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H-orizontes

H-orizontes

30
Mar23

“A morte de Ivan Ilitch” – Lev Tolstoi

Helena

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A morte de Ivan Ilitch inicia-se com a notícia da morte enunciada no título e com as consequentes preocupações dos seus familiares relativamente à sua herança e dos seus colegas de trabalho sobre as novas posições que este acontecimento os levaria a ocupar na hierarquia laboral. Através de uma analepse, recuamos no tempo até à juventude de Ivan Ilitch e acompanhamos a sua consistente subida de postos nos trabalhos que desempenhava, através de métodos mais ou menos honestos que, a seu ver, eram apenas necessários. Após uma nova promoção, uma melhoria na relação com a sua esposa e o início do processo de mudança de casa, tudo parecia promissor na vida de Ivan Ilitch. Contudo, uma queda inesperada durante as mudanças desencadeia um processo de degradação inesperada na sua pessoa. Inicialmente focado na determinação da fonte da dor que sentia e do seu tratamento, Ivan Ilitch cai gradualmente no desânimo e na descrença e acaba por aceitar aquilo que lhe parece óbvio e inevitável: o seu mal não corresponde a um problema orgânico específico, mas sim à chegada certa e gradual da hora da sua morte. Desacreditado pela família e incompreendido pelos médicos, Ivan Ilitch envereda por uma descida em espiral que o levará a reavaliar toda a sua vida e a questionar a noção terrível da morte que persegue os Homens desde tempos imemoriais.

“a própria morte de um conhecido próximo provocava, como sempre, um sentimento de alegria: quem morreu foi ele, e não eu.”

Evidenciando a solidão a que é votado um ser humano vítima de uma degradação física e psicológica de que não tem culpa, Lev Tolstoi explora realidades que Kafka retoma na sua Metamorfose, em que Samsa, transformado em escaravelho do dia para a noite, se vê repentinamente ostracizado e desprezado pelos seus próprios entes familiares.

Através de um estilo desprovido de figuras estilísticas que o embelezem, mas também que o enfraqueçam, Tolstoi constrói um retrato cru e comovente da descida de um homem às profundezas de si próprio, ao seu passado e às suas crenças.

Este é um livro profundo na sua simplicidade, uma reflexão sobre as relações interpessoais, sobre a vida e sobre a morte, que se pode ler de uma assentada.

18
Mar23

“Não se pode morar nos olhos de um gato” – Ana Margarida de Carvalho

Helena

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Em finais do século XIX, já depois da abolição da escravatura, um navio que traficava escravos naufraga na sua travessia entre a Baía e o Rio de Janeiro. Após uma violenta disputa em pleno mar pelo mísero espaço disponível na jangada salva-vidas, sete pessoas dão à costa, numa praia rodeada por falésias altas, sem vestígios de presença humana. Apesar do desânimo geral, rapidamente estabelecem regras básicas e uma hierarquia de trabalho: o capataz regula o consumo na única fonte de água potável da praia, um olho de água que a maré tapa e descobre, enquanto os outros recolhem moluscos para comer.

Para surpresa de todos, mais um sobrevivente alcança a praia deserta: um dos escravos do porão do navio, maltratado e recebido com o horror e o ódio dos restantes náufragos. Todavia, as circunstâncias não dão margem para conflitos, e todos se juntam no único propósito de seres humanos numa situação limite: a sobrevivência.

Do trágico presente numa praia brasileira, viaja-se pelo espaço e pelo tempo para se dar a conhecer o passado dos náufragos infelizes: um jovem que vive desde sempre sob o peso da culpa; um clérigo cujo nascimento milagroso não chegou para melhorar a situação familiar precária; um criado que ainda sente nas narinas o cheiro do Mondego e esconde um grande segredo sob o seu otimismo; uma mulher criada por engordadores de escravos, a quem apenas restava tentar imitar os requintes de uma Europa que nunca conheceu; um negro que viveu a crueldade da exploração, que viu morrer os amigos e esvair-se a sua dignidade; uma menina a quem o destino foi esfarrapado por um pai de afetos abusivos; e um capataz cujo olhar seduzia por enquanto qualquer mulher. Como conseguirão sobreviver pessoas tão distintas, cada um consumido pelo seu próprio desespero?

