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H-orizontes

H-orizontes

31
Jan25

"A Moveable Feast" - Ernest Hemingway

Helena

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“If you are lucky enough to have lived in Paris as a young man, then wherever you go for the rest of your life, it stays with you, for Paris is a moveable feast” - Carta de Hemingway a um amigo, 1950.

Este é um livro autobiográfico sobre os tempos que Hemingway passou nessa “festa móvel” que é Paris. Apesar da pobreza e da fome em que teve de viver para suportar a sua estadia enquanto alguém que vivia unicamente da sua escrita, sabia que apenas ali poderia ter a experiência canónica que contribuiu para a formação de dezenas de mentes brilhantes. Comprava livros baratos numa banca em que confiava, nas margens do Sena. Contactou com Gertrude Stein, escritora cuja opinião sobre os seus escritos era por ele tida em alta consideração. Viajou, com a esposa ou com colegas escritores, para Espanha, para a Suíça e para outras regiões francesas. Comungou, enfim, do substrato comum àquela que ficou conhecida como a Geração Perdida.

“I’ve seen you, beauty, and you belong to me now, whoever you are waiting for and if I never see you again, I thought. You belong to me and Paris belongs to me and I belong to this notebook and this pencil.”

No registo terra-a-terra a que habituou os seus leitores, Hemingway leva-nos a percorrer as ruas da capital francesa como se o fizéssemos ao seu lado. Entramos com Hemingway nos cafés e nos bares e vemo-lo dissolver as suas preocupações em álcool, com uma regularidade alucinante. Encontramo-nos com os amigos dele, já nossos conhecidos de outras paragens – da pintura, da literatura – e descobrimos-lhes novas facetas. Olhamos para o mundo a partir dos olhos de um homem: para a literatura pelos olhos de um homem, para as corridas de cavalos pelos olhos de um homem, para as mulheres pelos olhos de um homem. Hemingway escreve para viver, aposta nas corridas para amealhar algum dinheiro com as vitórias e aprecia mulheres como se não o esperassem em casa a sua mulher e o seu filho.

Subjaz a esta narrativa a aura eletrizante da Cidade Luz, o bulício das ruas e a atividade dos cafés do epicentro da produção artística da década de 1920.  É difícil ler A Moveable Feast sem se cair no desejo de viajar no espaço e no tempo para a Paris dos anos 20 – Picasso, Hemingway e F. Scott Fitzgerald são três das personalidades estelares com que seria possível partilhar o balcão de um bar. Provavelmente, o bar onde se vendesse o álcool mais barato. De qualquer forma, saímos da leitura deste livro com uma certeza: na riqueza ou na pobreza, Paris será sempre Paris.

17
Nov24

"A Cidade e as Serras" - Eça de Queiroz

Helena

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Durante toda a sua vida, Jacinto ocupou um apartamento no número 202 dos Campos Elísios. Habituado à vida no epicentro da civilização, é apenas no seu seio que concebe a possibilidade de uma existência digna. Aterra-o passar tempo entre a natureza, longe do bulício urbano.

É este homem peculiar que Zé Fernandes, o narrador de A Cidade e as Serras, encontra no Bairro Latino, e é com ele que cultiva uma amizade que se prolongará ao longo de muitos anos. Acompanha, por isso, a descida de Jacinto dos píncaros do entusiasmo pelas maravilhas da civilização até ao tédio profundo da saturação pelo excesso. Enterrado em leituras de Schopenhauer e declarando todas as propostas de divertimento “uma seca”, Jacinto parece não ter como sair deste miasma existencial. Eis quando chega uma carta de Tormes, uma propriedade da sua família no vale do Douro, com a notícia de um deslizamento de terras que afetara o lugar de repouso dos seus antepassados.  

Uma vez em Tormes, depois de uma viagem atribulada, Jacinto inicia-se numa jornada que revolucionará a sua forma de estar no mundo. Afinal, a comida mais apetitosa não precisa de chegar à sala de jantar através de elevadores sofisticados, a pobreza pode existir mesmo à sua porta, e há beleza suficiente nas árvores que preenchem um pedaço de terra.

“Nem a ciência, nem as artes, nem o dinheiro, nem o amor, podiam já dar um gosto intenso e real às nossas almas saciadas. Todo o prazer que se extraíra de criar estava esgotado. Só restava, agora, o divino prazer de destruir!”

Esta foi a minha primeira incursão num romance queirosiano que não pertence à trilogia realista de Os Maias, O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio. Motivada, inicialmente, pelo objetivo de ficar a saber mais sobre a forma como Paris era retratada pelos escritores portugueses do final do século XIX, acabei por ganhar raízes na narrativa pelo fascinante tédio de Jacinto e pela revolução que acaba por sofrer a sua conceção da vida.

