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H-orizontes

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17
Nov24

"A Cidade e as Serras" - Eça de Queiroz

Helena

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Durante toda a sua vida, Jacinto ocupou um apartamento no número 202 dos Campos Elísios. Habituado à vida no epicentro da civilização, é apenas no seu seio que concebe a possibilidade de uma existência digna. Aterra-o passar tempo entre a natureza, longe do bulício urbano.

É este homem peculiar que Zé Fernandes, o narrador de A Cidade e as Serras, encontra no Bairro Latino, e é com ele que cultiva uma amizade que se prolongará ao longo de muitos anos. Acompanha, por isso, a descida de Jacinto dos píncaros do entusiasmo pelas maravilhas da civilização até ao tédio profundo da saturação pelo excesso. Enterrado em leituras de Schopenhauer e declarando todas as propostas de divertimento “uma seca”, Jacinto parece não ter como sair deste miasma existencial. Eis quando chega uma carta de Tormes, uma propriedade da sua família no vale do Douro, com a notícia de um deslizamento de terras que afetara o lugar de repouso dos seus antepassados.  

Uma vez em Tormes, depois de uma viagem atribulada, Jacinto inicia-se numa jornada que revolucionará a sua forma de estar no mundo. Afinal, a comida mais apetitosa não precisa de chegar à sala de jantar através de elevadores sofisticados, a pobreza pode existir mesmo à sua porta, e há beleza suficiente nas árvores que preenchem um pedaço de terra.

“Nem a ciência, nem as artes, nem o dinheiro, nem o amor, podiam já dar um gosto intenso e real às nossas almas saciadas. Todo o prazer que se extraíra de criar estava esgotado. Só restava, agora, o divino prazer de destruir!”

Esta foi a minha primeira incursão num romance queirosiano que não pertence à trilogia realista de Os Maias, O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio. Motivada, inicialmente, pelo objetivo de ficar a saber mais sobre a forma como Paris era retratada pelos escritores portugueses do final do século XIX, acabei por ganhar raízes na narrativa pelo fascinante tédio de Jacinto e pela revolução que acaba por sofrer a sua conceção da vida.

É sempre de grande interesse, para mim, quando um autor escolhe para narrador uma personagem que, apesar de ser quem dá voz à história que é contada, não constitui a figura em volta da qual a ação principal se desenrola. Zé Fernandes é um narrador homodiegético, e isso condiciona largamente a perceção do leitor em relação a Jacinto. Sem acesso direto aos seus pensamentos e sensações, o leitor obtém-nos em segunda mão, através da lente subjetiva de um amigo caro. Ficam por revelar as palavras que povoam a mente do enfastiado Jacinto, assim como todos os raciocínios por trás das suas ações. Resta-nos julgá-lo pelas atitudes acessíveis ao olhar atento de outrem – ao olhar falível e enviesado de outrem.

Este romance alicerça-se sobre o contraste entre o “antes” e o “depois”, separados pela temporada das personagens principais em Tormes, com consequências no caráter de Jacinto e na opinião de Zé Fernandes sobre Paris. Mesmo sem que possamos aceder às profundezas dos pensamentos de Jacinto, a trajetória da sua personagem ao longo de A Cidade e as Serras é clara: antes de Tormes, Jacinto vivia rodeado de todas as mais recentes maravilhas da civilização, numa abundância tão excessiva que o levou a mergulhar no tédio; depois de Tormes, Jacinto é um homem novo, simples, amante da calma e da natureza num recanto rústico português. Também Paris se metamorfoseia radicalmente aos olhos do narrador de Guiães: antes de Jacinto se mudar para Tormes, Zé Fernandes descreve Paris com o entusiasmo de um recém-chegado, fascinado com a sofisticação das mais recentes criações humanas; quando, deixando Jacinto em Tormes, regressa a Paris, Zé Fernandes é confrontado com uma cidade estagnada e pútrida, fortemente sexualizada e assente em motivações fúteis.

Desta oposição entre o “antes” e o “depois” derivam os demais contrastes que estão na base da narrativa: a pureza e a corrupção, a simplicidade e o excesso, a felicidade e a civilização. A felicidade e a civilização, já que se conclui que a obsessão com o aperfeiçoamento da segunda é um veneno fatal para a primeira.

Retira-se de A Cidade e as Serras uma apologia da aurea mediocritas: a chave para uma vida plena não está na acumulação de dispositivos que o “homem civilizado” crê serem essenciais para o seu conforto. O segredo está, sim, na renúncia à abundância que satura, e na aceitação de uma vida humilde – e de um prato de arroz de favas.

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