“Não são os deuses que dormem, nós é que os sonhamos.”

O segundo livro de Ana Margarida de Carvalho, publicado em 2016 pela Teorema, conjuga com mestria a representação da violência na época histórica retratada e do sofrimento intemporal inerente à condição humana. Aos horrores da escravatura e do tráfico humano somam-se questões de identidade, de culpa, de problemas de família e do grande desespero que acompanha o instinto de sobrevivência.

Apesar de, aparentemente, a principal linha narrativa do romance ser essencialmente estática, o fator mais impactante desta história é o conteúdo das analepses que revelam o passado de cada uma das personagens, o maior ou menor fardo que cada um deles carrega na sua consciência. Ainda que todos provenham de origens drasticamente distintas, é numa situação-limite que as suas diferenças se esbatem e é possível que se percecionem como seres humanos dominados pela necessidade de sobreviver. É essa a mensagem mais poderosa do romance: por mais diferentes, falíveis e imperfeitos que sejamos, une-nos a nossa condição humana e o nosso destino inexorável.

Esta é mais uma leitura desafiante, principalmente devido ao estilo característico de Ana Margarida de Carvalho, que defende que não se deve simplificar algo que pode ser apresentado de forma complexa, e que é nitidamente influenciado por Saramago e António Lobo Antunes.

14
Mar23

“Kafka à beira-mar” – Haruki Murakami

Helena

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Em Kafka à beira-mar, Murakami leva-nos a acompanhar a jornada de Kafka Tamura, um rapaz de quinze anos que decide fugir de casa em busca da sua mãe e da sua irmã, das quais não guarda quaisquer recordações. Durante a viagem, conhece Sakura, uma rapariga mais velha que lhe deixa o seu contacto e a inquietante hipótese de que fosse ela a sua irmã esquecida.

Pouco tempo depois da sua chegada a Takamatsu, Kafka descobre o sítio que o acolheria durante a maior parte da sua estadia: uma biblioteca privada, cheia de livros com os quais podia ocupar o seu tempo. Aí conhece Oshima, o empregado da entrada, cuja cumplicidade o acompanhará ao longo das reviravoltas que a sua busca trará à sua vida.

Paralelamente à linha narrativa de Kafka, e aproximando-se lentamente dela, surge a história de Nakata, um velho de Nakano cujas capacidades cognitivas se viram reduzidas após um misterioso acidente com crianças numa floresta, na altura da Segunda Guerra Mundial. Apesar de não conseguir processar e produzir ideias complexas, Nakata possui a capacidade excecional de comunicar com gatos, pelo que é frequentemente encarregado de trazer de volta a casa gatos de estimação perdidos. É numa das suas buscas que Nakata dá por si em casa de Johnie Walker, uma personagem bizarra que se dedica a matar gatos para recolher as suas almas. Confrontado com a atitude de Johny, o velho toma uma atitude que nunca julgara possível e vê-se obrigado a fugir de Nakano, sem saber para onde.

Numa narrativa mágica e cativante, as sendas de duas personagens entrecruzar-se-ão de formas improváveis e caberá ao leitor descobrir o que une um leitor órfão e um velho que comunica com gatos.

“Things outside you are projections of what's inside you, and what's inside you is a projection of what's outside. So when you step into the labyrinth outside you, at the same time you're stepping into the labyrinth inside.”