É sempre de grande interesse, para mim, quando um autor escolhe para narrador uma personagem que, apesar de ser quem dá voz à história que é contada, não constitui a figura em volta da qual a ação principal se desenrola. Zé Fernandes é um narrador homodiegético, e isso condiciona largamente a perceção do leitor em relação a Jacinto. Sem acesso direto aos seus pensamentos e sensações, o leitor obtém-nos em segunda mão, através da lente subjetiva de um amigo caro. Ficam por revelar as palavras que povoam a mente do enfastiado Jacinto, assim como todos os raciocínios por trás das suas ações. Resta-nos julgá-lo pelas atitudes acessíveis ao olhar atento de outrem – ao olhar falível e enviesado de outrem.

Este romance alicerça-se sobre o contraste entre o “antes” e o “depois”, separados pela temporada das personagens principais em Tormes, com consequências no caráter de Jacinto e na opinião de Zé Fernandes sobre Paris. Mesmo sem que possamos aceder às profundezas dos pensamentos de Jacinto, a trajetória da sua personagem ao longo de A Cidade e as Serras é clara: antes de Tormes, Jacinto vivia rodeado de todas as mais recentes maravilhas da civilização, numa abundância tão excessiva que o levou a mergulhar no tédio; depois de Tormes, Jacinto é um homem novo, simples, amante da calma e da natureza num recanto rústico português. Também Paris se metamorfoseia radicalmente aos olhos do narrador de Guiães: antes de Jacinto se mudar para Tormes, Zé Fernandes descreve Paris com o entusiasmo de um recém-chegado, fascinado com a sofisticação das mais recentes criações humanas; quando, deixando Jacinto em Tormes, regressa a Paris, Zé Fernandes é confrontado com uma cidade estagnada e pútrida, fortemente sexualizada e assente em motivações fúteis.

Desta oposição entre o “antes” e o “depois” derivam os demais contrastes que estão na base da narrativa: a pureza e a corrupção, a simplicidade e o excesso, a felicidade e a civilização. A felicidade e a civilização, já que se conclui que a obsessão com o aperfeiçoamento da segunda é um veneno fatal para a primeira.

Retira-se de A Cidade e as Serras uma apologia da aurea mediocritas: a chave para uma vida plena não está na acumulação de dispositivos que o “homem civilizado” crê serem essenciais para o seu conforto. O segredo está, sim, na renúncia à abundância que satura, e na aceitação de uma vida humilde – e de um prato de arroz de favas.

22
Out24

“Go Set A Watchman” – Harper Lee

Helena

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Vários anos depois do final de To Kill A Mockingbird, Jean Louise é-nos apresentada como uma jovem adulta, residente em Nova Iorque, que regressa de tempos a tempos a Maycomb, a sua terra natal. É um destes regressos que constitui o enredo de Go Set A Watchman. Muito mudou desde a última vez que tivemos notícias da família Finch: Jem, o irmão de Jean Louise, morreu, vítima de um ataque cardíaco; Atticus envelheceu e vive agora com dores nas articulações, acompanhado pela sua irmã Alexandra; Hank, após anos de relacionamento amoroso com Jean Louise, tenta repetidamente levá-la a aceitar o seu pedido de casamento.

Dois grandes dilemas aguardam Jean Louise nesta estadia em Maycomb. Por um lado, ela sabe que a sua relação com Hank se baseia num amor unilateral a que não consegue corresponder, mas não encontra forma de lho dizer. Por outro, depois de assistir a um conselho municipal onde abundam discursos racistas aos quais Atticus não se opõe, Jean Louise encontra a confusão e o desamparo da sua criança interior, criada numa conceção irrealista do seu próprio pai. Assim, esta é a história de Jeane Louise na sua jornada de descoberta de si mesma e dos que a rodeiam, agora através de um olhar adulto e ciente do mundo vasto que existe para lá dos limites de Maycomb.

“Mr. Stone set a watchman in church yesterday. He should have provided me with one. I need a watchman to lead me around and declare what he seeth every hour on the hour. I need a watchman to tell me this is what a man says but this is what he means, to draw a line down the middle and say here is this justice and there is that justice and make me understand the difference.”

Numa tentativa de surpreender os leitores com uma modelação do caráter aparentemente reto e previsível de Atticus Finch, Harper Lee constrói uma narrativa algo forçada acerca das nuances dos dilemas morais enfrentados por aqueles que crescem sob a influência de uma visão do mundo de que não se conseguem libertar. Neste mea culpa pela narrativa do salvador branco que alicerça To Kill A Mockingbird, Harper Lee cai, em Go Set A Watchman, no extremo oposto: a vilanização de Atticus através do olhar desapontado de Jean Louise, aqui a cicerone da frustração branca dos estados do Norte face ao conservadorismo sulista.

Muito pouco acontece, de facto, nesta narrativa que tenta “ganhar pontos” ao pôr-se do lado das “causas certas”: o fim do racismo, a emancipação da mulher e a resolução de conflitos geracionais. Estas questões não deixam de impulsionar reflexões interessantes, e o desfecho do romance em todas estas dimensões não me desagradou, mas é-me difícil ver Go Set A Watchman como uma continuação natural de To Kill A Mockingbird e como uma narrativa com mais polpa do que a abordagem desses temas, sem um bom enredo que a suporte.

