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H-orizontes

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07
Jul24

“Triunfal”, de Aquilino Ribeiro, e o Mito da Caixa de Pandora

Helena

No seu conto Triunfal, Aquilino Ribeiro reconta o episódio genesíaco do Pecado Original. Apesar de diferir do texto bíblico em vários aspetos, entre eles a transposição do momento em que Eva morde o fruto proibido para um espaço mítico erotizado em que o pomo proibido consiste na descoberta da sexualidade, Aquilino preserva o papel da mulher como catalisadora da perdição humana. A conceção da figura feminina como culpada pela ruína que a sua curiosidade e lascívia trouxeram à espécie humana encontra-se tanto na mitologia cristã, com Eva, como na greco-romana, com Pandora. Proponho-me, portanto, explorar as semelhanças entre estes dois mitos basilares para a perceção europeia do mundo (mesmo quando recontados), e a forma como influenciam os papéis de género na atualidade.

O primeiro ponto partilhado por Triunfal e o mito da Caixa de Pandora é o facto de a força divina ser retratada como uma entidade ameaçadora e vingativa. Em Triunfal, o deus veterotestamentário é responsável pelo fim da felicidade plena em que Adão e Eva viviam, no Paraíso. É ao informá-los de que tocar na sua “árvore da ciência” lhes traria inexorável ruína que deus cerceia a plenitude dos prazeres do Éden (“o receio de poderem, involuntariamente, trair o amo flutuava em seu cuidado e já enrugava a face lisa do seu mar de doçuras”). O deus veterotestamentário reveste-se, assim, de uma aura de ameaça e imprevisibilidade. Para além disso, a sua natureza inflexível e castigadora revela-se aquando da descoberta de Adão e Eva do “pomo proibido”: “Por cima deles repercutiu, a breve espaço, um formidável trovão que os atirou um contra o outro a bater os dentes de medo”, e, logo de seguida, a voz de deus “ribombou (…) entre as nuvens”, ordenando-lhes que deixassem o Paraíso e abandonando-os sem piedade às “mil tormentas” do mundo terreno. O mesmo traço castigador caracteriza os deuses do mito da Caixa de Pandora. Neste, Pandora é ela própria o castigo divino, enviado para entre os homens como retaliação pela ousadia de Prometeu, ladrão do fogo dos deuses. Segundo a Teogonia de Hesíodo, Pandora, detentora de todos os dons, terá sido lançada à terra para seduzir os mortais e os conduzir à perdição. Assim, tanto o deus cristão como os deuses da mitologia clássica adotam, nestes mitos, uma postura rígida, quase malévola, que responde à irresponsabilidade dos mortais com o castigo desproporcional da ruína da espécie humana.

Também em ambos os registos se verifica a existência de um objeto proibido, cuja prova ou abertura desencadeia uma série de consequências para a humanidade. Em Triunfal, as consequências da sucumbência ao fruto proibido começam por ser enunciadas por deus: “Tu, homem, ias regar a terra com o suor do corpo; e tu, mulher, serias votada à condição da criatura mais frágil e cativa entre as criaturas. (…) Nesse fruto, meus meninos, estão açaimados todos os flagelos… ódio, ciúme, angústia… guerra…”. Já o desastre que se segue imediatamente à desobediência de Adão e Eva é a expulsão do Paraíso e a consequente queda para o mundo povoado por todos os males previamente enunciados. O foco desta narrativa é, portanto, uma incógnita cuja descoberta seria portadora de desgraças – pelo menos, segundo a autoridade divina. Isto, no entanto, não corresponde à conclusão do conto de Aquilino: a Adão e Eva junta-se “A criação inteira”, entoando repetidamente “Amor, és tudo!”. Assim, apesar da violação das ordens divinas e da condenação a uma vida de provações num mundo cruel, a descoberta do pomo proibido (neste caso, da sexualidade) traz ao Homem a possibilidade de fruir do prazer do orgasmo e de uma vida amorosa plena. Daí podemos inferir a defesa por Aquilino do carpe diem horaciano e de um vitalismo fundado na alegria do apego terreno. Por isso o seu conto tem como título Triunfal, uma afirmação da vitória do eros somatizado, causa de castigo divino e fonte de júbilo profano. Também o mito da Caixa de Pandora culmina na libertação de males e na descoberta de um bem. Pandora é enviada para junto dos homens com uma jarra que estava proibida de abrir. Contudo, a sua curiosidade leva a melhor e, quando abre a jarra (uma caixa, em relatos posteriores), liberta todos os males que a humanidade ainda não conhecia: o ciúme, a guerra, a doença, o ódio. No fundo da jarra, resta apenas a esperança. Portanto, a abertura da caixa de Pandora trouxe não só o conjunto de maleitas que assolam a vida terrena, como também a esperança que dá ânimo aos Homens para não desistirem de as enfrentar. Assim sendo, ambos os objetos proibidos (o de Triunfal e o do mito clássico) trazem, com a sua descoberta, um universo de infortúnios atenuado por algo positivo que traz à humanidade um motivo para os suportar.

