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H-orizontes

H-orizontes

29
Ago24

“Slaughterhouse-Five” – Kurt Vonnegut

Helena

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Kurt Vonnegut partiu da sua experiência enquanto prisioneiro de guerra na Segunda Guerra Mundial para escrever Slaughterhouse-Five. Este livro tem como personagem principal Billy Pilgrim, um soldado americano que ganhou a capacidade de viajar no espaço e no tempo após ter sido raptado por extraterrestres do planeta Tralfamadore.

Num vaivém de saltos temporais, abrem-se janelas de onde se pode espreitar o passado e o futuro de Billy. Destacam-se pequenos flashes da sua infância, descrições de quando foi capturado pelos alemães em solo europeu e transportado para um campo de prisioneiros, momentos da sua vida como optometrista, recordações da sua lua de mel, relatos crus da sobrevivência ao bombardeamento aliado de Dresden e a sua sobrevivência a um acidente de avião que desencadeará a sua urgência em contar ao mundo o que aprendeu em Tralfamadore. Mais do que a possibilidade de viajar no espaço e no tempo, interessa a Billy levar às pessoas a conceção da vida mais ampla dos Tralfamadorians: o tempo ocorre simultaneamente, todos os momentos estão estruturados desde sempre para ocorrer da forma em que ocorrem, e a morte é uma circunstância pontual que não interfere com todos os momentos da vida que existem no mesmo plano de tempo, como quem olha para as montanhas numa cordilheira.

Constrói-se, assim, um mosaico de episódios aparentemente desorganizados e finitos, mas, na verdade, coesos e intemporais.

“There are almost no characters in this story, and almost no dramatic confrontations, because most of the people in it are so sick and so much the listless playthings of enormous forces. One of the main effects of war, after all, is that people are discouraged from being characters.”

Quanto mais leio acerca de Vonnegut e da teia de significações que vive por trás da manta de retalhos de Slaughterhouse-Five (Matadouro Cinco na edição portuguesa), mais esta obra me fascina. O meu deslumbramento começou com a descoberta dos acontecimentos de 13 de fevereiro de 1945 em Dresden, que a narrativa aliada abafou durante vários anos e que, atualmente, é um foco de debate pelas questões éticas que levanta. Afinal, milhares de toneladas de explosivos mataram 25 000 pessoas numa cidade comummente considerada segura (menos do que o meio milhão apregoado pela propaganda nazi, mas, ainda assim, um número que nos deixa, no mínimo, desconfortáveis). Vonnegut, enquanto prisioneiro de guerra que testemunhou esta demonstração de suprema insensibilidade humana, transfere para Slaughterhouse-Five o profundo ceticismo resultante do trauma profundo de quem foi obrigado a resgatar os corpos de civis dos escombros de Dresden. Para Vonnegut (e, consequentemente, para a personagem de Billy Pilgrim), a existência da guerra e das atrocidades que a envolvem é inevitável, devido à podridão da natureza humana.  Se isto levou alguns leitores a pôr em causa a mensagem anti-bélica deste romance, parece-me óbvio que se trata precisamente do contrário: Slaughterhouse-Five é um espelho de uma mente lavrada por cicatrizes mal saradas, provocadas por conflitos que condenam gerações jovens inteiras. Jovens, sim, já que, como Vonnegut sublinha no subtítulo The Children’s Cruzade e ao longo da narrativa, são os mais novos que constituem o maior volume de soldados e é a eles que se saqueiam as vidas em prol de um “bem maior” vazio. Billy Pilgrim é, de facto, um anti-herói, mas pela dessensibilização e pela apatia que caracterizam não só alguém que foi enviado para um contexto que não procurou, mas também alguém incapaz de processar a sequência de experiências traumáticas de um prisioneiro de guerra de outra forma que não a sua supressão pela indiferença.

Este é também, portanto, um livro sobre o livre arbítrio (ou a ausência dele). A inevitabilidade da dor, da morte e dos conflitos encontra o seu reflexo na filosofia dos Tralfamadorians. No entanto, se, por um lado, a impossibilidade de escapar à forma como todos os momentos estão estruturados parece castradora, existe conforto na visão da dor como um ponto numa cadeia onde existem simultaneamente muitos outros pontos de momentos de alegria. Mesmo quando tudo parece correr mal, há momentos no passado e no futuro em que esse não é o caso, e esses existem também no presente. Vonnegut transfere essa visão quase cubista da vida para os mecanismos literários que fazem de Slaughterhouse-Five um labirinto de muitas portas, onde se reencontram elementos de alguns episódios noutros que lhes são alheios, padrões de uma tessitura bem engendrada nos bastidores do caos. A cada morte, quer de homens, de lêndeas ou de champanhe: “so it goes”. E inesperadamente, a cada canto, ancorando o leitor à inescapável realidade, uma intervenção de uma personagem seguida de um “That was I. That was me. That was the author of this book.”.