É um conselho comum para aspirantes a escritores que escrevam a história que sentem que precisa de ser contada. Na minha opinião, esta história não é relevante o suficiente para ser contada, tendo resultado na sensação de que se trata de um epílogo longo e pretensamente provocador do clássico que o precede (e em relação ao qual guardo a memória de uma experiência de leitura agradável). 

19
Out24

“Crime e Castigo” – Fiódor Dostoiévski

Helena

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Num apartamento acanhado de S. Petersburgo, Raskólnikov, ex-estudante de Direito, vive na pobreza e no desânimo. Depois de um longo período de reflexão, decide-se a levar a cabo um plano que satisfaria, simultaneamente, as suas necessidades económicas e morais: matar a velha a quem ele e outros desgraçados empenhavam os seus bens. Com isto, Raskólnikov poderia não só obter fundos para retomar os seus estudos, mas também contribuir para um bem maior, libertando a sociedade de uma figura vil.

Contudo, e apesar da sua crença profunda na impunidade daqueles que cometem atos comummente condenáveis com uma finalidade nobre em mente, Raskólnikov mergulha numa espiral de paranoia e culpa, assim que foge do apartamento em que assassinara a prestamista e a sua irmã (que aparecera no sítio errado, à hora errada). A notícia do crime espalha-se por Petersburgo, tanto pelos agentes de autoridade como pelo círculo mais próximo de Raskólnikov, e este não consegue controlar o profundo transtorno que lhe causa qualquer referência ao assassinato. Apesar de ninguém o acusar de nada, Raskólnikov vive sob a impressão de que todos sabem aquilo que tenta esconder.

Enquanto este dilema o consome, outros acontecimentos continuam a preencher a vida daqueles que o rodeiam. Dúnia, a sua irmã, prepara-se para casar com Piotr Petróvitch, um homem rico e sem escrúpulos, numa tentativa de resgatar a família da precariedade. Caberá a Raskólnikov manifestar-se contra estas intenções, quando Dúnia e a sua mãe se mudarem para S. Petersburgo. Svidrigáilov, o homem que manchara a reputação de Dúnia ao culpá-la pelas acusações de adultério de que fora vítima, segue-a até Petersburgo após a morte da sua esposa. Num dos seus passeios ébrios, Marmeladov, um homem que arruinou a família com o seu alcoolismo, morre atropelado por uma carruagem. Apesar da sua situação económica, Raskólnikov decide ajudar a família do morto, da qual faz parte Sófia Semiónovna, uma prostituta de fé inabalável que virá a desempenhar um papel fundamental no desenlace deste jogo das escondidas entre Raskólnikov, as autoridades e a sua consciência.

“Sou ser humano precisamente porque erro. Ainda ninguém chegou a uma verdade qualquer sem antes se ter enganado catorze vezes, ou talvez cento e catorze, e isso é um mérito, neste sentido. Mas não, nem sequer sabemos errar por nossa própria cabeça! Diz-me um disparate, mas à tua maneira, aí dou-te um beijo! Um disparate nosso, à nossa maneira, é quase melhor do que uma verdade alheia; no primeiro caso, somos seres humanos, no segundo somos pássaros!”

Contrariamente ao que receava que fosse ser a minha experiência de leitura de Crime e Castigo, fui sendo embalada ao longo de todo o romance, mesmo com as alterações substanciais do ritmo da narrativa. Devorei o início do livro em pouco tempo – a descrição do assassinato perpetrado por Raskólnikov foi um isco eficaz para o meu interesse. Daí em diante, fui de mão dada com as personagens, desejosa de saber o desfecho da encruzilhada moral que orbitavam. Talvez por influência do final ficcionado que Afonso Cruz sugere para este romance no seu Os livros que devoraram o meu pai, esperava que passasse pela tentativa da personagem principal de aliviar a sua culpa através da perpetração de mais assassinatos. Spoiler alert: não é isso que acontece. No entanto, a alternativa real a esta proposta não me desiludiu. Mesmo quando me deparava com uma sequência narrativa mais ou menos monótona, uma intervenção ousada do perturbado Raskólnikov despertava em mim a urgência de falar com ele, para evitar que se incriminasse. Acabei, portanto, por criar laços de afeto com as personagens, no seu vaivém por São Petersburgo.

A narrativa de Raskólnikov é uma história sobre a impossibilidade de escapar ao código moral que rege a sociedade, por mais racionais que sejam as motivações que tenham levado à perpetração de um crime. Apesar de Raskólnikov acreditar profundamente na defesa da absolvição dos criminosos que agem em função de propósitos nobres, isso não o impede de ser engolido por uma espiral de paranoia que distorce irremediavelmente a sua perceção do mundo. É particularmente interessante que o narrador heterodiegético de Crime e Castigo não adote uma postura aprovadora ou condenadora dos pensamentos e ações de Raskólnikov.  Afinal, é a vida em sociedade que dita a aceitabilidade de um código moral.

Como é hábito em Dostoiévski, a riqueza deste romance vai muito além do conflito moral que atormenta a personagem principal. Rodeiam-na personagens ricas em características e atitudes que fazem delas janelas para a sociedade russa novecentista. Proliferam num ambiente opressor na sua podridão a prostituição, a pobreza, a fome e a degradação moral.

