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H-orizontes

H-orizontes

17
Dez23

“Pequenos Delírios Domésticos” – Ana Margarida de Carvalho

Helena

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Esta compilação de contos da autoria de Ana Margarida de Carvalho é um conjunto de histórias sobre a (não) pertença, o conhecimento de nós próprios e do outro, a partida e o regresso, o trauma e a redenção. Treze contos e dois poemas levam-nos a universos mais ou menos verosímeis, povoados por personagens, na sua maioria, peculiares e misteriosas.

O enredo de cada história é singular, desde o regresso a casa de um membro de uma organização terrorista para ajudar um amigo de longa data a pôr em prática as suas intenções de suicídio, a uma viagem a uma ilha sem sol para a escrita do epitáfio de uma conhecida sua em estado terminal. As personagens evadem-se ou regressam a um tempo ou a um espaço com uma significação subjetiva pesada, rica, nostálgica, destrutiva.

“estes Europeus nunca hão de compreender que o mais importante nunca está no centro das fotos, mas nas periferias, ou até mesmo fora do retângulo.”

Iniciei esta leitura com expectativas baixas e um pouco a medo, já que a modalidade do conto não costuma cativar-me e que o estilo de Ana Margarida de Carvalho nem sempre consegue aproximar-se do que considero uma experiência de leitura agradável. No entanto, fui agradavelmente surpreendida com esta coletânea de contos que me manteve interessada do início ao fim, cada um com uma trama que a escrita intrincada da autora apenas enriquecia.

Os meus contos preferidos foram “Do inferno ninguém regressa”, sobre um idoso num lar para refugiados do Médio Oriente, pela forma como conjuga o tratamento da terceira idade e o de pessoas traumatizadas, e “A última ceia”, pelo conceito já por si curioso de uma família em que todos são gémeos, à exceção do que partilhou o útero com um irmão que morreu à nascença. Fascinou-me, ainda, a atualidade do “Eremitério de boas intenções”, sobre o conflito entre duas famílias motivado pela cisão ancestral entre palestinianos e israelitas, prova de que a literatura é uma cápsula de intemporalidade.

Assim, “Pequenos Delírios Domésticos” conquistou meritoriamente um lugar no meu pódio de obras de Ana Margarida de Carvalho, juntamente com “Que Importa A Fúria do Mar” e “Não Se Pode Morar Nos Olhos De Um Gato”.

18
Mar23

“Não se pode morar nos olhos de um gato” – Ana Margarida de Carvalho

Helena

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Em finais do século XIX, já depois da abolição da escravatura, um navio que traficava escravos naufraga na sua travessia entre a Baía e o Rio de Janeiro. Após uma violenta disputa em pleno mar pelo mísero espaço disponível na jangada salva-vidas, sete pessoas dão à costa, numa praia rodeada por falésias altas, sem vestígios de presença humana. Apesar do desânimo geral, rapidamente estabelecem regras básicas e uma hierarquia de trabalho: o capataz regula o consumo na única fonte de água potável da praia, um olho de água que a maré tapa e descobre, enquanto os outros recolhem moluscos para comer.

Para surpresa de todos, mais um sobrevivente alcança a praia deserta: um dos escravos do porão do navio, maltratado e recebido com o horror e o ódio dos restantes náufragos. Todavia, as circunstâncias não dão margem para conflitos, e todos se juntam no único propósito de seres humanos numa situação limite: a sobrevivência.

Do trágico presente numa praia brasileira, viaja-se pelo espaço e pelo tempo para se dar a conhecer o passado dos náufragos infelizes: um jovem que vive desde sempre sob o peso da culpa; um clérigo cujo nascimento milagroso não chegou para melhorar a situação familiar precária; um criado que ainda sente nas narinas o cheiro do Mondego e esconde um grande segredo sob o seu otimismo; uma mulher criada por engordadores de escravos, a quem apenas restava tentar imitar os requintes de uma Europa que nunca conheceu; um negro que viveu a crueldade da exploração, que viu morrer os amigos e esvair-se a sua dignidade; uma menina a quem o destino foi esfarrapado por um pai de afetos abusivos; e um capataz cujo olhar seduzia por enquanto qualquer mulher. Como conseguirão sobreviver pessoas tão distintas, cada um consumido pelo seu próprio desespero?

“Não são os deuses que dormem, nós é que os sonhamos.”

O segundo livro de Ana Margarida de Carvalho, publicado em 2016 pela Teorema, conjuga com mestria a representação da violência na época histórica retratada e do sofrimento intemporal inerente à condição humana. Aos horrores da escravatura e do tráfico humano somam-se questões de identidade, de culpa, de problemas de família e do grande desespero que acompanha o instinto de sobrevivência.

Apesar de, aparentemente, a principal linha narrativa do romance ser essencialmente estática, o fator mais impactante desta história é o conteúdo das analepses que revelam o passado de cada uma das personagens, o maior ou menor fardo que cada um deles carrega na sua consciência. Ainda que todos provenham de origens drasticamente distintas, é numa situação-limite que as suas diferenças se esbatem e é possível que se percecionem como seres humanos dominados pela necessidade de sobreviver. É essa a mensagem mais poderosa do romance: por mais diferentes, falíveis e imperfeitos que sejamos, une-nos a nossa condição humana e o nosso destino inexorável.

Esta é mais uma leitura desafiante, principalmente devido ao estilo característico de Ana Margarida de Carvalho, que defende que não se deve simplificar algo que pode ser apresentado de forma complexa, e que é nitidamente influenciado por Saramago e António Lobo Antunes.

23
Nov22

“O gesto que fazemos para proteger a cabeça” – Ana Margarida de Carvalho

Helena

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O gesto que fazemos para proteger a cabeça é uma história de vingança, de abandono e de condenação, cuja ação se concentra entre dois entardeceres.

