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H-orizontes

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19
Out24

“Crime e Castigo” – Fiódor Dostoiévski

Helena

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Num apartamento acanhado de S. Petersburgo, Raskólnikov, ex-estudante de Direito, vive na pobreza e no desânimo. Depois de um longo período de reflexão, decide-se a levar a cabo um plano que satisfaria, simultaneamente, as suas necessidades económicas e morais: matar a velha a quem ele e outros desgraçados empenhavam os seus bens. Com isto, Raskólnikov poderia não só obter fundos para retomar os seus estudos, mas também contribuir para um bem maior, libertando a sociedade de uma figura vil.

Contudo, e apesar da sua crença profunda na impunidade daqueles que cometem atos comummente condenáveis com uma finalidade nobre em mente, Raskólnikov mergulha numa espiral de paranoia e culpa, assim que foge do apartamento em que assassinara a prestamista e a sua irmã (que aparecera no sítio errado, à hora errada). A notícia do crime espalha-se por Petersburgo, tanto pelos agentes de autoridade como pelo círculo mais próximo de Raskólnikov, e este não consegue controlar o profundo transtorno que lhe causa qualquer referência ao assassinato. Apesar de ninguém o acusar de nada, Raskólnikov vive sob a impressão de que todos sabem aquilo que tenta esconder.

Enquanto este dilema o consome, outros acontecimentos continuam a preencher a vida daqueles que o rodeiam. Dúnia, a sua irmã, prepara-se para casar com Piotr Petróvitch, um homem rico e sem escrúpulos, numa tentativa de resgatar a família da precariedade. Caberá a Raskólnikov manifestar-se contra estas intenções, quando Dúnia e a sua mãe se mudarem para S. Petersburgo. Svidrigáilov, o homem que manchara a reputação de Dúnia ao culpá-la pelas acusações de adultério de que fora vítima, segue-a até Petersburgo após a morte da sua esposa. Num dos seus passeios ébrios, Marmeladov, um homem que arruinou a família com o seu alcoolismo, morre atropelado por uma carruagem. Apesar da sua situação económica, Raskólnikov decide ajudar a família do morto, da qual faz parte Sófia Semiónovna, uma prostituta de fé inabalável que virá a desempenhar um papel fundamental no desenlace deste jogo das escondidas entre Raskólnikov, as autoridades e a sua consciência.

“Sou ser humano precisamente porque erro. Ainda ninguém chegou a uma verdade qualquer sem antes se ter enganado catorze vezes, ou talvez cento e catorze, e isso é um mérito, neste sentido. Mas não, nem sequer sabemos errar por nossa própria cabeça! Diz-me um disparate, mas à tua maneira, aí dou-te um beijo! Um disparate nosso, à nossa maneira, é quase melhor do que uma verdade alheia; no primeiro caso, somos seres humanos, no segundo somos pássaros!”

Contrariamente ao que receava que fosse ser a minha experiência de leitura de Crime e Castigo, fui sendo embalada ao longo de todo o romance, mesmo com as alterações substanciais do ritmo da narrativa. Devorei o início do livro em pouco tempo – a descrição do assassinato perpetrado por Raskólnikov foi um isco eficaz para o meu interesse. Daí em diante, fui de mão dada com as personagens, desejosa de saber o desfecho da encruzilhada moral que orbitavam. Talvez por influência do final ficcionado que Afonso Cruz sugere para este romance no seu Os livros que devoraram o meu pai, esperava que passasse pela tentativa da personagem principal de aliviar a sua culpa através da perpetração de mais assassinatos. Spoiler alert: não é isso que acontece. No entanto, a alternativa real a esta proposta não me desiludiu. Mesmo quando me deparava com uma sequência narrativa mais ou menos monótona, uma intervenção ousada do perturbado Raskólnikov despertava em mim a urgência de falar com ele, para evitar que se incriminasse. Acabei, portanto, por criar laços de afeto com as personagens, no seu vaivém por São Petersburgo.

A narrativa de Raskólnikov é uma história sobre a impossibilidade de escapar ao código moral que rege a sociedade, por mais racionais que sejam as motivações que tenham levado à perpetração de um crime. Apesar de Raskólnikov acreditar profundamente na defesa da absolvição dos criminosos que agem em função de propósitos nobres, isso não o impede de ser engolido por uma espiral de paranoia que distorce irremediavelmente a sua perceção do mundo. É particularmente interessante que o narrador heterodiegético de Crime e Castigo não adote uma postura aprovadora ou condenadora dos pensamentos e ações de Raskólnikov.  Afinal, é a vida em sociedade que dita a aceitabilidade de um código moral.

Como é hábito em Dostoiévski, a riqueza deste romance vai muito além do conflito moral que atormenta a personagem principal. Rodeiam-na personagens ricas em características e atitudes que fazem delas janelas para a sociedade russa novecentista. Proliferam num ambiente opressor na sua podridão a prostituição, a pobreza, a fome e a degradação moral.

Afinal, e contrariando as previsões de leitores de Dostoiévski que me são próximos, gostei muito de Crime e Castigo (incomensuravelmente mais, aliás, do que de Noites Brancas, do mesmo autor). Ecoo, portanto, a recomendação de gerações sucessivas de apreciadores de literatura russa: leiam Crime e Castigo para espreitarem, sem medo, para o buraco negro da natureza humana.

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