vida dos trabalhadores na construção das barragens do Douro. Surpreendeu-me, por isso, quando me deparei com uma narrativa constituída pelas entradas do diário do Padre Telmo Ferraz, em vez de com um registo narrativo convencional. Mas, como diz o famoso slogan, “primeiro estranha-se, depois entranha-se”, e rapidamente se me afigurou como a melhor maneira para transmitir a brutalidade da realidade descrita pelo pároco impotente face à miséria absoluta em que viviam os que o rodeavam.

O facto de esta ser uma edição bilingue (em português e em mirandês) enriquece imensamente o conteúdo do livro, já que isso permite que a história se ancore na realidade tanto geográfica como linguística. Os trabalhadores das barragens, vindos de fora, não falavam mirandês – pelo contrário, a discriminação e a troça sentida pelos locais relativamente à sua língua resultou numa tentativa de reprimir o seu uso nas gerações mirandesas seguintes. Hoje, a valorização da língua mirandesa (em muito impulsionada pelo tradutor deste livro, Amadeu Ferreira, de pseudónimo Francisco Niebro) e a sua consequente reivindicação pelos habitantes das terras de Miranda têm vindo a fomentar a tradução de obras canónicas, como a Bíblia, e locais, como O lodo e as estrelas.

A dureza das circunstâncias transmitidas para o mundo pelo Padre Telmo Ferraz é tal que O lodo e as estrelas foi censurado pelo regime salazarista, que vigorava aquando da sua publicação. Esse facto reforça a importância desta leitura, um olhar pungente para o avesso da narrativa gloriosa da revolução hidroelétrica do Estado Novo. Em português ou em mirandês, as palavras deste livro são as estrelas cuja luz ilumina aqueles cujas vidas e cujas vozes se perderam no lodo.

 

23
Nov22

“O gesto que fazemos para proteger a cabeça” – Ana Margarida de Carvalho

Helena

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O gesto que fazemos para proteger a cabeça é uma história de vingança, de abandono e de condenação, cuja ação se concentra entre dois entardeceres.

A ação inicia-se com a jornada de regresso da personagem de Simão Neto à aldeia miserável de Nadepiori, um recanto agreste e ventoso do Alentejo. Enquanto Simão tenta regressar à sua aldeia sem perder a mercadoria de azeitonas recém-apanhadas que transporta, é atacado por uma matilha de cães selvagens a que sobrevive graças à intervenção de um estrangeiro misterioso que se faz acompanhar por um arpão – um homem do mar regressado à terra. Constantino, o sétimo filho de sete irmãos, regressava à sua terra natal depois de sete anos de exílio, determinado a aplicar justiça pelas próprias mãos.

Através de uma narrativa sinuosa, Ana Margarida de Carvalho cede-nos o lugar do observador da vida no interior do Alentejo em pleno Estado Novo, inserindo-nos numa teia de histórias de vida cujos desfechos não foram aqueles que eram esperados, e cuja base é a luta pela vida numa aldeia em que se vive à força, à mercê da liderança impiedosa do povo vizinho.

“porque só um humano entende tanta desumanidade”

O gesto que fazemos para proteger a cabeça é um livro complexo, com seis capítulos e seis pontos finais, sugerindo uma autêntica caminhada, a infinidade laboriosa de um carreiro de formigas, “encarrilhadas umas nas outras, sem parar, como as linhas de um livro”.

Não gostei tanto deste romance como do Que importa a fúria do mar, da mesma autora, uma vez que a sua ação é menos relevante para o seu valor do que a forma como a autora escolhe construir a narrativa – um puzzle de informações, por vezes quase veladas, que me fizeram precisar de o ler duas vezes.

Apesar disso, despertou-me um interesse particular a forma como a conversa entre as mulheres junto ao antigo depósito de água da aldeia revela que é nelas que reside a liderança das vidas em Nadepiori. São elas que estão por trás das decisões e acima das tramas da pobreza, e elas que mantêm as famílias vivas neste fim de mundo – um papel fundamental para a ordem universal das coisas, muito próxima da noção de Saramago de que “esta conversa é que segura o mundo na sua órbita, não fosse falarem as mulheres umas com as outras, já os homens teriam perdido o sentido da casa e do planeta” (SARAMAGO, José - Memorial do Convento. Lisboa: Editorial Caminho, 1982).

Chegados ao final do livro, podemos concluir que “o gesto que fazemos para proteger a cabeça” é, na verdade, uma reação involuntária face ao perigo, um reconhecimento instintivo da vulnerabilidade do Homem, preso num corpo sem saída e condenado à tirania das forças que o ultrapassam.

“a veces hay que caer con el fin de saber dónde estamos”

“uma viagem é sempre deixar para trás”

09
Nov22

“Que Importa a Fúria do Mar” – Ana Margarida de Carvalho

Helena

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Que Importa a Fúria do Mar, publicado pela primeira vez em 2013, foi obra finalista do Prémio LeYa em 2012 e venceu, por unanimidade, o Grande Prémio de Romance e Novela APE-DGLAB de 2013.

Eugénia, jornalista ambiciosa permanentemente remetida para os programas a que ninguém presta atenção, depara-se com mais um trabalho que não a fascina nem atrai: entrevistar um idoso sobrevivente do campo de concentração do Tarrafal. “Veio parar a túmulo bafiento. A um viveiro de ácaros, camadas geológicas de ácaros, moscas e cogumelos das infiltrações.” Aquilo que Eugénia não espera é que Joaquim da Cruz, um homem apanhado no lugar errado à hora errada, na revolta comunista da Marinha Grande de janeiro de 1934, desperte nela um fascínio que a fará regressar, uma e outra vez, à casa de Joaquim e às suas palavras esparsas e vagarosas.

Assim, de entre a repressão de um regime ditatorial, a jornalista vê surgir uma história de amor entre um homem condenado e uma mulher que lhe prometeu uma espera eterna. “O Tarrafal? Mas isso é uma história de amor…”

“Querida irmã, há tantas coisas bonitas que ainda não há.”

Neste romance, Ana Margarida de Carvalho dá voz às vítimas do regime salazarista que a repressão política e intelectual enviou para os horrores do campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. No entanto, Que Importa a Fúria do Mar ultrapassa os tormentos dos injustamente condenados à violência e à exploração, abrangendo também as consequências das infâncias atribuladas, o poder das paixões e o impacto que pequenos acasos podem ter numa vida inteira.

As páginas deste romance transbordam de referências intertextuais, como a Fernando Pessoa, aos seus heterónimos e a Bob Dylan. Num fluxo de consciência entretecido com a narrativa, formas de expressão populares e eruditas formam uma teia rica de linguagem e estilo que fazem deste livro uma viagem pelas heranças cultural e literária portuguesas.

Esta narrativa contraria o sentido comum do mar para os artistas e os poetas: um meio de evasão e libertação, cheio de oportunidades e de vida. Que Importa a Fúria do Mar apresenta o mar como algo que reprime e aprisiona os homens. Uma sensação de claustrofobia atravessa a obra através do paralelo entre o mar que impossibilita a fuga dos prisioneiros no Tarrafal e o mar que atemoriza a infância da narradora, encerrada no quarto das traseiras da casa dos tios, onde a mãe a deixara antes de prosseguir a sua vida.

Que Importa a Fúria do Mar é um livro para ler e reler, um exemplo de como a literatura é o resultado da conjugação de influências antigas e técnicas narrativas novas, desafiando os leitores a voltar ao passado, ainda que com os pés bem assentes no presente.

“A mim, o não-sentido da poesia basta-me.”

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