Tal como os livros de Tralfamadore, conjuntos de símbolos em representação de momentos não relacionados que se revelavam objetos de maravilhamento quando olhados como um todo, também Slaughterhouse-Five é um mosaico de episódios aparentemente aleatórios e quase tragicómicos que, à distância de uma análise global, desabrocham num universo de sentidos.

05
Ago24

“The Late Mattia Pascal” – Luigi Pirandello

Helena

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The Late Mattia Pascal, editado em Portugal em junho deste ano pela Relógio d’Água, sob o título O falecido Mattia Pascal, é um romance sobre um homem que morre duas vezes, nenhuma delas correspondendo à morte convencionalmente conhecida. De facto, Mattia Pascal, um homem infeliz, casado com a mulher cobiçada pelo seu melhor amigo na sua infância, azucrinado pela sogra, arrasado pela morte da sua mãe, seguida da das suas duas filhas, fica tão surpreendido como qualquer habitante de Miragno quando encontra, no jornal, durante uma ausência prolongada, a notícia do seu suicídio.

Interpretando a identificação errada do cadáver como um estratagema da sua esposa para se livrar de si, Mattia decide aproveitar o seu estatuto de (teoricamente) morto para iniciar uma nova vida, sem amarras nem preocupações. Pouco a pouco, Mattia constrói e consolida uma nova identidade, a de Andrea Meis, com um passado diferente do seu e, se tudo corresse bem, também um futuro diferente. Contudo, a sua ilusão de liberdade não dura muito, já que depressa se apercebe de que a sua condição o impede de realizar a maior parte das ações que as pessoas vivas tomam como garantidas: adotar um cão, ou procurar apoio das autoridades após ter sido vítima de um furto. Chegado a Roma, hospedado em casa de uma família e apaixonado pela filha do patriarca, manter a integridade da sua nova persona torna-se cada vez mais difícil.

“A deep, painful pity came over me, pity for her and for me, a cruel pity which drove me inexorably to caress her, to caress in her my own pain, which could only find comfort in her, even though she was its cause.”

Pouco antes de iniciar a leitura deste livro, que me foi recomendada por amigos, deparei-me com a informação de que Pirandello, nobel da literatura, era célebre pelo seu trabalho enquanto dramaturgo. Isto fez-me recear que tivesse escolhido a ponta do novelo errada para começar a explorar a sua bibliografia. No entanto, não foi isso que aconteceu. Pelo contrário, a minha leitura de The Late Mattia Pascal foi muito agradável e divertida.

Desde o princípio, o estilo de Pirandello transmitiu-me uma sensação de familiaridade pela sua proximidade ao de Machado de Assis. Isto pode parecer contraditório, já que eu gostei muito deste livro, mas não gostei da minha experiência com o Dom Casmurro de Machado, por este último levar o chamado “derrubar da quarta parede” a um ponto que, a meu ver, é exagerado. Ao tecer comentários direcionados ao leitor, sem que estes se intrometam na relevância da narrativa (ficou-me na memória para a eternidade o excerto em que Machado reconhece que não devia ter escrito o capítulo que o antecedia), Pirandello fez-me rir e sorrir, uma e outra vez, e estabelecer uma afinidade genuína pela voz narrativa.

Fiquei um pouco desapontada com o rumo que a história tomou após a chegada de Mattia a Roma, mas o momentum narrativo que me carregou ao longo do início e do fim do livro acabaram por compensar a estagnação do meu entusiasmo a meio. Isto trata-se, claro, de uma reação completamente subjetiva. Recomendo este livro, tal como me foi recomendado, como uma obra que orbita os conceitos de identidade e de máscara, refletindo acerca da forma como somos condicionados por uma história que nos antecede, quer para nos relacionarmos com os outros, como para estarmos em paz com a identidade que associamos a nós próprios. Parece-me apropriado que a esta leitura se siga a do machadiano As Memórias Póstumas de Brás Cubas.

 

29
Jul24

“Dora Bruder” – Patrick Modiano

Helena

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A partir do anúncio de um jornal parisiense que comunicava o desaparecimento de Dora Bruder, de quinze anos, em dezembro de 1941, Patrick Modiano lança-se num processo de busca obsessiva pelos pormenores da história desta rapariga, com a qual partilha o espaço geográfico em que se movimenta, ainda que a décadas de distância. Pouco a pouco, vão-se desvendando os contornos da figura misteriosa de Dora Bruder, uma adolescente de ascendência judaica que o seu pai decidiu proteger, não incluindo o seu nome no recenseamento obrigatório dos judeus e fazendo-a ingressar no internato do Sagrado Coração de Maria. Foi desta instituição que Dora fugiu, sem se saber como nem por que motivo. Deixa-se ao leitor a liberdade para preencher as lacunas que os dados concretos deixaram em branco, e para fazer o seu papel nesta cadeia de passagem do testemunho que o tempo não deve quebrar.