Afinal, e contrariando as previsões de leitores de Dostoiévski que me são próximos, gostei muito de Crime e Castigo (incomensuravelmente mais, aliás, do que de Noites Brancas, do mesmo autor). Ecoo, portanto, a recomendação de gerações sucessivas de apreciadores de literatura russa: leiam Crime e Castigo para espreitarem, sem medo, para o buraco negro da natureza humana.

29
Set24

“Os livros que devoraram o meu pai” – Afonso Cruz

Helena

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Depois de completar doze anos, Elias Bonfim descobre que o facto de ser órfão de pai não se deve a qualquer tipo de acidente que tenha ceifado a vida ao seu progenitor. O seu pai, Vivaldo Bonfim, já não está neste mundo, mas não de uma forma eufemística. Vivaldo migrou, antes de Elias nascer, para o mundo das histórias. Trabalhador no 7º Bairro Fiscal, Vivaldo escapava às burocracias entediantes através dos livros, uma forma de escapismo tão eficaz que acabou por engoli-lo – por devorá-lo.

No décimo segundo aniversário de Elias, a sua avó paterna oferece-lhe a chave para a biblioteca de Vivaldo. A partir daí, Elias lança-se numa busca fervilhante pelo seu pai através das narrativas que este tinha visitado através da leitura. Em paralelo com a sua vida escolar, partilhada com Bombo, o seu melhor amigo, e Beatriz, a sua grande paixão, os seus dias são marcados por viagens de mãos dadas com a literatura. Na Londres de Stevenson, na S. Petersburgo de Dostoievski, na ilha de Wells e no futuro distópico de Bradbury, Elias calcorreia as ruas e conversa com as personagens que tinham conhecido ou ouvido falar de Vivaldo Bonfim.

“Para uns, a raiz é a parte invisível que permite à árvore crescer. Para mim, a raiz é a parte invisível que a impede de voar como os pássaros. Na verdade, uma árvore é um pássaro falhado.”

Li Os livros que devoraram o meu pai, pela primeira vez, quando tinha catorze anos. Desde aí, muito cresceu a minha biblioteca pessoal e a minha enciclopédia mental. Não será, portanto, de estranhar que a minha experiência de leitura tenha sido substancialmente diferente, oito anos e toda uma educação literária depois. Agora que O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, Crime e Castigo, Fahrenheit 451 e A Ilha do Dr. Moreau fazem parte do meu repertório, pude perceber melhor o entretecer destes quatro romances numa trama deslumbrantemente coerente. Só agora abarco na totalidade o alcance da imaginação de Afonso Cruz no prolongamento da vida das personagens de cada um dos romances referidos após o seu fim original (Prendick, de A ilha de Dr. Moreau, terá sido internado num asilo por suspeitar ser ele próprio uma experiência de Moreau e estar a transformar-se num cão, por exemplo). Isto não quer, de todo, dizer que esta leitura tenha como requisito um conhecimento prévio dos livros acima mencionados. Pelo contrário, é uma excelente introdução a algumas obras da literatura canónica, graças ao fabuloso poder de síntese do autor.

As minhas impressões relativamente ao estilo de Afonso Cruz permaneceram, contudo, intocadas, já que reencontrei com o mesmo fascínio a forma original e singela como o autor projeta uma ideia ou uma imagem na página. Ainda que o registo desta narrativa reflita a simplicidade que o seu público-alvo requer, em nada isso faz com que Os livros que devoraram o meu pai seja uma leitura menos deleitosa do que, por exemplo, O Princípio de Karenina.

Percebi, principalmente, que, contrariamente àquilo que me ficara na memória desde a minha última leitura, este não é um livro sobre um menino que anda à procura do pai, nem sobre os problemas da sua vida amorosa, nem sobre a sua relação com o seu melhor amigo. Os livros que devoraram o meu pai é um livro sobre livros, sobre leitores, e sobre como livros e leitores são, em última instância, uma e a mesma matéria – afinal, todos somos feitos de histórias.

12
Set24

“O lodo e as estrelas” – Telmo Ferraz

Helena

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“A todos os que trabalharam em túneis de minas ou barragens e hoje têm silicose.” Esta é a dedicatória de O lodo e as estrelas, um conjunto de entradas de diário do padre Telmo Ferraz que nos transportam para as arribas mirandesas (em particular, as da aldeia de Picote) durante a construção das barragens hidroelétricas do Douro. Através de pequenos quadros, abrem-se as portas das barracas precárias onde viviam os trabalhadores famintos, pobres, doentes e mal pagos. O padre Telmo, observador no terreno, conheceu, acompanhou e ajudou todas as pessoas mencionadas neste livro e muitas mais que não são mencionadas, mas que ainda hoje são lembradas nas pequenas povoações vizinhas das centrais. Esta é a história daqueles que morreram debaixo de telhados de papel, de estômago vazio, depois de dias a tossir sangue.

