"Os Despojos do Dia" - Kazuo Ishiguro
Mr Stevens, o velho mordomo de Darlington Hall, um casarão perto de Oxford, parte numa viagem até ao West Country, a fim de se encontrar com Miss Kenton, a antiga governanta da casa. Ao longo do caminho, o pensamento de Stevens regressa ao passado, aos longos anos que dedicou ao serviço de Lord Darlington e a recordações que ele e Miss Kenton têm em comum. É através destas reflexões que nos são dados a conhecer a lealdade desmedida e o caráter perfecionista do mordomo, obcecado com o conceito de “dignidade”, essencial para se ser um bom profissional no seu ramo.
Firme na sua dedicação ao seu senhor, Stevens parece não se aperceber do como os encontros que Darlington organizava na mansão afetariam o futuro do país – também nós, leitores, só no final do romance descobrimos o seu teor…
Mais um mês, mais um Nobel! Lancei-me ao Os Despojos do Dia sem saber o que esperar. Por isso, não é de estranhar que tenha ficado surpreendida com a história com que me deparei – e com o registo em que está escrita.
Stevens, enquanto narrador na primeira pessoa, mantém um discurso reverente, não apenas com as outras personagens, nos momentos de diálogo, como com o leitor, ao longo da narração. A construção frásica impecável e a formalidade do seu discurso encaixam perfeitamente na personagem que ele é, e tornam o livro mais interessante, do ponto de vista social, mas mais aborrecido, no ponto de vista do entretenimento.
A realidade que este romance retrata é-me muito distante, e nunca tinha lido nenhum livro que partisse desta perspetiva para a construção do enredo. Penso que foi essa distância que me separa das personagens, tanto por razões sociais e espácio-temporais como pela relação formal que Stevens parece estabelecer com o leitor, que levou a que não me tenha sentido muito atraída pelo livro.
Contudo, apesar de longas, reconheço que as reflexões de Stevens são de grande interesse em termos de espelho do seu íntimo e de retrato fidedigno de uma fatia da sociedade britânica do século passado. Aliás, todo o livro é uma crónica de costumes notável, com uma representação realista das classes sociais da época através dos pensamentos, das atitudes e das formas de expressão dos intervenientes da ação.
Aquilo que mais admiro neste livro é a inteligência da sua construção. Ishiguro conjuga o desenrolar da viagem e os avanços e recuos das recordações de Stevens de maneira a desvendar a essência da história muito subtil e gradualmente. Assim, apenas no fim do romance nos apercebemos da função desempenhada por Lord Darlington na política externa inglesa e da profundidade dos laços que unem Miss Kenton e o mordomo, apesar de todas as desavenças anteriormente relatadas.
Apesar de a frieza de Stevens ser quase exasperante, o livro chega ao fim com um toque de ironia e uma última reflexão que vale a pena recordar: “Talvez seja, de facto, altura de começar a encarar toda esta questão do gracejo mais entusiasticamente. No fim de contas, se pensarmos bem, comprazermo-nos dela não é uma coisa tão idiota como pode parecer – sobretudo se no gracejar reside a chave para alcançar o calor humano.”