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H-orizontes

H-orizontes

26
Ago23

“Noite” – Elie Wiesel

Helena

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No início do ano de 1944, a cidade romena onde Elie Wiesel vivia com a sua família ainda não tinha sido confrontada com a ameaça do fascismo que lavrava pelo solo europeu, em plena Segunda Guerra Mundial. Contudo, nenhuma povoação da Roménia viria a escapar à ocupação alemã que se seguiu, na primavera de 1944, a um pacto entre os nazis e o governo.

Assim, com apenas quinze anos, Elie Wiesel é enviado para o campo de concentração de Auschwitz, onde é separado da mãe e dos irmãos. Ficou apenas com o pai, de quem recusou separar-se até ao final da sua jornada. Apesar de a reta final da Segunda Guerra Mundial começar a vislumbrar-se no horizonte, as atrocidades perpetradas nos campos de concentração não eram, de forma nenhuma, menos degradantes. O frio, a fome e a exaustão andam de braço dado com Elie e os seus companheiros de campo, durante um ano que pareceu uma noite e cujo fim não chegou a ser presenciado por todos.

Noite faz parte do corpus de documentos e ações de sensibilização que contribuíram para que o Nobel da Paz de 1986 fosse atribuído a Elie Wiesel.

Na primeira metade da obra, aquilo que mais me impactou foi a perda de fé do narrador no Deus a que se dedicava integralmente antes de ter sido deportado. Quando confrontado com o completo desrespeito pela dignidade humana de que os prisioneiros do campo de concentração eram vítimas, Wiesel sentiu-se abandonado pela divindade que julgava misericordiosa e boa. O narrador chega, aliás, a afirmar que os Homens são superiores a Deus, por possuírem força de espírito suficiente para continuarem a adorá-Lo, mesmo quando Ele permite que o seu povo fosse condenado ao sofrimento e à miséria.

Na segunda metade, é gritante o poder da degradação extrema das condições de vida na desintegração dos laços que se pensavam inquebráveis entre indivíduos. A degradação da relação entre pai e filho, em particular, é posta em evidência enquanto resultado da necessidade crescente de apelar aos instintos mais primários de sobrevivência. O próprio autor, depois de uma longa jornada ao longo da qual se recusou a separar-se do seu progenitor, confessa-se aliviado após a sua morte, por permitir que ele concentrasse toda a sua energia na sua própria sobrevivência.

Um dos aspetos mais perturbadores deste relato é a descrença da população na terra-natal de Wiesel em relação à chegada do fascismo. A guerra alastrava pela Europa, mas nunca chegaria à Roménia. Os fascistas chegaram à Roménia, mas nunca chegariam às povoações mais pequenas. A repressão chegou às aldeias, mas o perigo para os judeus não podia ser real. A postura de negação em relação à ameaça do fascismo existia em 1944 e existe nos nossos dias, e é importante que consigamos identificar estes padrões para podermos prevenir a repetição de um dos episódios mais negros da História europeia.

Noite é mais um livro do cânone das narrativas sobre o Holocausto, um relato cru e revoltante de uma das tantas vidas que devemos recordar, com respeito e atenção, nos tempos que correm e nos que estão por vir.

24
Ago23

“Conversations on Love” – Natasha Lunn

Helena

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Conversations on Love é um livro feito daquilo que o título indica: conversas sobre o amor, entre a autora e uma série de personalidades mais ou menos conhecidas e mais ou menos especializadas em dinâmicas de relacionamentos.

Dividido em três partes, este livro discute alguns pontos fulcrais de três fases inerentes à experiência do amor: o despertar de uma paixão, a manutenção de uma relação e a experiência da perda. Através das suas conversas, Lunn sintetiza os conselhos que a ajudaram a compreender a sua própria vida amorosa, a fim de poder ajudar os leitores a trilhar o seu próprio caminho no universo das relações interpessoais.

