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H-orizontes

H-orizontes

12
Ago22

“A mãe de Frankenstein” – Almudena Grandes

Helena

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Em 1954, Germán Velásquez Martín regressa a Madrid depois do exílio na Suíça a que a vitória de Franco o obrigara. Psiquiatra de renome nas clínicas suíças, Germán troca a estabilidade de um país neutro pela rudeza da sua terra natal, para onde pretendia levar a descoberta que o celebrizara no estrangeiro: a cloropromazina, uma substância que se provara eficaz na cura de sintomas graves de esquizofrenia. O que Gérman não sabe é que, em Ciempozuelos, no manicómio feminino onde aceitara trabalhar, encontrará uma mulher que não esquecera desde a sua infância: Aurora Rodriguez Carballeira, a célebre eugenista que assassinara a própria filha por se considerar no direito de destruir a obra imperfeita que ela própria criara.

A descoberta inesperada da mulher cuja perturbação psíquica o fascinara tanto que o levara a escolher uma carreira na psiquiatria não só lhe permite recuperar e revitalizar o processo clínico de Aurora, que tinha caído no esquecimento dos médicos, mas também o leva a conhecer pessoas que influenciarão profundamente o seu regresso a Madrid. É o caso de Maria Castéjon, a filha do antigo jardineiro do manicómio que aproveitava o seu pouco tempo livre para ler em voz alta para Aurora, que se torna a sua melhor amiga.

Assim, cada uma à sua maneira, todas as personagens vão revelando a Germán aquilo que, até aqui, ele se recusava a entender: a Espanha não é a Suíça, e a arbitrariedade autoritária do estado nacional-católico destrói tudo aquilo em que toca.

“Las ilusiones son más venenosas que los pesticidas, pero cuando se comparten, mejoran mucho.”

Este foi o último livro publicado por Almudena Grandes antes da sua morte, em 2021. O quinto volume da série Episódios de uma Guerra Interminável volta a levar-nos aos tempos atribulados do pós-guerra civil espanhola e aos meandros da vida quotidiana daqueles a quem o franquismo virou o mundo do avesso. Desta vez, Almudena escolhe para palco da narrativa o manicómio feminino de Ciempozuelos, nos arredores de Madrid. Apesar de ser um edifício isolado, povoado por pessoas repudiadas e esquecidas pelo resto do mundo, o manicómio apresenta-se como uma miniatura da sociedade espanhola sob o controlo de Franco. Para além de ter por base uma hierarquia rígida que determinava os aposentos, o tratamento e as refeições das pacientes, o manicómio também estava sujeito aos caprichos e jogos de poder dos responsáveis do Estado.

Noutra face deste retrato da opressão encontramos as personagens femininas, todas elas figuras fortes a quem o estado nacional-católico impingira uma vida que não deixava espaço para o livre-arbítrio.

A genialidade deste livro está na forma como Almudena tece um enredo que se desdobra em muitos enredos paralelos. Esta não é apenas a história da mulher louca que matou a filha por achar que não era perfeita o suficiente para salvar a Humanidade, e que depois tentou dar vida a bonecos de pano a fim de poder cumprir a mesma função – qual doutor Frankenstein com a sua criação. Esta também é a história de uma menina a quem os avós nunca contaram que os pais faleceram porque o amor que os unia nada interessava aos assassinos em massa comandados por Franco. A história de uma família alemã judia que se viu obrigada a fugir para a Suíça para evitar o destino que condenou tantos como eles. A história de um psiquiatra que nunca teve jeito para mulheres e que descobre no meio da escuridão da ditadura uma luz de sinceridade e compaixão. As linhas entrelaçadas de uma teia de histórias narradas a três vozes dão forma a uma imagem única e inolvidável das vidas perdidas e renovadas da década de 1950.

O único defeito deste livro é não se prolongar infinitamente para que não tenhamos de nos despedir das personagens cujas vidas partilhamos durante esta viagem ao século passado.

“todos vivimos en un cementerio, pero algunos estamos vivos todavía.”

“un fracaso compartido une más que una victoria común.”

11
Fev21

"Os Doentes do Doutor García" - Almudena Grandes

Helena

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Guillermo García Medina trabalha no meio do caos de um hospital de Madrid em plena Guerra Civil Espanhola. Neto de um republicano e vizinho de falangistas, Guillermo abstém-se de manifestações públicas de quaisquer partidarismos e divide a sua vida entre duas esferas: o seu trabalho no hospital enquanto médico e responsável pelas transfusões de sangue, e a relação peculiar que mantém com Amparo Priego, uma amiga falangista de longa data que vive com ele desde a morte do seu avô, em 1936.