Este livro cativou-me pelo conceito de que parte e desiludiu-me pela sua concretização. Pensava que o interesse do autor pela história de vida de uma rapariga parisiense judia o levasse a tecer uma narrativa focada nela, em que preenchesse as lacunas e desse corpo a uma história sólida envolvente. Em vez disso, Modiano descreve o seu processo de busca pela identidade de Dora Bruder, um processo bastante centrado nas interseções da vida desta com a do autor e no estabelecimento de relações entre datas que permitem criar um pequeno friso cronológico do que terá sido grande parte da sua vida, sem, no entanto, a aprofundar em pormenores. A fuga de Dora do pensionado do Sagrado Coração de Maria é um dos períodos deixados em branco que, a meu ver, tinham potencial para dar origem a uma narrativa mais densa. As poucas informações acerca dela e o facto de Modiano ter um especial interesse na sua história por partilhar os espaços em que ela se movimentava, mas que o leitor não frequenta, levam a que a relação do leitor com a figura de Dora não seja tão intensa como aquela que seria de esperar. Para além disso, e como consequência da familiaridade do autor com o espaço em que se movimenta, há muitas referências a ruas parisienses que tive alguma dificuldade em visualizar, já que aos nomes das ruas não se associam descrições.

O que achei mais interessante nesta narrativa foram as pequenas histórias de pessoas que pontuaram a pesquisa de Modiano e aqui encontraram uma voz. Os escritores Friedo Lampe e Felix Hartlaub, um apolítico e um combatente a favor de uma causa que lhe tinha sido imposta, são imortalizados em Dora Bruder como vítimas da máquina de morte que colheu as vidas de homens que, como eles, apenas se interessavam pela beleza do pôr do sol e pelos detalhes do dia-a-dia das pessoas comuns. Fica, também, para a história a ação das “amigas dos judeus”, mulheres arianas revoltadas contra as medidas antijudaicas que usavam estrelas de David ao peito e em volta da cintura, em modo de protesto.

Pode ser que eu e Dora Bruder nos tenhamos cruzado numa má altura e que eu possa regressar a ele mais tarde, com outros olhos. No fundo, gostei deste livro e recomendo-o pela forma inovadora como conta uma história que poderia corresponder à de muitas outras vidas perdidas no caos do Holocausto, sem cair em clichés. A dureza do passado é, de certo modo, atenuada pelo facto de o leitor ser confrontado com factos em segunda mão – o autor encontrou estes registos e transmite-nos as suas conclusões. Em suma, é um livro curto que nos leva numa viagem no tempo e no espaço, até aos dias de pesadelo nazi na Cidade Luz.

21
Jun24

"As Vinhas da Ira" - John Steibeck

Helena

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Após ter sido deixado em liberdade condicional por bom comportamento, Tom Joad apanha boleia até junto da sua família, no Oklahoma. Pelo caminho, encontra Casey, um antigo pregador, amigo da família, que o ajuda a chegar junto dos seus. Quando os encontram, eles estão em preparativos para partir para a Califórnia. A “Dust Bowl” instalara-se nos céus dos estados do Sul, uma tempestade de poeira prolongada, causada pela exploração exaustiva dos solos, que dizimara as colheitas e afetara drasticamente a qualidade do ar. Grandes empresas apoderam-se das terras dos agricultores e substituem a mão de obra humana para a sua exploração por tratores. Da Califórnia chegavam panfletos a anunciar a necessidade de trabalhadores, com ilustrações que deixavam adivinhar uma região paradisíaca, repleta de árvores de fruto e de oportunidades para se enriquecer.

Contudo, à medida que percorrem a Rota 66, os Joads vão-se apercebendo de que a vida a oeste não é o prometido pelos panfletos. Caravanas de camiões enchem as estradas na mesma direção que eles, e todos vão em busca de trabalho. Trabalho esse que, segundo os relatos de quem viaja em direção contrária, é escasso e mal pago.

Determinados a descobrir por si próprios e sem lugar para onde voltar, os Joads persistem na sua viagem até ao fim. Pelo caminho, param em acampamentos de migrantes que a polícia insiste em dispersar e em infraestruturas do governo sem qualquer oferta de trabalho na área envolvente, ganham alguns companheiros de viagem e perdem outros, debatem-se com a fome e com a escassez. Chegados à Califórnia, encontram postos de trabalho sazonais que empregam muitos trabalhadores por muito pouco dinheiro, já que a resposta aos anúncios de emprego suprira as necessidades, e que aquilo que um se recusaria a ganhar é aceite por outro mais desesperado e faminto. Em circunstâncias em que parece ser cada um por si, começam a manifestar-se os primeiros movimentos grevistas, logo reprimidos violentamente pela polícia. Os Joads, inocentes, humildes, com duas crianças e uma mulher grávida na família, tentam, como tantos outros na mesma situação que eles, sobreviver.