Haruki Murakami, um escritor de referência no realismo mágico japonês, constrói em Kafka à beira-mar um enigma cuja explicação fica ao encargo do próprio leitor. Este não é um livro que recomendaria aos leitores que (como eu) gostam de histórias sem pontas soltas. Não faltam pontas soltas neste romance, cheio de significados ocultos e tramas que apenas podem ser reconstituídas pela imaginação de quem lê, e dotado de um forte sentido metafórico que não consegui compreender totalmente.

Entretecidas na trama narrativa encontram-se referências a temas como a filosofia, a música e a literatura, que enriquecem este livro e captam de uma forma intensa a relação que pode existir entre as pessoas e as manifestações culturais e filosóficas, assim como a sua importância para a compreensão da vida e da sociedade.

Pude reparar na tendência frequentemente apontada a Murakami de sexualizar as suas personagens femininas, todas elas retratadas com uma carga predominantemente erótica e com um papel fortemente sexual nas relações que estabelecem com as personagens masculinas do romance – por vezes em relações chocantes pelo fosso etário que separa os intervenientes.

Ainda assim, e apesar de o final não ter correspondido às expectativas que que o romance começou por criar, considero que este livro é uma boa escolha para uma iniciação em romances de Murakami, um conjunto de peças de puzzle sem um desenho para nos orientar em direção à sua solução.

02
Mar23

“Born a Crime – Stories from a South African Childhood” – Trevor Noah

Helena

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África do Sul, anos 80 do século XX. A libertação de Nelson Mandela e o fim do Apartheid alteram o status quo da sociedade sul-africana, derrubando os ideais de supremacia branca consolidados em décadas de estruturas governativas colonialistas. É durante este atribulado período de transição que se desenrola a infância de Trevor Noah, atual comediante e apresentador de televisão, filho de uma mulher sul-africana e de um homem germano-suíço – o resultado de uma união punida pelas leis segregacionistas do pré-Apartheid.

Através de 18 capítulos, que correspondem a 18 histórias da infância de Trevor, ficamos um bocadinho mais perto de entender a experiência de uma criança que, sem poder incluir-se no grupo dos meninos negros nem no dos meninos brancos, foi trilhando o seu caminho, simultaneamente único, mas de alguma forma comum às crianças mulatas sul-africanas nos anos 80.

“Before that day, I had never seen people being together and yet not together, occupying the same space yet choosing not to associate with each other in any way.”

Este livro surpreendeu-me imenso pela positiva, por ser tão bem conseguido em todos os aspetos: por sensibilizar os leitores para as condições de vida sob o regime de repressão do Apartheid, por reproduzir tão vivamente a história de uma infância fascinante e por retratar um povo cujos costumes e cicatrizes ainda hoje são passados herdados de geração em geração.

Ao mesmo tempo que se trata de um livro coeso e bem construído, Trevor varia o seu registo narrativo e despreza a cronologia no que toca ao relato dos acontecimentos. Assim sendo, Born a Crime conjuga discursos sóbrios e solenes e registos informais e divertidos que faz com que os leitores sintam que estão a assistir a um dos seus espetáculos de stand-up comedy. Quanto à organização temporal, mesmo que os relatos não correspondam à ordem cronológica dos acontecimentos (afinal, esta não é uma biografia, mas sim um memoir), isso em nada impede que, no final, o leitor consiga visualizar o quadro da infância de Trevor com todas as suas nuances e pormenores.

A dedicatória de Born a Crime é dirigida a Patricia Noah, a mãe de Trevor, uma personagem omnipresente na sua narrativa de Trevor e que influenciou em grande medida, direta e indiretamente, o adulto em que ele se veio a tornar. Sem recorrer a longos agradecimentos ou a discursos laudatórios, Trevor faz desta obra um monumento à força de vontade da sua mãe, uma mulher inspiradora na sua resiliência. Para além disso, ao ter sido vítima de violência doméstica, cuja desvalorização por parte das autoridades conduziu a consequências extremas, a sua história é particularmente relevante para sublinhar a importância do reconhecimento e da condenação de comportamentos abusivos no seu estado mais precoce.