“I think there’s a danger of pulling away from love in order to own your feminism, when, actually, you learn to understand yourself in relation to people around you. You can find independence through connection too.”

Apesar de ter gostado da estrutura deste livro, acabou por não corresponder às minhas expectativas. O formato de entrevista com que Lunn consolida cada um dos seus pontos é interessante na medida em que torna os conselhos e lições presentes neste livro mais humanos e reais. Afinal, são palavras de alguém que teve experiências que levaram a conclusões que resultaram no seu caso particular, e isso confere-lhes autenticidade. No entanto, à medida que o livro avança, torna-se algo repetitivo, esgotando o potencial de trazer ao público em geral novas perspetivas em relação à vivência do amor e da perda. Isto deveu-se, principalmente, ao foco da autora no luto que se seguiu ao seu aborto espontâneo, de modo que grande parte das conversas e reflexões acabam por redundar na experiência pessoal da perda de um filho.

Assim, acredito que a leitura deste livro pode beneficiar pessoas que se sentem algo perdidas neste labirinto que são as relações afetivas, pela partilha de testemunhos que podem servir simultaneamente de conselho e de validação de experiências dos leitores. No entanto, a concentração no luto e na perda de um filho enquanto experiência pessoal acabou por contaminar conversas que poderiam ter explorado o amor de uma forma mais abrangente.

“At first you live in grief, then it lives in you.”

20
Ago23

“Recitatif” – Toni Morrison

Helena

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O único conto publicado pela Nobel da Literatura  de 1993 retrata o crescimento de duas meninas que se conheceram no orfanato de St. Bonny’s, depois de ambas terem sido retiradas às suas mães. Desde o início que sabemos que as meninas são diferentes, por uma ser branca e uma ser negra numa América onde isso implica uma série de considerações a nível identitário. No entanto, Morrison omite a informação sobre a cor de pele de cada uma das meninas. Em consequência, Recitatif é um puzzle, um labirinto de pistas contraditórias que faz do leitor o próprio alvo da experiência desta peça de literatura experimental.

À medida que crescem, Twyla e Roberta encontram-se esporadicamente em episódios que nos permitem tirar algumas ilações sobre a dinâmica de relacionamento entre pessoas de raças diferentes, nos Estados Unidos, por volta dos anos 50 do século passado: um encontro num hostel onde Twyla trabalha, no meio de um protesto contra a dessegregação nas escolas e num supermercado para as pessoas de classe alta.

No final de contas, Twyla e Roberta definem-se por aquilo que é comum ao ser humano: a busca pelo sentido de identidade, a permanência da memória e o desejo de libertação em relação a um passado traumatizante. Afinal, quem espancou a Maggie?

“Easy, I thought. Everything is so easy for them. They think they own the world.”

A forma como Toni Morrison consegue atingir tanto numa narrativa tão curta é genial. Ao remover da caracterização das personagens algo que, à época, seria extremamente importante para a sua definição enquanto indivíduos, Morrison deixa um espaço aberto que completa com apontamentos e situações que põem o leitor na berma da ambiguidade. Por essa razão, esta é uma experiência de leitura que leva o leitor a aprender mais sobre si próprio do que sobre as personagens cuja história de vida vai desvendando. Consoante a visão estereotipada do leitor da dualidade brancos/negros, a narrativa assume contornos consideravelmente diferentes. Assim, esta é uma história importantíssima para tomarmos consciência dos nossos próprios preconceitos raciais.

Para alcançar este efeito de ambiguidade, Morrison teve de adotar um registo de linguagem que não deixasse transparecer a herança linguística e cultural de nenhuma das personagens. Com efeito, o equilíbrio entre um registo de indivíduo americano branco e um de raízes afro-americanas é essencial para o funcionamento desta narrativa, e é alcançado na perfeição.