“Talvez, pensei eu, seja melhor amar todos os homens e todas as mulheres; talvez que o Espírito Santo seja apenas o espírito humano. Talvez que todos os homens tenham em conjunto uma única alma grande de que toda a gente faz parte.”

As Vinhas da Ira destacam-se no panorama da literatura americana pela forma como desafia a mentalidade individualista que uma sociedade fundada no capitalismo liberal como a americana estabeleceu como dogma. O percurso de Tom, a personagem principal desta narrativa e o novo chefe da família deslocada, é marcado pela tomada de consciência de que a conquista de condições de trabalho dignas tem de passar pela união dos trabalhadores famintos e insatisfeitos. As personagens desta narrativa são vítimas do ideal americano da produção fácil de riqueza, que, na realidade, apenas assiste a uma mão-cheia de oportunistas que vivem em paz com a exploração de multidões afundadas na precariedade. Casey, de forma mais dramática, e os Joad, gradual mas inevitavelmente, morrem em defesa do seu direito de viver condignamente.

Steinbeck é célebre pelo simbolismo nas suas obras, em particular em pormenores d’As Vinhas da Ira. No nado morto de Rosa de Sharon, por exemplo, a teoria literária identifica uma referência ao bebé Moisés, lançado ao rio numa cesta, sendo que este bebé levaria a quem o encontrasse a mensagem da miséria em que viviam os trabalhadores chegados do Este. Já eu, vi  na gravidez de Rosa de Sharon a representação daqueles que nascem e crescem num labirinto de precariedade de que não conseguem escapar, geração após geração.

Tal como Ratos e Homens e A Pérola, As Vinhas da Ira é um romance notável pela sua sobriedade. Num registo despido de artifícios, límpido e severo, Steinbeck descreve a viagem de uma família, peripécia atrás de peripécia, desilusão atrás de desilusão, e cada uma delas é mais impactante e mais dura pela crueza do estilo com que são narradas. De facto, como é hábito em Steinbeck, este não é um romance reconfortante e animador, mas sim um lembrete da extensão da mesquinhez e da insensibilidade que a natureza humana pode alcançar. Poucos são os momentos de felicidade que o leitor pode partilhar com as personagens, tal é a sequência de infortúnios de que são alvo. Isto podia fazer com que este romance caísse naquilo a que hoje se chama “pornografia emocional”, livros em que as personagens são vítimas de uma quantidade irrealista de traumas, apenas com o objetivo de provocar sensações desconfortáveis no leitor. O mais perturbador de As Vinhas da Ira é o facto de não ser irrealista nem exagerado, mas sim uma ficção muito próxima da realidade de tantas famílias que deixaram, e ainda deixam, o lugar a que chamam “casa” para tentarem encontrar melhores condições de vida noutro sítio, e que só encontraram mais miséria e o rancor da população local.

Não se deixem, contudo, desencorajar pelo tom pessimista que serve de banda sonora a esta narrativa, já que, no final de contas, por entre as muitas dificuldades que os Joads enfrentam, há raios de esperança, personagens que fazem com que pareça possível que a verdadeira natureza humana é ser bom e que há sempre quem esteja disposto a ajudar o próximo em momentos de aperto. As Vinhas da Ira ganhou o Prémio Pulitzer em 1940. É revoltante, é chocante, é tocante, é assombroso. Se eu também tivesse estado no júri, também teria votado nele.

 

03
Mai24

“Bichos” – Miguel Torga

Helena

Bichos é uma coletânea de quinze contos, cada um com um “bicho” como protagonista. Em pouco mais de meia dúzia de páginas, conta-se a história de um cão de caça velho que recorda o seu passado, a de um gato mimado que tenta regressar à sua natureza vadia, a de uma mulher que tenta desesperadamente chegar à aldeia vizinha para dar à luz, a de um burro abnegado que se vê rodeado por uma alcateia quando carregava o dono, a de um sapo que ensinou um homem a conectar-se com a Natureza, a de um galo que foi poupado à panela para criação, a de um menino que trepou a uma árvore para alcançar um ninho, a de uma cigarra que gostava tanto de cantar que negligenciou a preparação para o inverno, a de um pardal que conhece os melhores meios para se alimentar durante todo o ano, a de um pastor que perde uma ovelha, a de um melro que observa cinicamente as preocupações das moças, a de um touro que tenta, a todo o custo, virar o jogo contra os toureiros, a de um senhor que coleciona insetos e a de um corvo que se rebelou contra a vontade de Deus.

"Era um bicho. Um inofensivo bicho, igual aos milhares que tinha no escritório embalsamados."

