Ele era um órfão sem nome plantado à sorte num campo de trigo. Pelo menos, não tinha memória de que alguma vez tivesse sido de outra maneira.
Todos os seus dias amanheciam numa bruma com sabor a solidão e abandono, filtrada pelas frestas no telhado remendado à pressa da sua cabana num canto da praça. Não se lembrava de como tinha ali chegado, nem fazia ideia de quem eram os seus pais. Não que isso tivesse qualquer importância – as pessoas da vila tinham-no adotado como se fosse filho da terra, e recebia da caridade popular tudo aquilo de que precisava para sobreviver. A princípio, pensou que isso se devia à profunda misericórdia dos corações devotos dos camponeses. À medida que foi crescendo, porém, apercebeu-se de que não era a piedade que movia a caridade dos simples – era o medo. Todos receavam o rapaz cuspido pela fúria divina e os seus olhos bicolores, todos escrutinavam pelo canto do olho a palidez doentia da sua tez na torreira da seara, todos evitavam trocar palavras com a voz sumida daquela pilha de pele e osso coberta de farrapos.
Todos, menos Laura. Laura era a mais jovem das ceifeiras, e também a mais bonita. A sua compleição delgada e discreta destacava-se de entre os corpos atarracados das mulheres nos trigais. Nos dias mais tórridos dos meses mais quentes, a voz de Laura erguia-se acima de todas as outras. Quando Laura cantava, algo dentro do órfão a acompanhava numa sinfonia.
Certo dia, quando se dedicava afincadamente à ceifa com a sua navalha, ele ouviu atrás de si o som de tecido a roçar as espigas.
- Que estás a fazer?
O jovem estremeceu. Conseguia contar pelos dedos das mãos as vezes em que alguém lhe tinha dirigido a palavra.
- Estou a… a cortar as…
A sua voz desvaneceu-se quando, voltando-se lentamente, deparou com Laura e os seus olhos de tempestade. Segurou a navalha com as duas mãos, suplicando ao Deus em que não cria para que a rapariga não reparasse no tremor que as dominara. Qualquer outra pessoa lhe teria lançado uma interjeição de desprezo e recuado à pressa, mas Laura aproximou-se e pegou-lhe nas mãos. O coração do rapaz batia com força tal que ele se afligiu, receando que Laura o pudesse ouvir.
- Não podes segar com uma faca assim! Não tens uma foice?
O órfão encolheu os ombros. A jovem sorriu e voltou-se, mergulhando na seara. Os tremores ainda não o tinham abandonado quando ela reapareceu e lhe estendeu uma foice de lâmina lisa.
- Experimenta com esta. Não é melhor?
Ele acenou que sim. Ela acocorou-se junto dele e fitou-o com curiosidade. Os olhos de Laura eram da cor da trovoada, mas brilhavam como o sol de agosto.
- Como te chamas?
O órfão ficou calado. Mesmo que soubesse a resposta, o nó que se lhe alojara na garganta não lhe teria permitido replicar. A rapariga esboçou um sorriso doce.
- Eu sou a Laura. Costumo ver-te por aí, sozinho... Posso ser tua amiga, se quiseres.
O rapaz voltou a acenar. A jovem julgou captar a sombra de um rubor nas suas faces cavadas. Satisfeita, levantou-se e voltou a embrenhar-se no mar de espigas.
Laura era a sua única companhia, e suprimia a necessidade de qualquer outra. Todas as manhãs o esperava na praça, encostada à fonte, e até ali o acompanhava em cada entardecer. Laura compreendia a natureza tímida do órfão e depressa aprendeu a modelar palavras a partir da sua mudez. Quando o trabalho acabava, sentava-se na terra e ensinava-o a entrançar as flores das ervas daninhas. Entre silêncios e coroas de flores, viam as estações passar.
Passeava o jovem pelas ruas sombrias, numa noite de insónia, quando avistou a figura de Laura, acenando-lhe do alpendre da sua casa de paredes brancas como o luar, incitando-o a aproximar-se. Hesitante, juntou-se a ela. Envolta num xaile de algodão escuro, com o cabelo solto desenhando arabescos de negrume sobre o seu rosto, Laura parecia fundir-se no manto da noite que os rodeava. Com um ligeiro movimento de cabeça, a rapariga indicou-lhe o céu, e ele deixou-se envolver pela imensidão do breu estrelado.
- É lindo, não é? Olha para aquelas estrelas. Parece que formam o desenho de uma panela. Esta constelação chama-se Ursa Maior. E aquelas três ali, consegues vê-las? São o cinto da constelação de Órion. Ah, olha, é Saturno!
Um ponto de luz de um brilho extraordinário surgiu no campo de visão do órfão. Subitamente, sentiu o seu rosto contrair-se, como se algo lhe puxasse os cantos dos lábios. Sorria, pela primeira vez.
Laura observava-o, uma centelha alegre bailando-lhe no olhar de cinza.