“Pensei: anquanto chobir, este Probe tem de quemer la lhama de ls caminos, cun l fiel que le trai la lhembráncia cuntina de la mulher i de ls filhos.”

(“Pensei: enquanto chover, este Pobre tem de comer a lama dos caminhos, com o fel que lhe traz a recordação contínua da mulher e dos filhos.”)

Lancei-me para a leitura de O lodo e as estrelas apenas com o conhecimento de que se tratava de um relato fidedigno das condições de vida dos trabalhadores na construção das barragens do Douro. Surpreendeu-me, por isso, quando me deparei com uma narrativa constituída pelas entradas do diário do Padre Telmo Ferraz, em vez de com um registo narrativo convencional. Mas, como diz o famoso slogan, “primeiro estranha-se, depois entranha-se”, e rapidamente se me afigurou como a melhor maneira para transmitir a brutalidade da realidade descrita pelo pároco impotente face à miséria absoluta em que viviam os que o rodeavam.

O facto de esta ser uma edição bilingue (em português e em mirandês) enriquece imensamente o conteúdo do livro, já que isso permite que a história se ancore na realidade tanto geográfica como linguística. Os trabalhadores das barragens, vindos de fora, não falavam mirandês – pelo contrário, a discriminação e a troça sentida pelos locais relativamente à sua língua resultou numa tentativa de reprimir o seu uso nas gerações mirandesas seguintes. Hoje, a valorização da língua mirandesa (em muito impulsionada pelo tradutor deste livro, Amadeu Ferreira, de pseudónimo Francisco Niebro) e a sua consequente reivindicação pelos habitantes das terras de Miranda têm vindo a fomentar a tradução de obras canónicas, como a Bíblia, e locais, como O lodo e as estrelas.

A dureza das circunstâncias transmitidas para o mundo pelo Padre Telmo Ferraz é tal que O lodo e as estrelas foi censurado pelo regime salazarista, que vigorava aquando da sua publicação. Esse facto reforça a importância desta leitura, um olhar pungente para o avesso da narrativa gloriosa da revolução hidroelétrica do Estado Novo. Em português ou em mirandês, as palavras deste livro são as estrelas cuja luz ilumina aqueles cujas vidas e cujas vozes se perderam no lodo.

 

29
Ago24

“Slaughterhouse-Five” – Kurt Vonnegut

Helena

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Kurt Vonnegut partiu da sua experiência enquanto prisioneiro de guerra na Segunda Guerra Mundial para escrever Slaughterhouse-Five. Este livro tem como personagem principal Billy Pilgrim, um soldado americano que ganhou a capacidade de viajar no espaço e no tempo após ter sido raptado por extraterrestres do planeta Tralfamadore.

Num vaivém de saltos temporais, abrem-se janelas de onde se pode espreitar o passado e o futuro de Billy. Destacam-se pequenos flashes da sua infância, descrições de quando foi capturado pelos alemães em solo europeu e transportado para um campo de prisioneiros, momentos da sua vida como optometrista, recordações da sua lua de mel, relatos crus da sobrevivência ao bombardeamento aliado de Dresden e a sua sobrevivência a um acidente de avião que desencadeará a sua urgência em contar ao mundo o que aprendeu em Tralfamadore. Mais do que a possibilidade de viajar no espaço e no tempo, interessa a Billy levar às pessoas a conceção da vida mais ampla dos Tralfamadorians: o tempo ocorre simultaneamente, todos os momentos estão estruturados desde sempre para ocorrer da forma em que ocorrem, e a morte é uma circunstância pontual que não interfere com todos os momentos da vida que existem no mesmo plano de tempo, como quem olha para as montanhas numa cordilheira.

Constrói-se, assim, um mosaico de episódios aparentemente desorganizados e finitos, mas, na verdade, coesos e intemporais.

“There are almost no characters in this story, and almost no dramatic confrontations, because most of the people in it are so sick and so much the listless playthings of enormous forces. One of the main effects of war, after all, is that people are discouraged from being characters.”

Quanto mais leio acerca de Vonnegut e da teia de significações que vive por trás da manta de retalhos de Slaughterhouse-Five (Matadouro Cinco na edição portuguesa), mais esta obra me fascina. O meu deslumbramento começou com a descoberta dos acontecimentos de 13 de fevereiro de 1945 em Dresden, que a narrativa aliada abafou durante vários anos e que, atualmente, é um foco de debate pelas questões éticas que levanta. Afinal, milhares de toneladas de explosivos mataram 25 000 pessoas numa cidade comummente considerada segura (menos do que o meio milhão apregoado pela propaganda nazi, mas, ainda assim, um número que nos deixa, no mínimo, desconfortáveis). Vonnegut, enquanto prisioneiro de guerra que testemunhou esta demonstração de suprema insensibilidade humana, transfere para Slaughterhouse-Five o profundo ceticismo resultante do trauma profundo de quem foi obrigado a resgatar os corpos de civis dos escombros de Dresden. Para Vonnegut (e, consequentemente, para a personagem de Billy Pilgrim), a existência da guerra e das atrocidades que a envolvem é inevitável, devido à podridão da natureza humana.  Se isto levou alguns leitores a pôr em causa a mensagem anti-bélica deste romance, parece-me óbvio que se trata precisamente do contrário: Slaughterhouse-Five é um espelho de uma mente lavrada por cicatrizes mal saradas, provocadas por conflitos que condenam gerações jovens inteiras. Jovens, sim, já que, como Vonnegut sublinha no subtítulo The Children’s Cruzade e ao longo da narrativa, são os mais novos que constituem o maior volume de soldados e é a eles que se saqueiam as vidas em prol de um “bem maior” vazio. Billy Pilgrim é, de facto, um anti-herói, mas pela dessensibilização e pela apatia que caracterizam não só alguém que foi enviado para um contexto que não procurou, mas também alguém incapaz de processar a sequência de experiências traumáticas de um prisioneiro de guerra de outra forma que não a sua supressão pela indiferença.