Três destes “bichos” são seres humanos, mas a sua presença não destoa do tom global do livro, já que Torga traz ao de cima a sua face mais animalesca. Em contrapartida, é conferida aos animais uma sensibilidade muito humana. Mais importante do que isso, é-lhes dada uma voz, e com ela o direito de serem ouvidos e considerados como seres vivos sencientes, nossos iguais no que toca à condição de habitantes do planeta Terra. Conseguimos substituir o pardal sabichão de Ladino por um humano egoísta, assim como a grávida de Madalena por um animal selvagem em trabalho de parto.

Os meus contos preferidos foram Morgado e Miura. Estes foram, também, os contos que mais me perturbaram. O sofrimento animal contado em primeira pessoa atinge-nos e enterra-se como as lâminas dos toureiros no dorso de Miura. Funcionando como um espelho, em que o animal sente e pensa e o homem parece desprovido de emoções e poder da razão, somos confrontados com a chocante bestialidade humana – a insensibilidade e o sadismo que o abandono de um animal em condições perigosas e a exploração do sofrimento de outro para entretenimento, respetivamente, revelam.

Alguns leitores consideram que cada um destes contos é uma representação de um tipo social da época da ditadura de Salazar. Na minha opinião, são representações de tipos sociais que se podem encaixar em qualquer época. Daí considerar esta leitura tão pertinente para todas as alturas, e invariavelmente eficaz no reforço da consciência de cada um enquanto cidadão do mundo.

23
Mar24

“O Processo” – Franz Kafka

Helena

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Joseph K., gerente de um banco, acorda numa manhã da sua vida pacata para se deparar com a visita de membros do aparelho judicial, que lhe comunicam que se encontra envolvido num novo e complexo processo. Apesar de não o prenderem, deixam K. num estado psicológico de prisão perpétua, já que não conhece a natureza do seu processo, nem os seus responsáveis na Justiça, nem o motivo de estar envolvido nele.

Ao longo de 190 páginas, Joseph K. tenta em vão clarificar o seu processo judicial e provar a sua inocência – algo praticamente impossível, dado não se conhecer aquilo de que o consideram culpado. Quase “atirado” de um lado para o outro pelas exigências da irracional Justiça, K. vai-se movimentando naquele que se revela o universo corrupto, incompreensível e contraditório dos processos judiciais. No final de contas, lutar contra a sua sentença ou aceitá-la passivamente parecem levá-lo ao mesmo resultado desolador de uma condenação sem fundamento.

«Mas eu não sou culpado», respondeu K., «é um erro. E, por falarmos nisso, como é que um homem pode ser considerado culpado? Somos todos homens, tanto uns como outros.»

Através da história bizarra de Joseph K, Kafka leva-nos a refletir acerca do funcionamento das instituições fundamentais da sociedade ocidental – especialmente, acerca da completa ausência de sentido prático que as caracteriza. Apesar de as autoridades comunicarem a K., no início do seu processo, que ele não vai ser preso, o que efetivamente acontece é uma prisão alargada a toda a existência do arguido. O processo entranha-se na vida de K., tanto pela incógnita em que consiste a acusação que o envolveu, como pela ininteligibilidade do seu desenrolar. Por mais que K. tente intervir para acelerar o decorrer dos acontecimentos, tudo o que ele se dispõe a fazer é irrelevante ou nocivo para o seu estatuto de acusado. A impossibilidade de se sair vitorioso de uma batalha com as instituições é resumida pelo pintor com que K. se encontra para tentar encontrar uma solução: um caso só pode ser resolvido através de uma absolvição definitiva, de uma absolvição aparente ou de um adiamento indefinido. A primeira nunca ocorre, a segunda conta com uma absolvição ratificada pelo juiz, mas não pelo Supremo Tribunal (o que leva a que seja possível que o processo seja recuperado e recomeçado a qualquer momento), e o terceiro, que consiste em evitar que o processo passe das primeiras fases, exige visitas constantes ao juiz e uma vigilância permanente da situação do acusado. Em suma, um acusado está inevitavelmente condenado a uma vida de instabilidade e preocupação, afundado em burocracia que não consegue entender.

O próprio recurso aos conhecimentos do pintor constitui parte da crítica à rede de influências que permeia o funcionamento das instituições. Só com o recurso a pessoas com ligações mais ou menos lícitas ao sistema judicial consegue fazer algum progresso (ainda que apenas aparente e insatisfatório) no decorrer do seu processo.

Um aspeto que captou particularmente a minha atenção foi a ubiquidade do sistema judicial, materializada pela existência de escritórios do tribunal em sótãos de zonas residenciais. Assim como as vidas dos residentes se encontram permanentemente debaixo de extensões do aparelho judicial, literalmente, também as vidas dos cidadãos estão condenadas a desenrolar-se sob a inexorável burocracia segundo a qual, bem ou mal, nos regemos.

