"Princípio de Karenina" – Afonso Cruz
Esta história, que mais não é do que uma carta do narrador à sua filha, que nunca conheceu, começa por nos apresentar um menino que, “coxo da cabeça”, vive dominado pelo medo do estrangeiro. Esta espécie de fobia foi-lhe impingida em forma de ética pelo pai, para quem tudo o que sugeria a distância, a mudança ou a diferença equivalia a barbaridade e era indesejável, execrável.
Já crescido e casado, o narrador vai-se tornando consciente de que é praticamente impossível escapar ao estrangeiro, que se infiltra nas nossas vidas em forma de alimentos, de objetos, de hábitos e, até, de sombras. Eis quando ele se depara com o derradeiro obstáculo à concretização da vida pacata e imune a tudo quanto é externo que decalcava do pai: a chegada da criada nova, vinda da Cochinchina, o expoente máximo do estrangeiro e da perturbação. “Quando olho para ela, vejo uma janela aberta.” O foco de luminosidade encarnado pela rapariga abala profundamente o narrador e põe em causa tudo aquilo em que, até então, acreditara. Será, no entanto, suficiente para suplantar toda a apatia e tendência à reclusão inscritas nos seus alicerces desde a sua infância?
“todos os lugares são centros e todos os instantes são começos.”
Bem, que romance! Tão curto, tão simples e singelo, mas tão poderoso! Através de uma criança criada no seio do medo, da desconfiança e da limitação, Afonso Cruz sublinha (põe a negrito, em itálico, em maiúsculas!) o quão importante é ser dono de uma mente aberta, sair da zona de conforto, experimentar coisas novas e gastar a “distância com que nascemos” em viagens, conhecimento e conexões emocionais.
Velados pelas palavras bonitas com que o autor nos embala, encontramos temas duros e bicudos como a morte, a discriminação e os fracassos no amor e na vida. Parte da magia de Afonso Cruz está na capacidade de escrever frases graciosas que, simultaneamente, doem. É com esta dor bonita como companhia que acompanhamos a vida do narrador, a carência de empatia que lhe é transversal e as consequências que isso lhe traz e aos que lhe são próximos. Emergimos desta leitura com uma urgência de valorizar tudo o que nos rodeia, todos os que fazem parte da nossa vida e estão perto de nós, e todos os que fazem parte dela sem que nós o saibamos, porque estamos todos ligados por fios invisíveis, como num piano ou numa bainha de uma saia – no final de contas, os arco-íris são “as costuras do céu”.
“Por mais distantes que estejam acontecimentos ou objetos ou seres vivos, estão unidos pelos arcos invisíveis das costuras do Universo.”
“Princípio de Karenina”, o título deste livro, remete literalmente para a primeira frase de “Anna Karenina”, de Tolstoi: “Todas as famílias felizes se parecem, todas as infelizes são infelizes à sua maneira”. Depois de reconhecer que, de facto, na maioria dos casos, existem infinitos lugares para estar errado, mas apenas um para estar certo, o narrador aponta a felicidade como uma exceção a esta regra. “Não há condições certas para ser feliz.” Por essa razão, não existe uma fórmula para a felicidade, mas em tudo o que acontece podemos encontrá-la, inclusiva e especialmente nos momentos que nos parecem mais difíceis e imperfeitos. “É impossível ser feliz sem dor” e “Sem desequilíbrio, nada se move”. É escusado viver obcecado com a perfeição, com o desejo de ser um “quadrado”, quando são os círculos que permitem o movimento e a evolução. No fundo, “Os seres vivos são desequilibristas”, vivos na sua instabilidade e assimetria, e graças a elas.