“O Processo” – Franz Kafka
Joseph K., gerente de um banco, acorda numa manhã da sua vida pacata para se deparar com a visita de membros do aparelho judicial, que lhe comunicam que se encontra envolvido num novo e complexo processo. Apesar de não o prenderem, deixam K. num estado psicológico de prisão perpétua, já que não conhece a natureza do seu processo, nem os seus responsáveis na Justiça, nem o motivo de estar envolvido nele.
Ao longo de 190 páginas, Joseph K. tenta em vão clarificar o seu processo judicial e provar a sua inocência – algo praticamente impossível, dado não se conhecer aquilo de que o consideram culpado. Quase “atirado” de um lado para o outro pelas exigências da irracional Justiça, K. vai-se movimentando naquele que se revela o universo corrupto, incompreensível e contraditório dos processos judiciais. No final de contas, lutar contra a sua sentença ou aceitá-la passivamente parecem levá-lo ao mesmo resultado desolador de uma condenação sem fundamento.
«Mas eu não sou culpado», respondeu K., «é um erro. E, por falarmos nisso, como é que um homem pode ser considerado culpado? Somos todos homens, tanto uns como outros.»
Através da história bizarra de Joseph K, Kafka leva-nos a refletir acerca do funcionamento das instituições fundamentais da sociedade ocidental – especialmente, acerca da completa ausência de sentido prático que as caracteriza. Apesar de as autoridades comunicarem a K., no início do seu processo, que ele não vai ser preso, o que efetivamente acontece é uma prisão alargada a toda a existência do arguido. O processo entranha-se na vida de K., tanto pela incógnita em que consiste a acusação que o envolveu, como pela ininteligibilidade do seu desenrolar. Por mais que K. tente intervir para acelerar o decorrer dos acontecimentos, tudo o que ele se dispõe a fazer é irrelevante ou nocivo para o seu estatuto de acusado. A impossibilidade de se sair vitorioso de uma batalha com as instituições é resumida pelo pintor com que K. se encontra para tentar encontrar uma solução: um caso só pode ser resolvido através de uma absolvição definitiva, de uma absolvição aparente ou de um adiamento indefinido. A primeira nunca ocorre, a segunda conta com uma absolvição ratificada pelo juiz, mas não pelo Supremo Tribunal (o que leva a que seja possível que o processo seja recuperado e recomeçado a qualquer momento), e o terceiro, que consiste em evitar que o processo passe das primeiras fases, exige visitas constantes ao juiz e uma vigilância permanente da situação do acusado. Em suma, um acusado está inevitavelmente condenado a uma vida de instabilidade e preocupação, afundado em burocracia que não consegue entender.
O próprio recurso aos conhecimentos do pintor constitui parte da crítica à rede de influências que permeia o funcionamento das instituições. Só com o recurso a pessoas com ligações mais ou menos lícitas ao sistema judicial consegue fazer algum progresso (ainda que apenas aparente e insatisfatório) no decorrer do seu processo.
Um aspeto que captou particularmente a minha atenção foi a ubiquidade do sistema judicial, materializada pela existência de escritórios do tribunal em sótãos de zonas residenciais. Assim como as vidas dos residentes se encontram permanentemente debaixo de extensões do aparelho judicial, literalmente, também as vidas dos cidadãos estão condenadas a desenrolar-se sob a inexorável burocracia segundo a qual, bem ou mal, nos regemos.
A minha experiência de leitura d’O Processo foi surpreendentemente positiva. Acabei por gostar muito mais deste livro do que do célebre A Metamorfose, talvez por tê-lo lido numa fase da vida em que consigo compreender melhor o que realmente está em causa numa história aparentemente sem sentido, ou por ter uma mensagem crítica mais fácil de destrinçar. Este pode ser, no fundo, um livro sobre a falta de sentido da vida, e sobre como não importa o que façamos para tentar compreendê-la ou combater o seu rumo. Recomendo esta leitura a toda a gente.