Certo dia, Guillermo teve de fazer uma transfusão sanguínea de urgência, sem imaginar que essa intervenção mudaria a sua vida para sempre. Manuel Arroyo Benítez, o seu paciente, era na verdade um infiltrado de Juan Negrín nas fações republicanas madrilenas, responsável por averiguar se se avizinharia uma revolta na capital republicana semelhante àquela que ocorrera em Barcelona, uns meses antes. Assim, Guillermo vê-se envolvido numa rede de espionagem e dissimulação que se adensa com o fim da Segunda Guerra Mundial.

Sem descurar a autenticidade da vida de todos aqueles cujas esperanças foram defraudadas vezes sem conta, Almudena Grandes guia-nos através dos meandros da diplomacia e das organizações clandestinas que contribuíram para moldar o mundo da forma como o conhecemos na atualidade.

O terceiro livro da série Episódios de uma guerra interminável encerra um universo demasiado vasto para que possa ser descrito em poucas palavras.

Comecemos pelas personagens. Não precisamos de ler muito mais do que os primeiros capítulos para nos apercebemos de que acabamos de entrar numa rede muito complexa constituída pelas numerosas personagens e pelas relações que estabelecem entre si. Com efeito, todos os intervenientes nesta história se cruzam numa teia de passados, destinos, esquemas clandestinos e falsas identidades de uma forma magistral. O facto de sermos inteirados do passado de cada uma das personagens contribui em grande medida para a relação familiar que acabamos por estabelecer com elas – parece que as conhecemos “há uma vida”, como escreve a autora. Encontramos, inclusive, capítulos dedicados exclusivamente a personagens históricas, narrados no presente histórico. Fruto da profunda investigação da autora, estes capítulos introduzem uma pausa na ação que, a princípio, me deixou perplexa, mas que acabei por valorizar muito. O apêndice final da obra, onde consta uma lista das personagens do romance, é de extrema relevância, pois permite-nos refrescar a memória quanto à identidade de alguma personagem que voltou a surgir depois de muitos capítulos de ausência.

Em segundo lugar, o tempo. Este livro cobre um período muito extenso, desde o início da Guerra Civil Espanhola até à década de 1970, para além das inúmeras analepses a que a autora recorre a título de contextualização. Acompanhamos, assim, quase toda a vida da personagem principal, Guillermo García Medina, e do seu melhor amigo, Manuel Arroyo Benítez – uma experiência única que nos deixa de coração cheio. Apesar de retratar episódios da vida corrente, Almudena Grandes escreve também, e principalmente, sobre eventos que marcaram a história espanhola, europeia e sul-americana no século XX: a Guerra Civil Espanhola e a inércia internacional, a Segunda Guerra Mundial, o seu desfecho e a cumplicidade franquista na fuga dos criminosos nazis, a Guerra Fria e a inação das potências capitalistas face ao franquismo, a instauração de ditaduras militares na América latina com a conivência dos Estados Unidos da América e a morte de Francisco Franco. A fantástica abrangência histórica desta obra não implica, de maneira nenhuma, que a abordagem dos factos seja superficial. Como qualquer boa leitura, esta foi acompanhada por um revigorante processo de aprendizagem, por uma tomada de consciência acerca dos meandros das relações internacionais que outrora ignorava – e que, em certa medida, me chocaram.

Em terceiro lugar, o espaço. Como já referi, a ação engloba acontecimentos de grande envergadura espácio-temporal, estendendo-se desde as frentes de batalha russas e dos campos de concentração nazis na Estónia até Washington D.C. e Buenos Aires. O trabalho de investigação da autora revelou-se, mais uma vez, uma mais-valia para o retrato fidedigno de todos os espaços e daqueles que os povoam. Não pude deixar de estabelecer uma comparação entre Grandes e Zafón no que toca à relação com o espaço: o retrato que Grandes faz de Madrid é pragmático e objetivo, enquanto que Zafón faz de Barcelona uma personagem com vida e das suas ruas o nosso lar. Contudo, reitero que a construção espacial em Os Doentes do Doutor García está muito bem conseguida.

Este não é só um romance sobre guerra. Este não é só um romance sobre espionagem. Este é um romance sobre a esperança e a revolta, sobre a honra e o dever, sobre a brutalidade e a entreajuda, sobre o orgulho e a hipocrisia, sobre o amor e a amizade, passando ainda pela cegueira dos fanatismos e pelo silêncio asfixiante das relações abusivas. Este é um daqueles romances que nos oferece um pedaço de vida e leva com ele um pouco da nossa, e que não nos abandona mesmo depois de termos virado a última página.

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