Este é também, portanto, um livro sobre o livre arbítrio (ou a ausência dele). A inevitabilidade da dor, da morte e dos conflitos encontra o seu reflexo na filosofia dos Tralfamadorians. No entanto, se, por um lado, a impossibilidade de escapar à forma como todos os momentos estão estruturados parece castradora, existe conforto na visão da dor como um ponto numa cadeia onde existem simultaneamente muitos outros pontos de momentos de alegria. Mesmo quando tudo parece correr mal, há momentos no passado e no futuro em que esse não é o caso, e esses existem também no presente. Vonnegut transfere essa visão quase cubista da vida para os mecanismos literários que fazem de Slaughterhouse-Five um labirinto de muitas portas, onde se reencontram elementos de alguns episódios noutros que lhes são alheios, padrões de uma tessitura bem engendrada nos bastidores do caos. A cada morte, quer de homens, de lêndeas ou de champanhe: “so it goes”. E inesperadamente, a cada canto, ancorando o leitor à inescapável realidade, uma intervenção de uma personagem seguida de um “That was I. That was me. That was the author of this book.”.

Tal como os livros de Tralfamadore, conjuntos de símbolos em representação de momentos não relacionados que se revelavam objetos de maravilhamento quando olhados como um todo, também Slaughterhouse-Five é um mosaico de episódios aparentemente aleatórios e quase tragicómicos que, à distância de uma análise global, desabrocham num universo de sentidos.

05
Ago24

“The Late Mattia Pascal” – Luigi Pirandello

Helena

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The Late Mattia Pascal, editado em Portugal em junho deste ano pela Relógio d’Água, sob o título O falecido Mattia Pascal, é um romance sobre um homem que morre duas vezes, nenhuma delas correspondendo à morte convencionalmente conhecida. De facto, Mattia Pascal, um homem infeliz, casado com a mulher cobiçada pelo seu melhor amigo na sua infância, azucrinado pela sogra, arrasado pela morte da sua mãe, seguida da das suas duas filhas, fica tão surpreendido como qualquer habitante de Miragno quando encontra, no jornal, durante uma ausência prolongada, a notícia do seu suicídio.

Interpretando a identificação errada do cadáver como um estratagema da sua esposa para se livrar de si, Mattia decide aproveitar o seu estatuto de (teoricamente) morto para iniciar uma nova vida, sem amarras nem preocupações. Pouco a pouco, Mattia constrói e consolida uma nova identidade, a de Andrea Meis, com um passado diferente do seu e, se tudo corresse bem, também um futuro diferente. Contudo, a sua ilusão de liberdade não dura muito, já que depressa se apercebe de que a sua condição o impede de realizar a maior parte das ações que as pessoas vivas tomam como garantidas: adotar um cão, ou procurar apoio das autoridades após ter sido vítima de um furto. Chegado a Roma, hospedado em casa de uma família e apaixonado pela filha do patriarca, manter a integridade da sua nova persona torna-se cada vez mais difícil.

“A deep, painful pity came over me, pity for her and for me, a cruel pity which drove me inexorably to caress her, to caress in her my own pain, which could only find comfort in her, even though she was its cause.”

Pouco antes de iniciar a leitura deste livro, que me foi recomendada por amigos, deparei-me com a informação de que Pirandello, nobel da literatura, era célebre pelo seu trabalho enquanto dramaturgo. Isto fez-me recear que tivesse escolhido a ponta do novelo errada para começar a explorar a sua bibliografia. No entanto, não foi isso que aconteceu. Pelo contrário, a minha leitura de The Late Mattia Pascal foi muito agradável e divertida.

Desde o princípio, o estilo de Pirandello transmitiu-me uma sensação de familiaridade pela sua proximidade ao de Machado de Assis. Isto pode parecer contraditório, já que eu gostei muito deste livro, mas não gostei da minha experiência com o Dom Casmurro de Machado, por este último levar o chamado “derrubar da quarta parede” a um ponto que, a meu ver, é exagerado. Ao tecer comentários direcionados ao leitor, sem que estes se intrometam na relevância da narrativa (ficou-me na memória para a eternidade o excerto em que Machado reconhece que não devia ter escrito o capítulo que antecedia aquele), Pirandello fez-me rir e sorrir, uma e outra vez, e estabelecer uma afinidade genuína pela voz narrativa.