Assim, recomendo vivamente a todos que deem uma oportunidade a este livro, uma história brutal e hilariantemente real que vos fará rir à gargalhada, franzir o sobrolho e ferver de revolta, no espaço de um par de capítulos.

“language, even more than color, defines who you are to people.”

08
Fev23

“Written on the Body” – Jeanette Winterson

Helena

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O narrador autodiegético de género indeterminado de Written on the Body leva o leitor a acompanhar o seu percurso enquanto amante fervoroso cuja vida sofre uma mudança radical após conhecer a mulher por quem se apaixona verdadeiramente.

Depois de vários anos a saltitar de relação para relação, vivendo apenas para a sensação eletrizante do princípio de uma paixão, o narrador encontra estabilidade na companhia de Jaqueline, uma trabalhadora do zoo, apesar de ela não o excitar ou interessar particularmente. Tudo parecia correr de acordo com o esperado, até Louise surgir na vida do narrador. Louise, uma mulher que o introduz no seu casamento em ruína e lhe revela novos patamares daquilo a que o narrador chamava amor.

Num registo fluído e poderoso, Jeanette Winterson apresenta-nos a obstinação de um espírito apaixonado, confrontado com a imprevisibilidade da vida e agarrado à grande certeza que a suporta: o ser amado.

“Why is the measure of love loss?”

O narrador desta história afirma repetidamente que são os clichés que arruínam relações, e eu sou da opinião de que também podem arruinar uma boa narrativa. Assim, pela maneira como retrata um sentimento tão explorado ao longo de séculos de literatura, sem cair em lugares-comuns e frases feitas, esta foi uma leitura tão intensa como refrescante.

Conjugando um erotismo flamejante e uma tristeza profunda e palpável, Written on the Body é um livro que vale pela sua carga sentimental, mais do que pelas poucas peripécias que compõem o enredo. Deste modo, apesar de, normalmente, não me sentir inclinada a ler romances caracterizados pela ausência de ação, fui conquistada pela forma como os pensamentos do narrador, vindos em ondas de intensidade, me foram arrastando para as profundezas do seu espírito. O amor, a perda, a saudade, a dor e a culpa são os pilares sentimentais de um ser falível e imperfeito que descobriu com Louise uma nova forma de sentir.

Apreciei particularmente o encaixe das memórias do narrador em relação às suas relações passadas, cada uma com as suas particularidades mais ou menos excêntricas, com as virtudes e os defeitos que individualizam as relações humanas.

Em síntese, Written on the Body é um louvor ao amor e ao fervor da paixão, tanto a nível físico como emocional, maravilhosamente concretizado através de uma escrita simultaneamente poética e visceral, que faz dele uma obra única, tocante e imperdível.

“Written on the body is a secret code only visible in certain lights; the accumulations of a lifetime gather there.”

20
Jan23

“Livros e cigarros” – George Orwell

Helena

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Livros e cigarros é uma coletânea de ensaios da autoria de George Orwell, publicados entre 1936 e 1947.

No primeiro ensaio, que dá nome ao livro, Orwell reflete acerca dos hábitos de despesas da população britânica, a fim de rebater o argumento de que o número reduzido de leitores se deve ao elevado custo dos livros. Segundo as suas contas, o dinheiro gasto em itens como maços de tabaco seria suficiente para um indivíduo enriquecer o seu conhecimento literário.

Em Memórias de um livreiro e Confissões de um crítico literário, desmistifica-se o ideal embelezado da vida dos livreiros e críticos literários. Estes vivem de tal maneira assoberbados pelos livros que os rodeiam que acabam por perder o prazer da leitura, lidando diariamente com clientes com um interesse livresco artificial e com enormes quantidades de livros que nunca leriam de livre vontade.

A prevenção da literatura é um ensaio sobre a forma como a liberdade de expressão e de imprensa é posta em causa sistemática e quase impercetivelmente pelas camadas mais esclarecidas da população, num processo mascarado por ideais sociais e políticos que potenciam a distorção da realidade e a restrição das liberdades individuais em nome de um bem maior.