A minha experiência de leitura d’O Processo foi surpreendentemente positiva. Acabei por gostar muito mais deste livro do que do célebre A Metamorfose, talvez por tê-lo lido numa fase da vida em que consigo compreender melhor o que realmente está em causa numa história aparentemente sem sentido, ou por ter uma mensagem crítica mais fácil de destrinçar. Este pode ser, no fundo, um livro sobre a falta de sentido da vida, e sobre como não importa o que façamos para tentar compreendê-la ou combater o seu rumo. Recomendo esta leitura a toda a gente.

04
Mar24

“Breasts and Eggs” – Mieko Kawakami

Helena

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Este livro está dividido em duas partes: na primeira, Natsuko, a personagem principal, recebe a sua irmã, Makiko, e a sua sobrinha, Midoriko, em sua casa, em Tóquio. Para além de a dinâmica entre Makiko e Midoriko estar nitidamente em crise, já que Midoriko se recusa a dirigir qualquer palavra à progenitora, Makiko vive obcecada com o seu corpo imperfeito e com os implantes mamários que tenciona fazer num futuro próximo. Na segunda parte, anos depois, Natsuko é já uma autora publicada, numa crise de inspiração para o seu próximo livro, e desejosa de completar a sua vida com a presença de um filho. Mas Natsuko é uma mulher solteira, pelo que teria de recorrer à inseminação artificial e a um dador de sémen, e ter um filho nessas circunstâncias ainda é um fenómeno rodeado de estigma na sociedade japonesa. Como se isso não bastasse, a sua investigação em relação ao processo de doação leva-a a entrar em contacto com uma comunidade de pessoas unidas pela sua condição de filhos gerados por intervenção externa. As histórias de vida de algumas das testemunhas, as conversas com aqueles que a rodeiam e a pesquisa que aprofunda fazem-na pensar e repensar a validade dos seus desejos. Afinal, a ninguém foi pedida permissão para nascer…

Breasts and Eggs traz para cima da mesa tópicos de discussão muito pertinentes acerca do lugar do corpo da mulher na sociedade, especialmente na japonesa. A ansiedade de Makiko ao querer corresponder a um ideal que não consegue atingir sem intervenções estéticas, a perturbação de Midoriko face às mudanças que o seu corpo, e o das suas colegas, atravessa na puberdade, e a consciência de Natsuko da reprovação geral de que seria alvo uma grávida solteira são alguns dos problemas que poderiam derivar, num debate, em trocas de ideias acerca dos fatores socioeconómicos que podem estar envolvidos no recurso a cirurgias plásticas, da procura de um sentimento de pertença num corpo que nos é estranho, e da (as)sexualidade da mulher. Nesse sentido, este é um livro provocador no âmbito do feminismo, da crítica social, da exposição da precariedade económica e da educação sexual. Põe, ainda, em causa a moralidade da escolha de ter filhos, por todo o sofrimento não-autorizado a que se sujeita o fruto da vontade egoísta dos progenitores.

Apesar de reconhecer o interesse que reside no tratamento literário dos temas referidos acima, Breasts and Eggs acabou por não ser concretizado da maneira que eu consideraria mais lógica e coerente. Isto deve-se ao facto de a primeira parte parecer um projeto de uma história quase totalmente independente da segunda parte do romance. O tópico da insatisfação de uma mulher com o seu próprio corpo, inspirada pelos ideais irrealistas que absorveu da sociedade, é circunscrito à primeira parte, assim como as entradas (interessantes e ricas) do diário de Midoriko, em que ela se debate com o seu processo de crescimento. Em comparação com esta primeira secção, a segunda ficou aquém daquilo que gostava que tivesse sido. Longas conversas sobre a maternidade e acontecimentos sem grande importância para a questão central da ação preenchem o espaço que podia ter sido preenchido com peripécias mais relevantes, ou simplesmente eliminado. “Breasts”, em suma, era uma linha narrativa mais promissora e cativante do que “Eggs” se revelou.

Assim, apesar de ter sido uma leitura fácil e fluida, com reflexões interessantes sobre a relação de uma mulher com o seu próprio corpo e a ética da maternidade, Breasts ans Eggs não me deixou fascinada. Pode ser que outro livro de Kawakami me conquiste.

02
Mar24

“Sei porque canta o pássaro na gaiola” – Maya Angelou

Helena

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Sei porque canta o pássaro na gaiola é um memoir da autoria de Maya Angelou, no qual ela recua até à sua infância em Stamps e partilha a sua experiência de crescimento no sul dos Estados Unidos da América, enquanto menina negra entregue aos cuidados da sua avó.

Nas profundezas do Arkansas, a pequena Marguerite (Maya) familiariza-se desde cedo com a precariedade do trabalho da população negra nas plantações de algodão. Todas as manhãs, os trabalhadores chegavam à loja da sua avó para comprar o farnel do meio-dia e, todas as noites, regressavam de rastos, tanto por causa do trabalho pesado como pela certeza de que este nunca seria suficiente para cobrir as necessidades de uma vida digna.