Por último, Triunfal e o mito da Caixa de Pandora convergem na representação da mulher como veículo da tentação e da ruína. Eva é caracterizada por Aquilino como “um lambisco de primeira”, “curiosa”, “sagaz”, “tentadora e subtil”. É ela que insiste que deus revele aquilo que ela e Adão estão proibidos de descobrir, e ela que enceta a atividade sexual, “Rolando-se enervada e brincalhona” e pedindo a Adão que lhe faça “como as serpentes e como a nuvem”. Adão, por seu lado, é representado como um ser submisso, “cabeçudo” e, portanto, inocente no que toca à violação das ordens divinas. Isto reflete-se, aliás, na escolha de palavras de Aquilino na descrição do ato sexual: enquanto Eva “descaiu sobre nosso pai” e “tentou enlaçar-se” nos seus braços, Adão começou por “estir[ar] a perna num esticão nervoso” e, por fim, “acedeu”. O Génesis tornou-se numa lente através da qual a sociedade europeia construiu as noções de papéis de género, O homem, racional, opõe-se à mulher, irracional e, por isso, inferior, culpável e perigosa na sua sedução. O mesmo acontece com Pandora, por vezes percecionada como a antecessora de Eva nas histórias de mulheres cuja curiosidade levou a melhor e condenou a humanidade ao sofrimento. Pandora, enquanto produto de uma trama divina com o fim de seduzir os homens e detentora de todos os dons, partilha com Eva o seu poder de enfeitiçar os pobres homens, cujo poder da razão nada pode fazer para resistir às suas artimanhas do plano sexual. Separa-as o nível de envolvimento dos seus pares masculinos no desencadeamento das consequências da sua curiosidade. Se, em Triunfal, o fruto proibido é o próprio ato sexual, de que necessariamente homem e mulher fazem parte, a afronta aos deuses de Pandora é feita sem mais intervenientes, ainda que os males por ela libertados afetem toda a humanidade.

Eva e Pandora, ambas a primeira mulher no mundo e criadas após o homem nas mitologias a que pertencem, são o epítome da figura feminina vencida pela curiosidade que destrói o mundo perfeito que os homens anteriores a elas conheciam. Apesar de a sociedade atual se ter vindo a distanciar dos dogmas religiosos, a preponderância da Igreja Católica europeia ao longo dos séculos e a herança greco-latina na Europa levaram a que histórias basilares como estas se tenham entranhado na mentalidade dos cidadãos. A mulher enquanto culpada pela ruína da humanidade metamorfoseou-se pelo discurso misógino numa criatura menos capaz, menos merecedora de oportunidades e menos preparada para gerir emoções e responsabilidades. Eva, mãe da humanidade, deve, na forma das mulheres de hoje, cumprir o seu “papel de mãe”. Pandora, símbolo da curiosidade irrefreável, deve agora saber controlar-se, não fazer perguntas e não ambicionar a mais do que o seu parceiro. É curioso que a emergência do discurso revivalista do patriarcado orgulhoso coincida com um período em que o estudo das humanidades em geral, e do estudo dos clássicos em particular, é desvalorizado e menosprezado em detrimento das valências científicas, e dificilmente poderá ser visto como uma coincidência.

Em suma, Triunfal de Aquilino estabelece um diálogo claro com o mito da Caixa de Pandora. Em ambas as histórias, as personagens estão sob o poder incontestável de uma divindade atemorizante e vingativa; ambas têm como tema central o conflito entre a curiosidade e a ordem divina, corporizada num objeto (que, em Triunfal, se revela um ato) cuja violação resulta num grande mal, compensado por um pequeno, mas poderoso bem; ambas colocam o fardo da responsabilidade pela desgraça na figura feminina, que em ambas é famosa pela sua sensualidade e astúcia. Ambas, enfim, são parte da herança cultural europeia e manifestação primária do estatuto desigual dos sexos, em relação ao qual ainda há muito a fazer.

