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H-orizontes

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27
Jun23

“Levantado do Chão” – José Saramago

Helena

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Com uma ação situada no seio do Alentejo, durante a ditadura salazarista, Levantado do Chão acompanha a jornada de quatro gerações de trabalhadores rurais e as suas lutas sucessivas pela conquista de direitos laborais.

Ao longo de 290 páginas, a família Mau-Tempo debate-se com os ciclos de miséria e exploração que parecem inexpugnáveis nos latifúndios alentejanos que assentam, tal como a ditadura em vigor, numa hierarquia rígida e impermeável a considerações de misericórdia em relação aos subordinados. Assim, os Mau-Tempo e os que os rodeiam lutam cada dia pela sobrevivência a mais um ano de escassez e de jornadas de trabalho desumanas. Abafadas as revoltas pela PIDE, pela guarda, pela influência da religião, resultando delas mortos, presos, feridos, o povo não desiste da esperança na madrugada que há de vir e dar a conhecer aos trabalhadores o significado da palavra liberdade.

“e todo o mais deste destino está explicado nas linhas de ir e voltar”

Este é um daqueles livros que terei de reler mais tarde, numa altura, quem sabe, mais propícia à apreciação de todas as suas potencialidades. Esta experiência de primeira leitura não foi muito boa, por uma série de razões.

Em primeiro lugar, fui interrompendo esta leitura com outros livros que precisava de ler para outros trabalhos, e isso afetou bastante a fluidez da narrativa. Como se trata de um romance sobre gerações, é fácil que o leitor se perca entre os nomes e as relações entre as personagens, principalmente se não fizer uma leitura consistente e atenta (como foi o meu caso).

Em segundo lugar, a história não me cativou muito, exceto pelo facto de remontar a um contexto espácio-temporal que me interessa particularmente. Os ciclos repetitivos, apesar de intencionais, pareceram-me demasiado repetitivos, ao ponto de tornar a narrativa aborrecida e previsível.

Para além disso, nenhuma personagem me marcou muito por ser muito diferente das outras. É de realçar o episódio da tortura de António Mau-Tempo enquanto testemunho dos mecanismos de repressão do regime salazarista, mas, ainda assim, o seu propósito de vida era o mesmo que o de todas as outras personagens, e a sua trajetória na narrativa bastante linear.

No entanto, reconheço que esta é uma obra fundamental para o aprofundamento da compreensão da vivência dos trabalhadores agrícolas do período salazarista, e para que se recordem as múltiplas e terríveis armadilhas do fascismo. É, ainda, o romance inaugural do estilo saramaguiano, pautado pela fluidez do discurso intercalado com reparos mais ou menos subjetivos por parte do narrador.

Em suma, este não é um romance célebre pelas suas personagens extraordinárias e reviravoltas na ação, mas pela maneira como captura, como que pelos olhos de muitas pequenas formigas, a forma como a soma do sofrimento das gerações que tentaram “levantar-se do chão” possibilitou que, eventualmente, uma delas pudesse usufruir do poder de trabalhar digna e livremente.

23
Nov22

“O gesto que fazemos para proteger a cabeça” – Ana Margarida de Carvalho

Helena

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O gesto que fazemos para proteger a cabeça é uma história de vingança, de abandono e de condenação, cuja ação se concentra entre dois entardeceres.

A ação inicia-se com a jornada de regresso da personagem de Simão Neto à aldeia miserável de Nadepiori, um recanto agreste e ventoso do Alentejo. Enquanto Simão tenta regressar à sua aldeia sem perder a mercadoria de azeitonas recém-apanhadas que transporta, é atacado por uma matilha de cães selvagens a que sobrevive graças à intervenção de um estrangeiro misterioso que se faz acompanhar por um arpão – um homem do mar regressado à terra. Constantino, o sétimo filho de sete irmãos, regressava à sua terra natal depois de sete anos de exílio, determinado a aplicar justiça pelas próprias mãos.

Através de uma narrativa sinuosa, Ana Margarida de Carvalho cede-nos o lugar do observador da vida no interior do Alentejo em pleno Estado Novo, inserindo-nos numa teia de histórias de vida cujos desfechos não foram aqueles que eram esperados, e cuja base é a luta pela vida numa aldeia em que se vive à força, à mercê da liderança impiedosa do povo vizinho.

“porque só um humano entende tanta desumanidade”

O gesto que fazemos para proteger a cabeça é um livro complexo, com seis capítulos e seis pontos finais, sugerindo uma autêntica caminhada, a infinidade laboriosa de um carreiro de formigas, “encarrilhadas umas nas outras, sem parar, como as linhas de um livro”.

Não gostei tanto deste romance como do Que importa a fúria do mar, da mesma autora, uma vez que a sua ação é menos relevante para o seu valor do que a forma como a autora escolhe construir a narrativa – um puzzle de informações, por vezes quase veladas, que me fizeram precisar de o ler duas vezes.

Apesar disso, despertou-me um interesse particular a forma como a conversa entre as mulheres junto ao antigo depósito de água da aldeia revela que é nelas que reside a liderança das vidas em Nadepiori. São elas que estão por trás das decisões e acima das tramas da pobreza, e elas que mantêm as famílias vivas neste fim de mundo – um papel fundamental para a ordem universal das coisas, muito próxima da noção de Saramago de que “esta conversa é que segura o mundo na sua órbita, não fosse falarem as mulheres umas com as outras, já os homens teriam perdido o sentido da casa e do planeta” (SARAMAGO, José - Memorial do Convento. Lisboa: Editorial Caminho, 1982).

Chegados ao final do livro, podemos concluir que “o gesto que fazemos para proteger a cabeça” é, na verdade, uma reação involuntária face ao perigo, um reconhecimento instintivo da vulnerabilidade do Homem, preso num corpo sem saída e condenado à tirania das forças que o ultrapassam.

“a veces hay que caer con el fin de saber dónde estamos”

“uma viagem é sempre deixar para trás”

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