Em Um, dois, esquerda ou direita – O meu país, Orwell debate a importância real dos acontecimentos da Grande Guerra, comparando o impacto que tiveram na sua infância com a importância que lhes é conferida pela sociedade. Para além disso, explora-se a dualidade do conceito de patriotismo, comummente associado aos ideais conservadores quando, na verdade, a geração de Orwell o vivia quase apoliticamente, como resultado da sua educação.

Por fim, Assim morrem os pobres e Ah, ledos, ledos dias são, respetivamente, ensaios sobre a experiência do autor numa ala popular de um hospital francês e no colégio que frequentou antes de ingressar em Wellington, ambas marcantes e catalisadoras de reflexões acerca das condições dos serviços de saúde da primeira metade do século XX e do impacto do ambiente educativo na formação intelectual e emocional de uma criança.

“A liberdade do intelecto implica a liberdade de relatar o que vimos, ouvimos e sentimos, e não sermos obrigados a forjar factos e sentimentos imaginários. As tiradas conhecidas contra a «fuga à realidade», o «individualismo», o «romantismo» e assim por diante não passam de um artifício retórico, cujo fito é conferir um verniz de respeitabilidade à perversão da história.”

Livros e cigarros é, simultaneamente, uma reflexão ponderada sobre temas que continuam a marcar a atualidade e uma oportunidade única de conhecer melhor a vida de Orwell, relatada pelo próprio.

Numa altura em que todos os anos são dados a conhecer os escassos hábitos de leitura dos portugueses, é oportuno perguntarmo-nos acerca do porquê de assim ser. Numa época em que o paradoxo da tolerância está a chegar à liberdade de expressão e de imprensa, em que opiniões individuais são bombardeadas e acusadas de pecados exagerados com uma facilidade espantosa, é importante que cada um de nós tome parte na luta pela defesa das liberdades individuais. Num tempo em que os direitos das crianças e as repercussões psicológicas da infância são cada vez mais valorizadas, é de especial interesse a leitura deste relato das vivências de Orwell, uma criança humilde da classe média, numa escola elitista, castradora e contraditória nos seus valores básicos. Para alguém que conheceu a essência da educação inglesa através de romances de Eça de Queiroz, chocaram-me particularmente as condições em que as crianças viviam, ao mesmo tempo sujeitas à intransigência dos superiores, aos tabus sociais e à discriminação, e entregues a si mesmas e aos poucos recursos de que dispõem para enfrentar as adversidades.

Assim, Livros e cigarros é mais uma coletânea de ensaios imperdível, que espicaça o espírito crítico e a curiosidade de quem a lê.

19
Jan23

“84, Charing Cross Road” – Helene Hanff

Helena

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Helene Hanff é uma guionista nova-iorquina com um gosto peculiar por literatura britânica, frequentemente indisponível nas livrarias americanas que frequenta. Um dia, um anúncio num jornal apresenta-lhe a alternativa que lhe permitirá aceder aos livros que deseja comprar, sem ter de pagar por eles um preço exorbitante: Marks & Co., uma livraria especializada em antiguidades sedeada em Londres, 84 Charing Cross Road.

A correspondência que inicialmente se destinava unicamente à encomenda de livros acaba por se estender no tempo e no significado, tornando-se um meio de convivência entre Helene e os trabalhadores da Marks & Co, principalmente Frank, responsável pela maior parte da sua correspondência. Nasce, assim, uma amizade que se perpetuará durante muitos anos, marcada por pedidos rebuscados, pedidos de visitas e trocas solidárias numa altura em que o Reino Unido enfrentava as consequências de uma guerra em solo europeu.