Fiquei um pouco desapontada com o rumo que a história tomou após a chegada de Mattia a Roma, mas o momentum narrativo que me carregou ao longo do início e do fim do livro acabou por compensar a estagnação do meu entusiasmo a meio. Isto trata-se, claro, de uma reação completamente subjetiva. Recomendo este livro, tal como me foi recomendado, como uma obra que orbita os conceitos de identidade e de máscara, refletindo acerca da forma como somos condicionados por uma história que nos antecede, quer para nos relacionarmos com os outros, como para estarmos em paz com a identidade que associamos a nós próprios. Parece-me apropriado que a esta leitura se siga a do machadiano As Memórias Póstumas de Brás Cubas.

 

29
Jul24

“Dora Bruder” – Patrick Modiano

Helena

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A partir do anúncio de um jornal parisiense que comunicava o desaparecimento de Dora Bruder, de quinze anos, em dezembro de 1941, Patrick Modiano lança-se num processo de busca obsessiva pelos pormenores da história desta rapariga, com a qual partilha o espaço geográfico em que se movimenta, ainda que a décadas de distância. Pouco a pouco, vão-se desvendando os contornos da figura misteriosa de Dora Bruder, uma adolescente de ascendência judaica que o seu pai decidiu proteger, não incluindo o seu nome no recenseamento obrigatório dos judeus e fazendo-a ingressar no internato do Sagrado Coração de Maria. Foi desta instituição que Dora fugiu, sem se saber como nem por que motivo. Deixa-se ao leitor a liberdade para preencher as lacunas que os dados concretos deixaram em branco, e para fazer o seu papel nesta cadeia de passagem do testemunho que o tempo não deve quebrar.

Este livro cativou-me pelo conceito de que parte e desiludiu-me pela sua concretização. Pensava que o interesse do autor pela história de vida de uma rapariga parisiense judia o levasse a tecer uma narrativa focada nela, em que preenchesse as lacunas e desse corpo a uma história sólida envolvente. Em vez disso, Modiano descreve o seu processo de busca pela identidade de Dora Bruder, um processo bastante centrado nas interseções da vida desta com a do autor e no estabelecimento de relações entre datas que permitem criar um pequeno friso cronológico do que terá sido grande parte da sua vida, sem, no entanto, a aprofundar em pormenores. A fuga de Dora do pensionado do Sagrado Coração de Maria é um dos períodos deixados em branco que, a meu ver, tinham potencial para dar origem a uma narrativa mais densa. As poucas informações acerca dela e o facto de Modiano ter um especial interesse na sua história por partilhar os espaços em que ela se movimentava, mas que o leitor não frequenta, levam a que a relação do leitor com a figura de Dora não seja tão intensa como aquela que seria de esperar. Para além disso, e como consequência da familiaridade do autor com o espaço em que se movimenta, há muitas referências a ruas parisienses que tive alguma dificuldade em visualizar, já que aos nomes das ruas não se associam descrições.

O que achei mais interessante nesta narrativa foram as pequenas histórias de pessoas que pontuaram a pesquisa de Modiano e aqui encontraram uma voz. Os escritores Friedo Lampe e Felix Hartlaub, um apolítico e um combatente a favor de uma causa que lhe tinha sido imposta, são imortalizados em Dora Bruder como vítimas da máquina de morte que colheu as vidas de homens que, como eles, apenas se interessavam pela beleza do pôr do sol e pelos detalhes do dia-a-dia das pessoas comuns. Fica, também, para a história a ação das “amigas dos judeus”, mulheres arianas revoltadas contra as medidas antijudaicas que usavam estrelas de David ao peito e em volta da cintura, em modo de protesto.

Pode ser que eu e Dora Bruder nos tenhamos cruzado numa má altura e que eu possa regressar a ele mais tarde, com outros olhos. No fundo, gostei deste livro e recomendo-o pela forma inovadora como conta uma história que poderia corresponder à de muitas outras vidas perdidas no caos do Holocausto, sem cair em clichés. A dureza do passado é, de certo modo, atenuada pelo facto de o leitor ser confrontado com factos em segunda mão – o autor encontrou estes registos e transmite-nos as suas conclusões. Em suma, é um livro curto que nos leva numa viagem no tempo e no espaço, até aos dias de pesadelo nazi na Cidade Luz.

21
Jun24

"As Vinhas da Ira" - John Steibeck

Helena

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Após ter sido deixado em liberdade condicional por bom comportamento, Tom Joad apanha boleia até junto da sua família, no Oklahoma. Pelo caminho, encontra Casey, um antigo pregador, amigo da família, que o ajuda a chegar junto dos seus. Quando os encontram, eles estão em preparativos para partir para a Califórnia. A “Dust Bowl” instalara-se nos céus dos estados do Sul, uma tempestade de poeira prolongada, causada pela exploração exaustiva dos solos, que dizimara as colheitas e afetara drasticamente a qualidade do ar. Grandes empresas apoderam-se das terras dos agricultores e substituem a mão de obra humana para a sua exploração por tratores. Da Califórnia chegavam panfletos a anunciar a necessidade de trabalhadores, com ilustrações que deixavam adivinhar uma região paradisíaca, repleta de árvores de fruto e de oportunidades para se enriquecer.