Esta edição de Recitatif (Knopf, 2022) é acompanhada por uma introdução de Zadie Smith que, tendo optado por lê-la depois de ler o texto principal, me apresentou o conto sob uma série de novas luzes. Aconselho vivamente os leitores a que se dediquem a leituras complementares a esta, nomeadamente artigos de análise da obra, já que põem em destaque aspetos que podem passar despercebidos e aprofundam o sentido de genialidade da bibliografia de Morrison.

Em suma, apesar de ainda não existir uma tradução portuguesa deste conto, penso que esta é uma leitura obrigatória para uma melhor compreensão do mundo que nos rodeia, do passado de que resultamos e daquilo que, inconscientemente, somos.

16
Ago23

"Purple Hibiscus" - Chimamanda Adichie

Helena

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Numa Nigéria pós-colonial, política e economicamente instável, a família de Kambili vive num contexto de abundância e privilégio que está longe de ser a norma. Apesar de dispor de condições e oportunidades em muito superiores à média, a vida de Kambili aproxima-se mais de um pesadelo exasperante do que de um sonho próspero. O seu pai, Eugene, é fervorosamente religioso, e a imagem de um homem caridoso e bom que passa aos habitantes de Enugu contrasta fortemente com a agressividade com que educa os seus filhos. Contudo, mesmo que sufocada pelo rigor com que o pai determina o que pode ou não acontecer no dia a dia dos seus filhos, Kambili não tem as ferramentas para reconhecer na sua educação as marcas da repressão.

No entanto, uma visita à casa da tia Ifeoma, que vive em condições muito mais precárias, enquanto viúva com três filhos, trará a Kambili uma nova perceção da família e do mundo, da prática da religião e da necessidade legítima de rir. 

"It was hard to turn my head, but I did it and looked away.”

Enquanto romance de lançamento de Chimamanda Adichie, este livro é fenomenal. Esta é uma leitura desconfortável, claustrofóbica e revoltante, e é fantástica por isso mesmo. Apesar de nunca mencionar termos como “opressão”, Adichie transmite ao leitor a sensação vívida de viver sob o jugo de uma autoridade absoluta e abusiva.

Todas as personagens deste romance tiveram, de uma forma ou de outra, impacto em mim. Kambili, em primeiro lugar, pela inocência infantil com que venerava o pai, uma figura de amor e de sucesso, cujos comportamentos incompreensíveis eram suportados por uma consciência profundamente interiorizada da sua autoridade incontestável. Jaja, pela sua coragem em fazer frente ao pai, rompendo a tradição familiar com as suas próprias mãos, e por assumir as culpas que nem sempre eram dele, juntamente com as suas consequências. A mãe, enquanto mulher presa nos ciclos da violência doméstica, vítima de um marido violento e de uma sociedade mesquinha, cuja vida se desenrolava num beco sem saída. A tia Ifeoma, pelo seu comportamento empoderado, pela sua generosidade e pela sua integridade na defesa dos valores que eram mais importantes para ela – a verdade, a tolerância e a felicidade dos seus. Amaka, pelo seu modelamento enquanto personagem redonda, e os restantes primos pela resiliência alegre com que lidavam com a escassez que assombrava o seu dia a dia. O padre Amadi, pela sua perceção moderada de uma religião que devia ser acolhedora pelos seus valores, e não assustadora pelo seu rigor. Até o pai de Kambili, por boas e más razões: uma figura paterna que traumatizava os filhos como meio de transferência do seu próprio trauma, preso entre os deveres de denunciador do regime e de ajuda aos mais necessitados e os de educar duas crianças no seio de uma igreja cuja ordem dava sentido à sua vida.

Apesar de o tom geral de Purple Hibiscus ser de repressão e insegurança, esta é uma história de crescimento e libertação. Através do contacto com a sua família paterna, Kambili encontra a sua identidade, começa a questionar criticamente o ambiente em que foi criada e torna-se dona dos seus próprios objetivos. Assim, um romance de opressão e extremismo torna-se num romance de superação e de esperança.