- Gostas dele? É o meu astro preferido do céu inteiro – e, dizendo isto, abarcava com os braços esguios toda a envergadura da esfera celeste. Ele voltou a acenar com a cabeça, concentrado agora nos contornos de prata que a Lua imprimia nas mãos de Laura, abertas para o Espaço. – Tenho uma ideia: vou chamar-te Saturno. Pode ser?
Os seus olhares encontraram-se, por fim, e ela pôde ver como o do rapaz cintilava em reflexos multicoloridos enquanto um murmúrio rouco emergia de entre os seus lábios:
- Sim.
A este encontro seguiu-se outro, depois outro, e outro ainda. Tornou-se um ritual: os jovens encontravam-se a coberto da teia dos astros e projetavam os seus sonhos no firmamento. Saturno gostava de observar os cristais de luar que coroavam os cabelos de Laura, de a ouvir falar sobre as figuras mágicas nas estrelas e que ela encostasse a cabeça no seu ombro como quem regressa a casa. Se ele pudesse decidir o Destino, ficariam assim para toda a eternidade. Mas não podia, e nada do que é bom dura para sempre.
Foi num fim de tarde de julho. O horizonte sangrava em raios de sol poente e nem uma leve brisa corria para aplacar o calor e as emoções. Saturno parou em frente da porta da casa de Laura, de promessas nos bolsos e coração aberto. Preparava-se para bater quando lhe chegou aos ouvidos uma voz que o fez hesitar: uma voz masculina, áspera, desconhecida, cuspida pela janela aberta.
- Partamos já hoje. Está tudo preparado.
- Assim seja! – respondia Laura, numa excitação quase histérica que Saturno nunca lhe ouvira.
Atingiu-o uma onda de angústia e de questões sem resposta. Quem era aquele homem? De onde vinha? E para onde pretendia levar Laura? O choque pregara-o ao chão. Não se apercebeu dos passos assertivos que se aproximavam da porta. A mãe de Laura emergiu do vão sombrio, uma mulher rechonchuda, de olhos radiosos e cabelos de alcatrão, que lhe ofereceu um sorriso rasgado.
- Olá, querido. Precisas de alguma coisa?
De entre o emaranhado de emoções que lhe toldava o raciocínio, Saturno não conseguiu formular mais do que um balbuciar incoerente que se desvaneceu assim que avistou Laura no reflexo do espelho do aparador. A sua silhueta fina, firme, imaculada, rodopiando nos braços de um homem portentoso e desconjuntado, grotesco. O seu riso de rouxinol deslizava pelo corredor estreito, enterrando-se como punhais nos ouvidos de Saturno. Tudo fora nada, as carícias nas mãos ingénuas, os sorrisos de viés em noites de lua cheia, os ocasos de segredos partilhados no alpendre… Nada. A mãe de Laura continuava a fitá-lo, solícita, da soleira da porta. Saturno voltou-se abruptamente e começou a correr, esmagando sob os seus pés as pedras da rua. O seu coração descia nas trevas como o sol no horizonte.
Nunca mais voltou a vê-la, a ela e aos seus olhos de céu tempestuoso, a ela e aos seus cabelos de azeviche, a ela e à sua pele áspera, tisnada pelo sol. Levou a cor dos dias, o doce dos frutos, o perfume das flores. Restavam pobres analfabetos nas searas, de olhos postos no trigo e cantilenas na ponta da língua. Quase conseguia ver os seus dedos nodosos aflorar as espigas, quase sentia o roçagar da sua saia junto a si… quase. Não apareceu na desfolhada, nem regressou nas Labaredas.
Nunca mais voltou a vê-la, a ela e à sua garganta fremente, a ela e à sua cintura discreta, a ela e aos seus joelhos esfolados. Deixou a vila, levando consigo apenas a foice de Laura e os farrapos negros que tinha no corpo. Começou a procurá-la nos suspiros. Nunca fora bom com conversas. Podia ser que alguém, sentindo a vida escapar-se-lhe por entre os dedos, tivesse por último impulso chamar por Laura, ou deixasse escapar um fiapo de informação sobre o seu paradeiro. Cada noite, um corredor diferente, mas sempre o mesmo: havia sempre uma porta que ia dar a um quarto em que uma alma desprevenida jazia no catre, exalando sonhos. Junto à cabeceira, esguio e mudo como um espectro, Saturno sugava-lhes o sussurro derradeiro, esperando encontrá-la nos laivos finais da lucidez alheia. Em vão. De tantas expirações aspiradas, deixou de envelhecer.
Nunca mais voltou a vê-la, a ela e ao seu andar de quem flutua, a ela e aos seus modos rudes, a ela e à sua postura desenvolta de desafio. Procurava agora na noite e no dia, por entre gritos, gemidos e súplicas, esgares de incredulidade e surpresa dos que não o tinham visto aproximar-se. Nem um sinal da camponesa com pele trigosa e cabelos de noite, nem sequer vestígios da voz pecaminosa que lha roubara para sempre.
Ainda hoje a procura à beira-rio, no bulício das estradas, nos trilhos nevados, entre os lençóis.
Talvez a Morte seja um rapaz com o coração partido.
(Conto vencedor do concurso escolar Meu Belo Douro)