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04
Jul24

"Triunfal", de Aquilino Ribeiro, e a Ilha dos Amores Camoniana

Helena

No seu conto Triunfal, Aquilino Ribeiro reconta o episódio genesíaco do pecado original, distanciando-se do texto bíblico ao transformar o momento em que Eva morde o fruto proibido na descoberta da sexualidade. O pendor sensual de Triunfal está intimamente ligado à descrição dos elementos da natureza que rodeiam as suas personagens, um espaço mítico erotizado que em muito se assemelha à Ilha dos Amores camoniana. Proponho-me, portanto, estabelecer um paralelo entre Triunfal e o episódio da Ilha dos Amores d’ Os Lusíadas, no que se refere à representação da natureza e da figura feminina que a povoa.

Aquilino parte do ideal católico do Jardim do Paraíso para a descrição do universo de perfeita harmonia em que habitam Adão e Eva. Contudo, a sua propensão para a filosofia do carpe diem e para a fruição dos prazeres terrenos leva-o a explorar o cenário genesíaco através de uma lente sensual. Assim sendo, o lugar onde Adão e Eva viviam “na plenitude de um gozo inapreciável” e onde “tudo era admirável” evolui para um cenário catalisador do ato sexual, o que, na reinterpretação de Aquilino, constituía o próprio pecado original. A natureza impele Adão e Eva para a descoberta do prazer carnal, sendo, portanto, um veículo para a glorificação do “Eros somatizado” que é central ao conto. Imediatamente antes de dar início à secção do clímax de Triunfal, Aquilino estabelece um ambiente que precede a sucessão de elementos eróticos que culminam na descoberta do “pomo proibido”: "Os animais (…) enlanguesciam em sonâmbula lassitude; já duas gazelas, na orla do Ribeiro, se perseguiam, arrifando. Agastadas, as flores caíam para a Terra, e no ar o pólen e os aromas (...) rebatiam-se sobre o solo”. A própria Eva enuncia o papel da natureza na facilitação do ato sexual quando refere que ela e Adão estão “enredados em hera” . É de realçar a escolha da hera como planta que envolve os pais da humanidade, tendo em conta que conota fertilidade, conexão e erotismo. À medida que a intimidade entre Adão e Eva avança, salienta-se na natureza que os rodeia “aquela languidez; os bichos a arfar; o colapso das rosas; o estado de sideração do Jardim todo”. É, aliás, a imitação da natureza sensual que Eva pede a Adão imediatamente antes da consumação do pecado original, na versão de Aquilino: “Faze-me como as serpentes e como a nuvem”. Pode, portanto, concluir-se que a natureza é quase uma personagem em Triunfal, dada a sua ação catalisadora da descoberta da sexualidade pelos habitantes humanos do Éden, diretamente influenciados pelos seus elementos imbuídos de sensualidade.

Também a Ilha dos Amores (canto X d’ Os Lusíadas) está repleta de elementos naturais que prenunciam o caráter erótico da última paragem dos navegadores portugueses antes do seu regresso a Portugal. Vénus, adjuvante dos Lusitanos, cria esta ilha como recompensa pela coragem e pelo esforço que os portugueses demonstraram nas suas conquistas. Não são, contudo, apenas as belas ninfas com que Vénus povoa a Ilha o único elemento de sedução que os navegadores lá encontram. A elas junta-se uma conjuntura favorável à emergência do desejo sexual: “Na fermosa Ilha, alegre e deleitosa / Claras fontes e límpidas moravam / Do cume, que a verdura tem viçosa; / Por entre pedras alvas se deriva / A sonorosa linfa fugitiva”. A “fonte” e a “linfa”, aliadas à “verdura (…) viçosa”, remetem para as ideias de fertilidade e vitalidade, que encontram continuidade na descrição de árvores de fruto: “Mil árvores estão ao céu subindo, / Com pomos odoríferos e belos; / A laranjeira tem no fruto lindo / A cor que Dafne tinha nos cabelos. / Encosta-se ao chão, que está caindo, / A cidreira cos pesos amarelos; / Os fermosos limões ali, cheirando, / Estão virgínias tetas imitando”. Esta sequência, rica em sensações visuais e olfativas, estabelece uma relação clara com o ato sexual, particularmente da perspetiva estereotípica masculina: a mulher, prostrada como a cidreira, nua, com os seios semelhantes aos limões descritos por Camões como um elemento de forte apelo sexual. Assim, tal como em Triunfal, a natureza é descrita como uma entidade que favorece a propensão sensual das personagens da narrativa. Tal como o cenário que os envolve impele Adão e Eva à descoberta do prazer carnal em Triunfal, também n’ Os Lusíadas os navegadores portugueses são convidados a desfrutar dele, não só pelas ninfas belas e sedutoras, mas também pelos elementos naturais que põem em destaque o caráter sensual de toda a Ilha dos Amores.