Tenho um fascínio particular por livros que me levam a descobrir formas de viver e de pensar que me são alheias, e este livro é uma autêntica porta para as vivências da população nigeriana pós-colonial, tanto das franjas mais abastadas como das camadas mais pobres. Adichie faz um excelente trabalho de representação cultural ao incluir, por exemplo, excertos de conversas em igbo, a língua local, ou ao referir os nomes das comidas que pontuavam a alimentação quotidiana.

Comprei este livro enquanto esperava pela chegada de um comboio atrasado, e ainda bem. Tenho a certeza de que vai parar ao topo dos meus favoritos de 2023.

03
Jul23

“V for Vendetta” – Alan Moore e David Lloyd

Helena

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Na Grã-Bretanha, num futuro distópico que sucede a uma guerra nuclear arrasadora, o fascismo domina as estruturas governativas e as vidas dos cidadãos são permanentemente vigiadas e controladas pelo sistema. Organismos como o Dedo, a Orelha e o Olho garantem que a população é doutrinada na ideologia do regime e que todos cumprem as regras rígidas que lhes são impostas.

Contudo, as condições de vida da população não melhoraram substancialmente com a instauração do novo regime, o que leva pessoas como Evey a tentar ganhar algum dinheiro através da exploração do seu próprio corpo. No entanto, a prostituição não é permitida nesta nova Grã-Bretanha, e Evey teria sido levada pelos vigilantes do governo, não tivesse aparecido V, o protagonista desta história. Esta personagem misteriosa, que se esconde atrás de uma máscara inspirada no ícone da História britânica Guy Fawkes, tem como objetivo a erradicação da presente estrutura governativa e a instauração de uma anarquia, em que a ordem seria natural e voluntária.

A sede de vingança de V atravessa as vinhetas desta banda desenhada, que já é considerada um clássico moderno e uma distopia de leitura essencial.

"Remember, remember the fifth of November of gunpowder treason and plot. I know of no reason why the gunpowder treason should ever be forgot." 

Comecei a ler esta banda desenhada sem saber bem aquilo que me esperava. A primeira metade da história cativou-me imenso, já que não sabia da existência de mais distopias que, como 1984, Admirável Mundo Novo e Fahrenheit 451, criassem um universo dominado pelo fascismo que pudesse constituir a imagem de um futuro próximo tão verosímil. Assim, foi com entusiasmo que fui descobrindo as regras desta sociedade futura, as estruturas que a suportavam e os planos da oposição oculta.

No entanto, a segunda metade da história não correspondeu às minhas expectativas. O enredo tornou-se bastante previsível, já que o método de V para proceder à revolução consistia em matar os membros do governo, um por um. Seria interessante se se tivesse optado por uma explicação mais detalhada acerca do passado de V ou de Evey, o que diversificaria o desenrolar algo monótono da ação. Para além disso, quando a história se encaminha para o final, várias personagens de membros da estrutura governativa intervêm simultaneamente. Tendo em conta que todos são homens brancos muito semelhantes, só com alguma atenção no início da narrativa é possível ter em mente quem é a pessoa que fala e que função é que desempenha no funcionamento do aparelho do estado.

Em suma, esta foi uma boa leitura enquanto incursão num género que não costumo ler, mas que ficou aquém daquilo que, a meu ver, poderia ter sido.

28
Jun23

“Mar Negro” – Ana Pessoa e Bernardo P. Carvalho

Helena

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Inês e J.P. trabalham no bar da praia durante um verão que se aproxima do fim. Os clientes vão e vêm, e os gelados Mar Negro encomendados em grande quantidade saem a voar. A relação entre Inês e J.P. é a de duas pessoas que, apesar de muito diferentes, são reunidas pelas circunstâncias e acabam por desfrutar da companhia um do outro.