84, Charing Cross Road não me conquistou como pensava que faria. Esperava que a relação entre Helen e a livraria fosse mais sólida, mais consistente e construída de uma forma mais continuada do que aquela que as cartas (aquelas que não foram suprimidas) testemunham. Ainda assim, é certo que a construção desta amizade aconteceu, já que esta é a história de como a autora deste livro estabeleceu uma forte ligação com os livreiros que lhe forneciam os livros de que ela tanto gostava, em especial com Frank, falecido antes de ela poder visitá-lo em Londres. É curioso notar como a casualidade brincalhona da escritora americana vai enfraquecendo e contaminando a frieza britânica das cartas iniciais de Frank.

A este romance epistolar segue-se, na edição da Virago Press, The Duchess of Bloomsbury Street, um registo diarístico da estadia da autora no Reino Unido, um sonho realizado após a publicação e imenso sucesso de 84, Charing Cross Road. Penso que esse seguimento será de maior interesse para alguém que conheça as realidades inglesa ou nova-iorquina, caso contrário é difícil ter a perceção das diferenças culturais que espantam a autora e, principalmente, dos locais que descreve com tanto entusiasmo. Para além disso, com tantos convites para jantares, visitas e entrevistas, acabei por me perder por entre a grande quantidade de nomes daqueles que acompanharam Helene Hanff em determinados dias da sua estadia.

Assim, apesar de não me ter fascinado, 84, Charing Cross Road é um livro reconfortante que serve de testemunho do poder dos livros nas relações interpessoais e nas reviravoltas da vida.

14
Jan23

“De noite todo o sangue é negro” – David Diop

Helena

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Em plena Primeira Guerra Mundial, Alfa Ndiaye, um soldado senegalês, acompanha as últimas horas de vida do seu amigo Mademba, o seu “mais do que irmão”, com “o lado de dentro do lado de fora”, na terra de ninguém. Por três vezes, Mademba pede a Alfa que o mate e acabe com o seu sofrimento, mas por três vezes Alfa recusa. Só depois de o seu “mais do que irmão” morrer, com as entranhas espalhadas pelo chão, é que Alfa se apercebe do que poderia ter feito e não fez, e de como seguir as regras nem sempre é o mais adequado.

Desperto para a consciência da arbitrariedade da guerra e da total ausência de sentido nas ordens a que, durante tanto tempo, obedeceu, Alfa começa a descer numa espiral de sentimentos de culpa que lhe exigem uma redenção. Depois da morte de Mademba, Alfa começa a voltar para a trincheira depois dos outros soldados. Fica no campo de batalha, à espera de uma vítima, de um inimigo de olhos azuis que possa esventrar e, contrariamente ao que fez com Mademba, matar à sua primeira súplica. De volta à trincheira, trazia a espingarda e a mão do inimigo que matara, algo que os seus companheiros começaram por louvar, mas rapidamente começaram a associar a uma loucura que não era igual àquela que lhes era pedida quando se lançavam para o campo de batalha. E se o soldado senegalês for um feiticeiro? Corre o rumor de que ele é um demm, um devorador de almas…

“Creio ter compreendido que aquilo que está escrito lá em cima não é senão uma cópia daquilo que o homem escreve cá em baixo.”

Deparando-se com a abundância de cartas tocantes de soldados nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial nos arquivos europeus, David Diop lançou-se numa busca por cartas do mesmo género enviadas pelos soldados senegaleses na frente de batalha. Face à natureza puramente burocrática dos documentos que encontrou, Diop propôs-se produzir uma obra que colmatasse essa lacuna nos testemunhos de um povo. Assim nasceu De noite todo o sangue é negro, vencedor do Booker Prize de 2021.