A ação inicia-se com a jornada de regresso da personagem de Simão Neto à aldeia miserável de Nadepiori, um recanto agreste e ventoso do Alentejo. Enquanto Simão tenta regressar à sua aldeia sem perder a mercadoria de azeitonas recém-apanhadas que transporta, é atacado por uma matilha de cães selvagens a que sobrevive graças à intervenção de um estrangeiro misterioso que se faz acompanhar por um arpão – um homem do mar regressado à terra. Constantino, o sétimo filho de sete irmãos, regressava à sua terra natal depois de sete anos de exílio, determinado a aplicar justiça pelas próprias mãos.

Através de uma narrativa sinuosa, Ana Margarida de Carvalho cede-nos o lugar do observador da vida no interior do Alentejo em pleno Estado Novo, inserindo-nos numa teia de histórias de vida cujos desfechos não foram aqueles que eram esperados, e cuja base é a luta pela vida numa aldeia em que se vive à força, à mercê da liderança impiedosa do povo vizinho.

“porque só um humano entende tanta desumanidade”

O gesto que fazemos para proteger a cabeça é um livro complexo, com seis capítulos e seis pontos finais, sugerindo uma autêntica caminhada, a infinidade laboriosa de um carreiro de formigas, “encarrilhadas umas nas outras, sem parar, como as linhas de um livro”.

Não gostei tanto deste romance como do Que importa a fúria do mar, da mesma autora, uma vez que a sua ação é menos relevante para o seu valor do que a forma como a autora escolhe construir a narrativa – um puzzle de informações, por vezes quase veladas, que me fizeram precisar de o ler duas vezes.

Apesar disso, despertou-me um interesse particular a forma como a conversa entre as mulheres junto ao antigo depósito de água da aldeia revela que é nelas que reside a liderança das vidas em Nadepiori. São elas que estão por trás das decisões e acima das tramas da pobreza, e elas que mantêm as famílias vivas neste fim de mundo – um papel fundamental para a ordem universal das coisas, muito próxima da noção de Saramago de que “esta conversa é que segura o mundo na sua órbita, não fosse falarem as mulheres umas com as outras, já os homens teriam perdido o sentido da casa e do planeta” (SARAMAGO, José - Memorial do Convento. Lisboa: Editorial Caminho, 1982).

Chegados ao final do livro, podemos concluir que “o gesto que fazemos para proteger a cabeça” é, na verdade, uma reação involuntária face ao perigo, um reconhecimento instintivo da vulnerabilidade do Homem, preso num corpo sem saída e condenado à tirania das forças que o ultrapassam.

“a veces hay que caer con el fin de saber dónde estamos”

“uma viagem é sempre deixar para trás”

09
Nov22

“Que Importa a Fúria do Mar” – Ana Margarida de Carvalho

Helena

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Que Importa a Fúria do Mar, publicado pela primeira vez em 2013, foi obra finalista do Prémio LeYa em 2012 e venceu, por unanimidade, o Grande Prémio de Romance e Novela APE-DGLAB de 2013.

Eugénia, jornalista ambiciosa permanentemente remetida para os programas a que ninguém presta atenção, depara-se com mais um trabalho que não a fascina nem atrai: entrevistar um idoso sobrevivente do campo de concentração do Tarrafal. “Veio parar a túmulo bafiento. A um viveiro de ácaros, camadas geológicas de ácaros, moscas e cogumelos das infiltrações.” Aquilo que Eugénia não espera é que Joaquim da Cruz, um homem apanhado no lugar errado à hora errada, na revolta comunista da Marinha Grande de janeiro de 1934, desperte nela um fascínio que a fará regressar, uma e outra vez, à casa de Joaquim e às suas palavras esparsas e vagarosas.

Assim, de entre a repressão de um regime ditatorial, a jornalista vê surgir uma história de amor entre um homem condenado e uma mulher que lhe prometeu uma espera eterna. “O Tarrafal? Mas isso é uma história de amor…”

“Querida irmã, há tantas coisas bonitas que ainda não há.”

Neste romance, Ana Margarida de Carvalho dá voz às vítimas do regime salazarista que a repressão política e intelectual enviou para os horrores do campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. No entanto, Que Importa a Fúria do Mar ultrapassa os tormentos dos injustamente condenados à violência e à exploração, abrangendo também as consequências das infâncias atribuladas, o poder das paixões e o impacto que pequenos acasos podem ter numa vida inteira.

As páginas deste romance transbordam de referências intertextuais, como a Fernando Pessoa, aos seus heterónimos e a Bob Dylan. Num fluxo de consciência entretecido com a narrativa, formas de expressão populares e eruditas formam uma teia rica de linguagem e estilo que fazem deste livro uma viagem pelas heranças cultural e literária portuguesas.

Esta narrativa contraria o sentido comum do mar para os artistas e os poetas: um meio de evasão e libertação, cheio de oportunidades e de vida. Que Importa a Fúria do Mar apresenta o mar como algo que reprime e aprisiona os homens. Uma sensação de claustrofobia atravessa a obra através do paralelo entre o mar que impossibilita a fuga dos prisioneiros no Tarrafal e o mar que atemoriza a infância da narradora, encerrada no quarto das traseiras da casa dos tios, onde a mãe a deixara antes de prosseguir a sua vida.

Que Importa a Fúria do Mar é um livro para ler e reler, um exemplo de como a literatura é o resultado da conjugação de influências antigas e técnicas narrativas novas, desafiando os leitores a voltar ao passado, ainda que com os pés bem assentes no presente.

“A mim, o não-sentido da poesia basta-me.”

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