Tudo parecia encaminhar-se para um final de estação tranquilo, quando, certo dia, uma rapariga morre afogada no mar. Tratando-se de uma cliente habitual do bar da praia, Inês não pode deixar de se sentir incomodada pelo sucedido, nem resiste a guardar para si a mala que a rapariga, também chamada Inês, deixara no bar por esquecimento.

Numa fase de transição entre as estações do ano e da vida, Inês percorre um caminho de novas descobertas, sensações e experiências que contribuirão para a consciência de si própria e dos outros.

Ana Pessoa e Bernardo P. Carvalho voltam a enveredar pelo mundo das bandas desenhadas pouco convencionais, com uma narrativa completamente ilustrada a duas cores e disposta em vinhetas de formas invulgares.

Tendo lido a banda desenhada publicada previamente pelos mesmos autores (Desvio), posso afirmar que gostei mais da anterior, já que a originalidade da narrativa me cativou mais. Por outro lado, entendo que a representação literária do quotidiano mais vulgar possa ser percecionada como um olhar claro sobre a vida de todos os dias e um testemunho de um período com características específicas. Assim, nestas páginas azuis e brancas, eternizou-se um fragmento da existência, a realidade de um trabalho de verão no bar da praia, das primeiras paixões e dos dilemas que o crescimento não deixa de trazer.

Assim, Mar Negro é uma boa leitura para uma tarde quente e descontraída de verão, tanto para jovens adultos (leitores cujos pensamentos, comportamentos e modos de expressão Ana Pessoa continua a captar maravilhosamente) como para adultos com vontade de regressar a uma juventude à beira-mar.

27
Jun23

“Levantado do Chão” – José Saramago

Helena

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Com uma ação situada no seio do Alentejo, durante a ditadura salazarista, Levantado do Chão acompanha a jornada de quatro gerações de trabalhadores rurais e as suas lutas sucessivas pela conquista de direitos laborais.

Ao longo de 290 páginas, a família Mau-Tempo debate-se com os ciclos de miséria e exploração que parecem inexpugnáveis nos latifúndios alentejanos que assentam, tal como a ditadura em vigor, numa hierarquia rígida e impermeável a considerações de misericórdia em relação aos subordinados. Assim, os Mau-Tempo e os que os rodeiam lutam cada dia pela sobrevivência a mais um ano de escassez e de jornadas de trabalho desumanas. Abafadas as revoltas pela PIDE, pela guarda, pela influência da religião, resultando delas mortos, presos, feridos, o povo não desiste da esperança na madrugada que há de vir e dar a conhecer aos trabalhadores o significado da palavra liberdade.

“e todo o mais deste destino está explicado nas linhas de ir e voltar”

Este é um daqueles livros que terei de reler mais tarde, numa altura, quem sabe, mais propícia à apreciação de todas as suas potencialidades. Esta experiência de primeira leitura não foi muito boa, por uma série de razões.

Em primeiro lugar, fui interrompendo esta leitura com outros livros que precisava de ler para outros trabalhos, e isso afetou bastante a fluidez da narrativa. Como se trata de um romance sobre gerações, é fácil que o leitor se perca entre os nomes e as relações entre as personagens, principalmente se não fizer uma leitura consistente e atenta (como foi o meu caso).

Em segundo lugar, a história não me cativou muito, exceto pelo facto de remontar a um contexto espácio-temporal que me interessa particularmente. Os ciclos repetitivos, apesar de intencionais, pareceram-me demasiado repetitivos, ao ponto de tornar a narrativa aborrecida e previsível.

Para além disso, nenhuma personagem me marcou muito por ser muito diferente das outras. É de realçar o episódio da tortura de António Mau-Tempo enquanto testemunho dos mecanismos de repressão do regime salazarista, mas, ainda assim, o seu propósito de vida era o mesmo que o de todas as outras personagens, e a sua trajetória na narrativa bastante linear.