Neste livro curto, mas intenso, David Diop apresenta uma face da guerra que raramente se vê retratada nos romances que a tomam como pano de fundo: o contingente negro de soldados vindos das colónias para combater ao lado das tropas dos seus colonizadores. Alfa e Mademba são dois dos senegaleses que abandonaram o seu país em direção a uma realidade completamente diferente, a uma trincheira onde era esperado que os soldados não pensassem, apenas obedecessem com uma loucura irracional ao apito que os enviava para o campo de batalha. Assim, Diop posiciona os holofotes sobre a estereótipo de que os soldados africanos eram vítimas, permanentemente associados à selvajaria e à brutalidade, com a finalidade de aterrorizarem o inimigo.

Apesar de um cenário de guerra ser uma realidade dura e dramática por si só, o autor adota uma perspetiva que lhe permite fazer uma análise da mente humana face a uma situação limite: a morte lenta de um “mais do que irmão”, prolongada pela incapacidade humana de pensar de forma objetiva numa situação tão inesperada e tão cruel. A partir daí, Diop usa as palavras de Alfa para explorar o paradoxo absurdo da guerra: era correto e desejável matar indiscriminadamente qualquer pessoa que ocupasse o lado oposto da terra de ninguém, mas mutilar as mãos do inimigo e recolhê-las como troféu era, nas palavras do comandante, contra as regras da “guerra civilizada”. Num universo em que o apelo à violência é arbitrário e o espírito crítico desencorajado, o sentimento de revolta de Alfa cresce e agrava a sua necessidade de vingança.

Para além de expressar claramente a quebra cultural que os soldados africanos sofriam na sua vinda para solo europeu, David Diop equacionou a questão de muitos deles não falarem mais do que a sua língua nativa. Assim, recorrendo a repetições e formulações típicas da língua indígena, alterou a cadência e o ritmo da narrativa para os aproximar aos do fluxo de consciência autêntico de Alfa Ndiaye. Esta escolha confere, ainda, um tom poético e místico ao texto traduzido.

Em conclusão, De noite todo o sangue é negro é um livro imperdível, violento, marcante, com um final surpreendente, e que, a meu ver, deve ser complementado pela visualização de entrevistas dadas pelo autor sobre a sua inspiração e processo de escrita.

“A guerra é isso: é quando Deus está atrasado em relação à música dos homens”

02
Jan23

“Brief Answers to the Big Questions” – Stephen Hawking

Helena

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Será que Deus existe? Como começou tudo isto? Haverá mais formas de vida inteligente no universo? Podemos prever o futuro? O que há dentro de um buraco negro? É possível viajar no tempo? Sobreviveremos na Terra? Devemos colonizar o espaço? Seremos ultrapassados pela Inteligência Artificial? Como delineamos o nosso futuro? Estas são as perguntas a que Stephen Hawking se propõe responder em Brief Answers to the Big Questions, um livro que nos leva das origens do universo ao próximo milénio em meia dúzia de páginas. Com um otimismo que não deixa de ter raízes na realidade científica do Universo, Hawking parte do seu génio incomparável (ainda que nunca o reconheça) e não só nos deixa uma explicação, como também conselhos e alertas para o que está por vir. Preparado durante a sua vida e publicado postumamente Brief Answers to the Big Questions cumpre aquilo que o título promete e eterniza, paralelamente a A Brief History of Time,  o imenso legado que Hawking deixou à espécie humana.

“This creativity can take many forms, from physical achievement to theoretical physics.”

Se eu achava que a minha admiração por Stephen Hawking não podia ser maior, não podia estar mais errada. Para além da sua inteligência fora de série, o cientista que transpôs os limites expectáveis da medicina e chegou aos confins do Universo recorrendo apenas à sua mente era ainda dotado de um grande sentido de humor e de uma abrangente cultura geral e popular. Só assim conseguiria construir um livro tão próximo do público nas referências que utiliza para fazer comparações simples e eficazes.

Stephen Hawking revela uma capacidade incrível de simplificação de conceitos e raciocínios complexos, de forma a que este livro possa ser compreendido por um público muito vasto. Assim, buracos negros, ondas magnéticas e a evolução da inteligência artificial tornam-se noções mais tangíveis para aqueles que nunca foram confrontados com textos científicos.