Contudo, à medida que percorrem a Rota 66, os Joads vão-se apercebendo de que a vida a oeste não é o prometido pelos panfletos. Caravanas de camiões enchem as estradas na mesma direção que eles, e todos vão em busca de trabalho. Trabalho esse que, segundo os relatos de quem viaja em direção contrária, é escasso e mal pago.

Determinados a descobrir por si próprios e sem lugar para onde voltar, os Joads persistem na sua viagem até ao fim. Pelo caminho, param em acampamentos de migrantes que a polícia insiste em dispersar e em infraestruturas do governo sem qualquer oferta de trabalho na área envolvente, ganham alguns companheiros de viagem e perdem outros, debatem-se com a fome e com a escassez. Chegados à Califórnia, encontram postos de trabalho sazonais que empregam muitos trabalhadores por muito pouco dinheiro, já que a resposta aos anúncios de emprego suprira as necessidades, e que aquilo que um se recusaria a ganhar é aceite por outro mais desesperado e faminto. Em circunstâncias em que parece ser cada um por si, começam a manifestar-se os primeiros movimentos grevistas, logo reprimidos violentamente pela polícia. Os Joads, inocentes, humildes, com duas crianças e uma mulher grávida na família, tentam, como tantos outros na mesma situação que eles, sobreviver.

“Talvez, pensei eu, seja melhor amar todos os homens e todas as mulheres; talvez que o Espírito Santo seja apenas o espírito humano. Talvez que todos os homens tenham em conjunto uma única alma grande de que toda a gente faz parte.”

As Vinhas da Ira destaca-se no panorama da literatura americana pela forma como desafia a mentalidade individualista que uma sociedade fundada no capitalismo liberal como a americana estabeleceu como dogma. O percurso de Tom, a personagem principal desta narrativa e o novo chefe da família deslocada, é marcado pela tomada de consciência de que a conquista de condições de trabalho dignas tem de passar pela união dos trabalhadores famintos e insatisfeitos. As personagens desta narrativa são vítimas do ideal americano da produção fácil de riqueza, que, na realidade, apenas assiste a uma mão-cheia de oportunistas que vivem em paz com a exploração de multidões afundadas na precariedade. Casey, de forma mais dramática, e os Joad, gradual mas inevitavelmente, morrem em defesa do seu direito de viver condignamente.

Steinbeck é célebre pelo simbolismo nas suas obras, em particular em pormenores d’As Vinhas da Ira. No nado morto de Rosa de Sharon, por exemplo, a teoria literária identifica uma referência ao bebé Moisés, lançado ao rio numa cesta, sendo que este bebé levaria a quem o encontrasse a mensagem da miséria em que viviam os trabalhadores chegados do Este. Já eu, vi  na gravidez de Rosa de Sharon a representação daqueles que nascem e crescem num labirinto de precariedade de que não conseguem escapar, geração após geração.

Tal como Ratos e Homens e A Pérola, As Vinhas da Ira é um romance notável pela sua sobriedade. Num registo despido de artifícios, límpido e severo, Steinbeck descreve a viagem de uma família, peripécia atrás de peripécia, desilusão atrás de desilusão, e cada uma delas é mais impactante e mais dura pela crueza do estilo com que são narradas. De facto, como é hábito em Steinbeck, este não é um romance reconfortante e animador, mas sim um lembrete da extensão da mesquinhez e da insensibilidade que a natureza humana pode alcançar. Poucos são os momentos de felicidade que o leitor pode partilhar com as personagens, tal é a sequência de infortúnios de que são alvo. Isto podia fazer com que este romance caísse naquilo a que hoje se chama “pornografia emocional”, livros em que as personagens são vítimas de uma quantidade irrealista de traumas, apenas com o objetivo de provocar sensações desconfortáveis no leitor. O mais perturbador de As Vinhas da Ira é o facto de não ser irrealista nem exagerado, mas sim uma ficção muito próxima da realidade de tantas famílias que deixaram, e ainda deixam, o lugar a que chamam “casa” para tentarem encontrar melhores condições de vida noutro sítio, e que só encontraram mais miséria e o rancor da população local.

Não se deixem, contudo, desencorajar pelo tom pessimista que serve de banda sonora a esta narrativa, já que, no final de contas, por entre as muitas dificuldades que os Joads enfrentam, há raios de esperança, personagens que fazem com que pareça possível que a verdadeira natureza humana seja ser bom e que há sempre quem esteja disposto a ajudar o próximo em momentos de aperto. As Vinhas da Ira ganhou o Prémio Pulitzer em 1940. É revoltante, é chocante, é tocante, é assombroso. Se eu também tivesse estado no júri, também teria votado nele.

 

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