No entanto, reconheço que esta é uma obra fundamental para o aprofundamento da compreensão da vivência dos trabalhadores agrícolas do período salazarista, e para que se recordem as múltiplas e terríveis armadilhas do fascismo. É, ainda, o romance inaugural do estilo saramaguiano, pautado pela fluidez do discurso intercalado com reparos mais ou menos subjetivos por parte do narrador.

Em suma, este não é um romance célebre pelas suas personagens extraordinárias e reviravoltas na ação, mas pela maneira como captura, como que pelos olhos de muitas pequenas formigas, a forma como a soma do sofrimento das gerações que tentaram “levantar-se do chão” possibilitou que, eventualmente, uma delas pudesse usufruir do poder de trabalhar digna e livremente.

07
Mai23

“Europe & The Architect” – David Greig

Helena

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Nesta publicação da Methuen Drama, compilam-se duas peças de David Greig, Europe e The Architect, representadas pela primeira vez no Traverse Theatre, em Edimburgo, em 1994 e em 1996, respetivamente.

Em Europe, uma pequena povoação na fronteira de um país europeu não nomeado recebe a terrível notícia do encerramento da estação de caminhos de ferro, na qual já quase não paravam comboios. Ao mesmo tempo que se debatem com as consequências que isto implica, os habitantes desta pequena cidade veem-se a braços com o expediente das recentes vagas de refugiados: pai e filha fazem da estação o seu abrigo e encontram nos seus responsáveis algum apoio. No entanto, nem toda a povoação partilha deste sentimento de solidariedade. Numa peça simples e curta, David Greig concretiza uma representação da realidade europeia do presente – um continente unido de grande cidade em grande cidade, cuja resposta humanitária ao problema dos refugiados continua a deixar muito a desejar.

The Architect traz para a ribalta os dramas de cada um dos elementos de uma família numa cidade do presente. Leo, um arquiteto, debate-se com uma proposta de demolição de um dos edifícios que projetou, que, entretanto, se tornara um antro de pobreza sem condições para alojar aqueles que precisavam. Paulina, a sua esposa, sente que o seu casamento já não faz sentido e que já nada no seu marido a fascina. Dorothy, a filha, trabalha com o pai, mas tem a necessidade de quebrar a monotonia da sua vida partindo à boleia de desconhecidos sem um destino definido, sem avisar ninguém. Martin exaspera o pai por se recusar a dedicar-se a um trabalho e pensa que fugir é a única forma de escapar à dinâmica familiar que o asfixia.

“You can’t build a thing high enough that if you fell off you wouldn’t hit the ground.”

Apesar de terem sido escritas na década de 90 do século passado, estas peças veiculam uma mensagem que ainda se adequa perfeitamente ao presente. Com novas vagas de refugiados a procurar asilo na Europa, a urbanização e terciarização crescente da sociedade e o agravamento da precariedade da habitação, os problemas destas personagens refletem comportamentos e preocupações dos europeus, trinta anos depois.

Apesar de não costumar gostar de ler textos dramáticos, o Europe conquistou-me pela forma como aborda tantos temas fraturantes sem parecer forçado. As personagens são verosímeis e as suas atitudes são plausíveis e adequadas ao espaço onde vivem. Já The Architect não me agradou tanto, não só pelo modo de encadeamento das cenas como pela falta de naturalidade no comportamento das personagens.

Assim, foi uma boa incursão na literatura dramática britânica contemporânea, que me deixou com vontade de ver as representações destas peças ao vivo.

“I’ll talk to you all night. That’s better than love.”

29
Abr23

“Admirável Mundo Novo” – Aldous Huxley

Helena

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No ano de 2540 (que corresponde ao ano 632 depois de Ford no universo da narrativa), a sociedade inglesa vive num estado de estabilidade perpétua garantido pelo condicionamento de todos os indivíduos à nascença. Num universo sem os conceitos de mãe e pai, os bebés são gerados e desenvolvidos em provetas, sendo condicionados para desempenharem um determinado papel no futuro que os espera: tornar-se-ão alfas, betas, deltas, gamas ou épsilones, as cinco classes da sociedade rigidamente hierarquizada.

