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H-orizontes

H-orizontes

03
Mai24

“Bichos” – Miguel Torga

Helena

Bichos é uma coletânea de quinze contos, cada um com um “bicho” como protagonista. Em pouco mais de meia dúzia de páginas, conta-se a história de um cão de caça velho que recorda o seu passado, a de um gato mimado que tenta regressar à sua natureza vadia, a de uma mulher que tenta desesperadamente chegar à aldeia vizinha para dar à luz, a de um burro abnegado que se vê rodeado por uma alcateia quando carregava o dono, a de um sapo que ensinou um homem a conectar-se com a Natureza, a de um galo que foi poupado à panela para criação, a de um menino que trepou a uma árvore para alcançar um ninho, a de uma cigarra que gostava tanto de cantar que negligenciou a preparação para o inverno, a de um pardal que conhece os melhores meios para se alimentar durante todo o ano, a de um pastor que perde uma ovelha, a de um melro que observa cinicamente as preocupações das moças, a de um touro que tenta, a todo o custo, virar o jogo contra os toureiros, a de um senhor que coleciona insetos e a de um corvo que se rebelou contra a vontade de Deus.

"Era um bicho. Um inofensivo bicho, igual aos milhares que tinha no escritório embalsamados."

Três destes “bichos” são seres humanos, mas a sua presença não destoa do tom global do livro, já que Torga traz ao de cima a sua face mais animalesca. Em contrapartida, é conferida aos animais uma sensibilidade muito humana. Mais importante do que isso, é-lhes dada uma voz, e com ela o direito de serem ouvidos e considerados como seres vivos sencientes, nossos iguais no que toca à condição de habitantes do planeta Terra. Conseguimos substituir o pardal sabichão de Ladino por um humano egoísta, assim como a grávida de Madalena por um animal selvagem em trabalho de parto.

Os meus contos preferidos foram Morgado e Miura. Estes foram, também, os contos que mais me perturbaram. O sofrimento animal contado em primeira pessoa atinge-nos e enterra-se como as lâminas dos toureiros no dorso de Miura. Funcionando como um espelho, em que o animal sente e pensa e o homem parece desprovido de emoções e poder da razão, somos confrontados com a chocante bestialidade humana – a insensibilidade e o sadismo que o abandono de um animal em condições perigosas e a exploração do sofrimento de outro para entretenimento, respetivamente, revelam.

Alguns leitores consideram que cada um destes contos é uma representação de um tipo social da época da ditadura de Salazar. Na minha opinião, são representações de tipos sociais que se podem encaixar em qualquer época. Daí considerar esta leitura tão pertinente para todas as alturas, e invariavelmente eficaz no reforço da consciência de cada um enquanto cidadão do mundo.

17
Dez23

“Pequenos Delírios Domésticos” – Ana Margarida de Carvalho

Helena

Pequenos-Delitos-Domesticos.jpg

Esta compilação de contos da autoria de Ana Margarida de Carvalho é um conjunto de histórias sobre a (não) pertença, o conhecimento de nós próprios e do outro, a partida e o regresso, o trauma e a redenção. Treze contos e dois poemas levam-nos a universos mais ou menos verosímeis, povoados por personagens, na sua maioria, peculiares e misteriosas.

O enredo de cada história é singular, desde o regresso a casa de um membro de uma organização terrorista para ajudar um amigo de longa data a pôr em prática as suas intenções de suicídio, a uma viagem a uma ilha sem sol para a escrita do epitáfio de uma conhecida em estado terminal. As personagens evadem-se ou regressam a um tempo ou a um espaço com uma significação subjetiva pesada, rica, nostálgica, destrutiva.

“estes Europeus nunca hão de compreender que o mais importante nunca está no centro das fotos, mas nas periferias, ou até mesmo fora do retângulo.”

Iniciei esta leitura com expectativas baixas e um pouco a medo, já que a modalidade do conto não costuma cativar-me e que o estilo de Ana Margarida de Carvalho nem sempre consegue aproximar-se do que considero uma experiência de leitura agradável. No entanto, fui agradavelmente surpreendida com esta coletânea de contos que me manteve interessada do início ao fim, cada um com uma trama que a escrita intrincada da autora apenas enriquecia.

Os meus contos preferidos foram “Do inferno ninguém regressa”, sobre um idoso num lar para refugiados do Médio Oriente, pela forma como conjuga o tratamento da terceira idade e o de pessoas traumatizadas, e “A última ceia”, pelo conceito já por si curioso de uma família em que todos são gémeos, à exceção do que partilhou o útero com um irmão que morreu à nascença. Fascinou-me, ainda, a atualidade do “Eremitério de boas intenções”, sobre o conflito entre duas famílias motivado pela cisão ancestral entre palestinianos e israelitas, prova de que a literatura é uma cápsula de intemporalidade.

Assim, “Pequenos Delírios Domésticos” conquistou meritoriamente um lugar no meu pódio de obras de Ana Margarida de Carvalho, juntamente com “Que Importa A Fúria do Mar” e “Não Se Pode Morar Nos Olhos De Um Gato”.

10
Mai22

“O Clube dos Suicidas” – Robert Louis Stevenson

Helena

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Estes três contos interrelacionados apresentam-nos a perturbadora aventura de um príncipe libertino e do seu cúmplice, na Londres do século XIX. Numa das noites em que saiu às escondidas do seu palácio para uma noite de diversão com o Coronel Geraldine, o príncipe Florizel encontra num bar uma figura bizarra que o levará ao serão mais estranho da sua vida. Um rapaz vendia pastéis de nata, afirmando ser a última vez que o faria, não por ter sido despedido, mas porque pretendia acabar com a própria vida nessa mesma noite. Face à surpresa dos homens do palácio, o rapaz revela-lhes a sociedade que lhe possibilitará o cumprimento da sua vontade, sem que ele tenha de se responsabilizar pelo fim da sua existência: o clube dos suicidas.