A casa da avó, onde estão relativamente a salvo da dureza da vida lá fora, não pode proteger para sempre Marguerite e Bailey, o seu irmão mais velho e melhor amigo. À consciência crescente da irracionalidade do ódio que a população branca sente por eles aliar-se-á uma consciência aguda da ausência dos seus progenitores, especialmente depois de serem visitados pelo pai, em Stamps, e visitado a mãe, em St. Louis. Símbolos de uma vida diferente e livre fora dos limites de Stamps, os seus pais tornam-se também símbolos da ascensão social, da instabilidade e do trauma – de facto, é durante a sua estadia com a mãe que Marguerite é assediada e violada pelo seu padrasto, algo que a marca profundamente com um indelével sentimento de culpa.

A narrativa segue pelos anos de amadurecimento dos irmãos, e com ele a sua individualização. É a altura de Marguerite perceber em que medida aquilo em que se quer tornar é condicionado pelo seu passado, pela sua cor de pele e pelas suas decisões de todos os dias.

“As pessoas iam ficar tão espantadas no dia em que eu acordasse do meu sonho negro e feio, e em que o meu verdadeiro cabelo, que era comprido e louro, tomasse o lugar da carapinha que a Mãezinha não me deixava alisar!”

Sei porque canta o pássaro na gaiola provocou em mim aquilo que habitualmente me provoca o género literário do memoir: uma necessidade constante de me relembrar de que aquilo que estou a ler não é um produto de ficção. Tudo é real: o desconforto de Marguerite face aos comentários das crianças brancas sobre a sua avó; o seu amor por Bailey; a sua admiração por Mrs. Flowers, um ícone da emancipação feminina que se destacava no panorama conservador da sua vida em Stamps. Maya Angelou eterniza neste livro a violência da vida negra na América nos anos 30 e 40 do século passado, através do olhar límpido e inocente de uma criança que vai descobrindo o mundo em que vive.

Aquilo que mais me marcou nesta leitura foi a brutalidade da culpa que Marguerite carregou dentro de si durante o seu crescimento, fruto de um evento traumático que, enquanto criança, não tinha ferramentas para compreender nem processar. A tradição religiosa que dominou grande parte da sua infância, juntamente com a relação intermitente que mantinha com os pais, levaram Marguerite a interpretar a sua violação, e as consequências desta, como algo que a tornava indigna de afeto, abandonada pelo deus que venerava. O abuso da inocência de uma criança que ainda não conhece a barreira que separa o carinho do abuso é revoltante, e é-o mais ainda a chantagem emocional com que o abusador tenta silenciá-la.

Assim, Sei porque canta o pássaro na gaiola é uma leitura inspiradora, um testemunho de uma vida marcada por reviravoltas, altos e baixos, traumas e descobertas. Não deixa, no entanto, de ser um livro que aborda temas sensíveis, como a violação e o racismo, de uma forma bastante dura, pelo que não é um livro que recomende para quem procura beleza e conforto. Ainda assim, e porque só enfrentando um passado desagradável podemos construir um futuro mais justo, reitero a minha opinião de que esta é uma história de grande importância para aprendermos a ver a vida a partir dos olhos de outros.

14
Jan24

“A Inquisição – O Reino do Medo” – Toby Green

Helena

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Em A Inquisição – O Reino do Medo, Toby Green abarca os três séculos de atividade da Santa Inquisição na Península Ibérica e nos seus territórios coloniais em África, na América e na Ásia. Através da explicação das áreas de influência da Inquisição ao longo do tempo, juntamente com a exemplificação de casos particulares de perseguição ou perversão, Green propõe-se deixar para o futuro um lembrete do que o domínio do medo e da paranoia pode causar numa sociedade. Este fenómeno de fachada religiosa, cujos objetivos eram, na verdade, políticos e económicos, utilizava retóricas de fácil desconstrução para apelar a comportamentos diametralmente opostos àqueles que são pregados pela própria religião: a discriminação, a desconfiança e o ódio pelo próximo.

O foco primário de Green são os acontecimentos relativos à Inquisição Espanhola, já que se fundou primeiro e foi abolida mais tarde do que a portuguesa, e que registou um maior leque de alvos de perseguição do que a portuguesa. Judeus, cristãos-novos, feiticeiras, sodomitas, bígamos, mouriscos e maçons são alguns dos rótulos atribuídos às vítimas de uma necessidade coletiva de culpabilização externa e de união face a um inimigo comum, numa Espanha de território recém-unificado.