Apesar de todos os procedimentos químicos durante a gestação e das lições a que são sujeitos enquanto dormem, ao longo do crescimento, em alguns alfas, os indivíduos psicologicamente mais autónomos, podem florescer ideais comprometedores para a estabilidade, sensações de vazio que podem levá-los a tomar atitudes indevidas. É o caso de Bernard Marx, um alfa cujo comportamento provocava estranheza entre os seus pares e, consequentemente, o isolava na sua esfera de perplexidade. Bernard não era como as outras pessoas: incomodava-o a presença permanente dos outros, não apreciava os desportos populares, tinha um profundo interesse pelas populações intocadas pela civilização e não era atraído pelo estímulo à manutenção simultânea de múltiplas relações sexuais que todos praticavam.

Apesar de ter sido advertido sobre a possibilidade de ser expulso da civilização no caso de insistir nos seus comportamentos perigosos, Bernard decide levar Lenina, uma delta conhecida por ser especialmente pneumática, a uma reserva de Selvagens, indivíduos alheios aos progressos da civilização. Uma vez aí, são surpreendidos por uma cerimónia religiosa de autoflagelação e conhecem Linda e John, cujo aspeto e ausência de civilidade chocam Lenina profundamente. O plano de Bernard estava em marcha: regressaria a Inglaterra com os dois Selvagens e provaria a todos que existiam outras formas de pensar e de viver. Mas como reagirão os Selvagens à vida em civilização? E estará a sociedade inglesa pronta para lidar corretamente com a chegada de alguém diferente?

“Mas eu não quero o conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o autêntico perigo, quero a liberdade, quero a bondade. Quero o pecado.”

Agora que acrescentei o Admirável Mundo Novo ao meu repertório de distopias, posso concluir que, em comparação com 1984 e Fahrenheit 451, esta é a menos assustadora. Não é preciso esforçar muito a imaginação para conceber um universo em que a engenharia genética determina o futuro dos indivíduos  e em que o espírito crítico é abafado em nome da estabilidade e do conforto.

Contrariamente ao que acontece em “1984”, a sociedade do Admirável Mundo Novo não está sujeita à vigilância permanente dos órgãos estatais, nem pode ser levada para esconderijos de tortura medonhos por contrariar o regime. Enquanto o sistema totalitário de 1984 sobrevive à base da adulteração da verdade, no Admirável Mundo Novo cultiva-se a indiferença face à verdade, uma vez que o conhecimento, a ciência e a crítica constituiriam uma ameaça à estabilidade social. Para além disso, estas distopias opõem-se quanto à opinião social vigente em relação à liberdade sexual. Enquanto os indivíduos de 1984 estavam proibidos de qualquer atividade sexual, com o objetivo de canalizar a energia reprimida para o serviço ao regime, o Admirável Mundo Novo incita a prática de uma atividade sexual intensa, com mais do que um parceiro, e estimulada por suplementos e experiências de cinema sensoriais, para dar aos habitantes uma sensação de permanente prazer e felicidade.

Tendo sido publicado em 1932, Admirável Mundo Novo possui um forte pendor profético no que toca à emergência de regimes totalitários em solo europeu, nomeadamente o fascismo e o estalinismo. Também os regimes fascistas baseavam a sua noção de sociedade na manutenção de uma hierarquia social rígida e inquestionável, sedimentada pela discriminação.

O universo criado por Huxley ecoa nos nossos dias em aspetos como a abundância de medicamentos, suplementos e drogas que elevam o espírito dos doentes ou consumidores, produzindo efeitos semelhantes à soma do universo distópico. Também a completa abominação da solidão é algo que ganha raízes na sociedade dos nossos dias: mesmo que estejamos sozinhos, as novas tecnologias mantêm-nos conectados a um número infinito de pessoas e lugares, de maneira que se torna difícil para alguém ficar completamente só consigo e os seus pensamentos.