Se eu, que não domino quaisquer conceitos de física e teoria quântica, me senti tão cativada pelos raciocínios de Hawking, deduzo que alguém que possua bases sólidas nesta matéria poderá encontrar em Brief Answers to the Big Questions uma pequena obra verdadeiramente fascinante.

“behind every exceptional person there is an exceptional teacher.”

26
Dez22

“La Carne” – Rosa Montero

Helena

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Soledad Alegre é uma sexagenária que nunca conseguiu viver uma relação amorosa saudável e estável em toda a sua vida. O seu último relacionamento, com um homem casado, acabara recentemente e, como se isso não fosse suficiente, o seu ex-amante fá-la saber que comprou bilhetes para ir com a esposa à ópera ver Tristão e Isolda - a peça que servira de banda sonora à sua relação com Soledad, e a que ela também decidira ir. Determinada a contrariar a posição de superioridade de Mario e as expectativas sociais face às relações de uma mulher da sua idade, Soledad decide reservar a companhia de um prostituto através de um site. Adam, de trinta e dois anos, é o homem que ela escolhe para seu acompanhante – jovem, alto e elegante, causa surpresa entre as pessoas que, na ópera, a reconhecem.  Acabada a peça, Soledad prepara-se para se despedir de Adam, quando o dono de uma loja na rua em que passavam chega à porta ensanguentado, seguido do criminoso que sai a correr depois de o ter esfaqueado. A reação de Adam é instantânea e, em poucos segundos, o assaltante está no chão e o rapaz esmurra-o enraivecidamente, até à chegada da polícia.

Apesar de ser imprudente levar o prostituto à sua própria casa, Soledad convida-o a subir. Ainda que as suas intenções fossem simplesmente tratar as sequelas da luta, a solidão de Soledad e a sensualidade de Adam conduzem-na irresistivelmente para uma noite com o jovem escort. Passado o serão e paga a tarifa, tudo estaria resolvido se a figura de Adam não pairasse ainda sobre os pensamentos de Soledad. A essa noite segue-se outra, e depois outras mais, numa cadeia de inércia e carência que, não tarda, começará a levá-la por vias obscuras.

“De modo que a ella lo único que le servía para olvidarse de la Parca, y del desperdicio de la mezquina vida, era el amor.”

Como Rosa Montero faz questão de pedir aos leitores no apêndice de agradecimentos, vou tentar expressar a minha opinião em relação a este livro sem revelar os traços da narrativa que estragariam a experiência de uma primeira leitura. Assim, posso dizer que este é um livro sobre a solidão, o desespero e a inexorabilidade do envelhecimento.

Na figura de Soledad encontramos uma mulher cuja necessidade de amar sempre se sobrepôs à qualidade e à longevidade das suas relações, uma mulher que se vê enrodilhada na intensidade assoberbante dos seus sentimentos. Como se não bastasse que todos os seus esforços nas suas relações lhe saíssem gorados, Soledad depara-se agora com o drama do tempo que passa sem que se dê conta. Será este beijo o último? Será esta noite a última que passa acompanhada? Será este o seu último amor? Soledad ziguezagueia entre questões a que é impossível responder. As páginas de La carne estão impregnadas da exasperação de uma mulher vencida pela solidão uma e outra vez, e por isso uma e outra vez de regresso a uma relação duvidosa pela sensação fugaz de ainda ser querida.

Apesar de não ter gostado da forma como Rosa Montero se infiltra neste romance enquanto personagem muito semelhante à sua existência real e do nível exaustivo a que leva o emprego de factos curiosos que lhe é característico, adorei este livro. Se estão à procura de uma narrativa que vos apanha de surpresa e vos deixa colados às páginas do início ao fim, La carne é o livro certo para vocês.

“La vida es un pequeño espacio de luz entre dos nostalgias: la de lo que aún no has vivido y la de lo que ya no vas a poder vivir.”

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