Ao longo de 300 páginas, assistimos à queda em cadeia de gerações no precipício do preconceito e do conservadorismo, aos resultados pouco ortodoxos da repressão de instintos básicos da população e à evolução e aprofundamento de uma mentalidade que levou, em última instância, ao derrubamento dos impérios ibéricos e da própria instituição.

“A atitude genérica em relação ao acusado era resumida por Eymeric ao declarar a morte na câmara de tortura uma forma de bruxaria rancorosa destinada a frustrar o inquisidor”

Este livro cumpriu com aquilo que eu esperava dele. Pude não só aprofundar os meus conhecimentos acerca do processo de instalação da Inquisição em Portugal e em Espanha e das motivações socioeconómicas da perseguição aos judeus, mas também aprender que os acusados mortos ou fugidos eram queimados em efígie, que existiam casos bizarros de beatas e exorcistas, e que não era preciso uma justificação fundamentada para todo um novo bode expiatório começar a ser perseguido (fossem mouriscos, bígamos, feiticeiras ou maçons).

Mais do que um livro que descreve a forma como as raízes da Inquisição grassaram em solo peninsular enquanto instituição persecutória de minorias em nome da pureza, segurança ou sacralidade de um povo, este é um livro sobre a sede de poder. Desde a afirmação do poder através do medo irracional e permanente aos abusos de poder por parte de inquisidores, familiares da Inquisição e confessores, este corruptor da sociedade encontrava-se na base do estabelecimento de relações sociais em solo ibérico e colonial. O que me pareceu mais interessante e de maior relevo em relação a este fenómeno foi a forma como o comportamento dos judeus fugidos para as colónias se alterava no seu destino: chegados a uma terra em que os alvos da perseguição eram outros (os escravos e os indígenas), os anteriores oprimidos assumiam rapidamente o papel de opressores. A crueza de caráter que atravessa as histórias compiladas neste volume põem à prova a fé do leitor na bondade humana.

Os únicos aspetos negativos que tenho a apontar a este livro são o facto de partir de um projeto tão ambicioso que impede que se siga uma linha cronológica sem avanços e recuos, e a qualidade da tradução, que apresenta algumas gralhas e erros, questões que podem interferir com uma leitura fluida.

Em suma, apesar dos ziguezagues da linha temporal (necessários para abarcar todas as facetas da instituição que o autor se propôs explorar), este é um livro que recomendaria aos interessados por História europeia, particularmente pelo período (demasiado longo) em que a Inquisição vigorou na Península Ibérica. Não é uma leitura reconfortante, mas apenas sendo confrontados com a realidade mais desagradável do nosso passado podemos compreender o presente e preparar o futuro.

17
Dez23

“Pequenos Delírios Domésticos” – Ana Margarida de Carvalho

Helena

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Esta compilação de contos da autoria de Ana Margarida de Carvalho é um conjunto de histórias sobre a (não) pertença, o conhecimento de nós próprios e do outro, a partida e o regresso, o trauma e a redenção. Treze contos e dois poemas levam-nos a universos mais ou menos verosímeis, povoados por personagens, na sua maioria, peculiares e misteriosas.

O enredo de cada história é singular, desde o regresso a casa de um membro de uma organização terrorista para ajudar um amigo de longa data a pôr em prática as suas intenções de suicídio, a uma viagem a uma ilha sem sol para a escrita do epitáfio de uma conhecida sua em estado terminal. As personagens evadem-se ou regressam a um tempo ou a um espaço com uma significação subjetiva pesada, rica, nostálgica, destrutiva.

“estes Europeus nunca hão de compreender que o mais importante nunca está no centro das fotos, mas nas periferias, ou até mesmo fora do retângulo.”

Iniciei esta leitura com expectativas baixas e um pouco a medo, já que a modalidade do conto não costuma cativar-me e que o estilo de Ana Margarida de Carvalho nem sempre consegue aproximar-se do que considero uma experiência de leitura agradável. No entanto, fui agradavelmente surpreendida com esta coletânea de contos que me manteve interessada do início ao fim, cada um com uma trama que a escrita intrincada da autora apenas enriquecia.

Os meus contos preferidos foram “Do inferno ninguém regressa”, sobre um idoso num lar para refugiados do Médio Oriente, pela forma como conjuga o tratamento da terceira idade e o de pessoas traumatizadas, e “A última ceia”, pelo conceito já por si curioso de uma família em que todos são gémeos, à exceção do que partilhou o útero com um irmão que morreu à nascença. Fascinou-me, ainda, a atualidade do “Eremitério de boas intenções”, sobre o conflito entre duas famílias motivado pela cisão ancestral entre palestinianos e israelitas, prova de que a literatura é uma cápsula de intemporalidade.

Assim, “Pequenos Delírios Domésticos” conquistou meritoriamente um lugar no meu pódio de obras de Ana Margarida de Carvalho, juntamente com “Que Importa A Fúria do Mar” e “Não Se Pode Morar Nos Olhos De Um Gato”.

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