Em suma, o Admirável Mundo Novo conta com uma construção de um universo distópico excelente, assim como com discussões de pendor moral e sociológico que despoletam reflexões de interesse e pertinência atuais. Apreciei particularmente a forma como o autor modela a personagem de Bernard, em oposição à personagem plana de John, que, aliás, é apontado como o elemento-chave que está em falta em 1984 – o outsider que tem a capacidade de criticar o universo distópico à luz dos seus preceitos sociais. Apesar de o próprio Huxley admitir que este livro conta com algumas falhas (tais como a bipolaridade demasiado radical dos destinos das personagens), esta é uma leitura essencial para a compreensão da sociedade dos nossos dias e para a prevenção de um futuro sem arte, sem ciência, sem religião, sem literatura e sem o espírito crítico que faz de nós humanos.

23
Abr23

“Fiesta – The Sun Also Rises” – Ernest Hemingway

Helena

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Na década de 1920, Jake, o narrador americano, e um grupo de amigos conterrâneos e ingleses encontram-se em Paris para uma estadia prolongada. Jake leva uma vida de diletante, passeando-se de café em café e encetando conversas com os seus amigos de longa data. Brett, em particular, é relevante para o narrador pela relação amorosa que tinham mantido no passado, por um curto período, já que ela tinha uma dificuldade crónica em consolidar relações longas, e ele estava sexualmente debilitado em consequência da sua participação na Grande Guerra.

Com a chegada do verão, Jake organiza a sua habitual visita a Pamplona, desta vez com os seus amigos, para assistirem às touradas e às corridas de touros. O narrador parte com antecedência, para fazer uma paragem para pescar nos Pirenéus. Quando se reúnem em Pamplona, por entre os ânimos da fiesta, tensões entre eles desabrocham e intensificam-se, fruto de paixões entrecruzadas e interesses que não coincidem.

Numa narrativa focada no tempo presente, Hemingway tece uma rede de personagens que, fruto de um contexto histórico determinante para as suas peculiaridades, perseguem os impulsos que esperam vir a dar sentido à sua vida.

“He’s so damned nice and he’s so awful. He’s my sort of thing.”

Depois de uma desilusão considerável com a leitura de Por quem os sinos dobram, Fiesta revelou-se uma agradável surpresa. Este é um livro que retrata através de uma mão cheia de protagonistas a sociedade hedonista do pós-primeira guerra mundial – a chamada “Geração Perdida”. Jake e os seus amigos levam uma vida boémia em Paris que se prolonga na sua estadia em Espanha, e gira em volta de diversão, álcool e paixões. Podemos contar, também, com uma representação muito vívida da realidade espanhola dos anos 20, do ambiente das corridas de touros bascas e de todo o entusiasmo popular que envolve as fiestas. Apesar de descrever as touradas da perspetiva do narrador, que as aprecia, Hemingway não deixa de incluir opiniões contrárias às touradas, e a sua tendência tauromáquica não me chocou particularmente.

Inicialmente, as personagens que rodeiam o narrador surgem em catadupa, o que gerou alguma confusão no meu processamento da ação – tudo girava como um turbilhão de vultos indistintos que se amalgamavam nas vivências do narrador. Contudo, o desenrolar da narrativa permite ao leitor ter uma imagem clara de cada um dos intervenientes na ação, já que os seus carateres, ainda que todos eles boémios, são marcadamente distintos. De facto, o coração deste romance não reside na sucessão de eventos, mas na decantação do caráter de uma série de indivíduos que vagueiam pela vida numa busca repetidamente falhada pelo seu sentido.

Assim, partilhando ou não da visão do autor em relação às touradas e reconhecendo que certas observações se devem às especificidades do contexto em que a obra foi escrita, recomendo esta leitura como escape no tempo e no espaço.

“You can’t get away from yourself by moving from one place to another.”

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