Este clube consistia numa reunião de homens desesperados por acabar com a sua vida, que se sentavam à volta de uma grande mesa enquanto o presidente do clube distribuía cartas. Quem ficasse com o ás de espadas morreria, e o assassino seria aquele que recebesse o ás de paus. Fascinado e horrorizado simultaneamente por este conceito, o príncipe Florizel convence o seu amigo a juntar-se com ele ao clube dos suicidas.

Até que ponto poderá o príncipe confiar na sua sorte? E conseguirá o presidente do clube dos suicidas manter-se imune às consequências da liderança de uma organização com fins tão terríveis?

Encontrei este livro por acaso, enquanto procurava outro livro de Stevenson, e a sua sinopse cativou-me de imediato. É tão original que, assim que encontrei o livro, comecei a lê-lo. Como é curto e pouco denso, demorei pouco tempo a chegar ao fim da história. No entanto, muito acontece ao longo deste pequeno número de páginas, e tive de voltar ao início para conseguir ligar alguns fios do mistério.

Esta edição da Bookcover Editora não é, de longe, tão boa como a de Madame Bovary. Apesar de ser muito mais curto, este livro apresenta mais gralhas e menos rigor na sua tradução. Mesmo assim, não foi impeditivo para a compreensão e fruição do texto.

Apesar de não ser um livro fascinante, O clube dos suicidas prendeu-me do início ao fim pela originalidade do seu enredo e pelos sucessivos plot-twists da ação.  Assim sendo, recomendo este tesourinho a todos os que precisarem de uma leitura curta para escapar ao “rame-rame” do quotidiano.

31
Dez20

"A Cidade de Vapor – Todos os contos" – Carlos Ruiz Zafón

Helena

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Esta compilação de onze contos da autoria de Carlos Ruiz Zafón constitui simultaneamente uma homenagem ao autor da saga do Cemitério dos Livros Esquecidos e um agradecimento aos seus leitores.

Cada conto remete para o universo literário da tetralogia, seja a nível das personagens e do espaço, seja a nível do ambiente que paira sobre a história.

Tanto Blanca e o Adeus como Sem Nome complementam a história do amaldiçoado escritor ficcional David Martín, o que não implica que façam realmente parte dela: o autor joga com a loucura da personagem para criar “memórias não acontecidas” e refugia-se nela ao introduzir um episódio que, caso contrário, contradiria o passado já conhecido da personagem.

Rosa de Fogo e Príncipe do Parnaso providenciam ao leitor dados acerca do icónico Cemitério dos Livros Esquecidos, como a sua origem arquitetónica e a sua misteriosa localização. Zafón entrelaça factos e personagens verídicas com o enredo da ficção, e o maravilhoso mundo da saga parece transferir-se para a realidade.

Alicia ao Alvorecer, Mulher de Vapor e Lenda de Natal são contos curtos e nebulosos, rodeados de mistério, magia e misticismo.

Uma Rapariga de Barcelona, Homens de Cinzento e Gaudí em Manhattan são as histórias que mais se afastam do coração da saga original. Ainda assim, os traços são os mesmos, e reconhecemos a tinta de Zafón na insanidade do luto no primeiro, na perícia assassina no segundo e na sinistra figura no arranha-céus nova-iorquino no terceiro.

“- Quero conhecer o sentido da vida, quero saber onde encontrar o melhor gelado de chocolate do mundo e quero apaixonar-me – declarei.

- A resposta aos teus dois primeiros desejos é a mesma.”

Com 2020 a chegar ao fim, pensei que não havia melhor maneira de encerrar o historial de leituras deste ano do que com um regresso a casa – pois é essa a sensação que me invade sempre que volto às páginas de Zafón. Mudam-se os títulos, mudam-se os enredos, mas não se alteram as descrições magníficas, os céus escarlates, os anjos sinistros, os espectros, as damas de branco e as maldições que não olham a estatutos sociais para assolarem gerações. É impossível não detetar nestas páginas o gosto do autor pelo sinistro, pelo macabro, pelas personagens condenadas à desgraça, pelos incêndios, pela neblina e, claro, por Barcelona. De facto, apesar de nunca lá ter estado, tenho a sensação de já conhecer os meandros dos seus bairros mais recônditos, de já ter caminhado pelas Ramblas e convivido com os barceloneses (mesmo com alguns de alma perdida ou razão toldada).

Apesar de não ser o melhor livro de Zafón, é mais um testemunho do seu poder de envolver o leitor nas tramas que constrói e entrelaça com mestria. Para além disso, concretiza a narrativa com uma linguagem simultaneamente tão bela e intensa que parece irradiar as emoções presas nas palavras, a agonia, a raiva, o desespero, tudo o que torna os seus livros objetos com vida própria.

Este livro torna, de certa forma, a morte de Zafón um pouco mais fácil de suportar, enquanto pequeno espólio de trabalhos com que tencionava presentear os seus leitores fiéis. Se gostaram de ler a saga do Cemitério dos Livros Esquecidos, não deixem de visitar este livro – de tempos a tempos, para que a magia de cada história não se perca na repetibilidade do discurso.

“A queda dos justos vem sempre da mão daqueles que mais lhes devem.”

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