A mulher é, em ambos os textos, representada como um objeto do desejo sexual masculino. Em Triunfal, Eva, um “lambisco de primeira”, emprega os seus poderes de sedução para levar Adão a cometer com ela o pecado original. Adão, inicialmente, “estirou a perna num esticão nervoso”, mas, por fim, “acedeu”, cedendo à insistência da “tentadora e subtil” mulher. N’ Os Lusíadas, as ninfas colocadas na Ilha dos Amores propositadamente para seduzir os navegadores portugueses também possuem a irresistibilidade da figura feminina talhada para satisfazer o homem. Com efeito, Vénus ordenara-lhes “Que andassem pelos campos espalhadas, / Que, vista dos barões a presa incerta, / Se fizessem primeiro desejadas. / Alguas, que na forma descoberta / Do belo corpo estavam confiadas, / Posta a artificiosa formosura, / Nuas lavar se deixam na água pura.” Eva e as ninfas são a tentação personificada, o recetáculo do homem que elas próprias atraem com sagacidade. No entanto, o seu estatuto enquanto figura feminina que habita um universo povoado por homens não é o mesmo. Eva, em Triunfal, é o veículo do pecado, a incitadora à desobediência e a culpada pela ruína da humanidade. A mulher genesíaca que Aquilino retoma é quem desencadeia o primeiro grande castigo da raça humana: a expulsão do Paraíso e a consequente vida num mundo de “flagelos… ódio, ciúme, angústia… guerra…”. Aquilino atenua a carga pejorativa da figura de Eva através de um final que ressalva as possibilidades que por ela foram abertas aos Homens: o prazer carnal e a vivência plena do amor, que é “tudo”. Ainda assim, e contrariamente ao submisso e inocente Adão, Eva continua a ser aquela que trouxe o pecado, e com ele todas as angústias da existência, à espécie humana. Por seu lado, as ninfas da Ilha dos Amores, desprovidas de más intenções e não acarretando terríveis consequências para o futuro da humanidade, são apresentadas como um prémio para uma fruição plena dos prazeres terrenos. Enquanto a sedução de Eva é contrária às ordens divinas, a das ninfas corresponde ao cumprimento escrupuloso das instruções de uma divindade. Eva, transgressora, contrasta com as ninfas, ofertas benignas. O ato sexual, o terrível pomo proibido de Triunfal, encontra uma valorização positiva n’Os Lusíadas – os deuses não só o toleram, como o incentivam. Em suma, em ambas as obras, a figura da mulher é dotada de um forte traço sensual, mas este resulta em consequências diferentes para a sua perceção no que toca ao estigma da culpa. Eva, a primeira mulher, estabelecerá o precedente para a condição inferior da mulher nas sociedades influenciadas pela leitura do Génesis, enquanto ser incapaz de resistir à tentação, de controlar emoções e de gerir responsabilidades. As ninfas da Ilha dos Amores, desprovidas de poder e de personalidade, não carregam o fardo da culpa da queda da raça humana, embora também contribuam para a conceção misógina da mulher enquanto recetáculo incondicional e alegre do desejo do homem.

Conclui-se, portanto, que, embora pertençam a épocas de produção literária distintas e consistam em narrativas muito diferentes, Triunfal e o episódio da Ilha dos Amores n’ Os Lusíadas se tocam em aspetos que envolvem a representação da natureza e da figura feminina. Em ambos os textos, o cenário natural em que as personagens se movimentam é fundamental para o estabelecimento de um ambiente propenso à atividade sexual, recorrendo-se, por vezes, ao simbolismo. Também em ambos a mulher é representada como um ser fundamentalmente sensual, embora, em Triunfal, seja atribuído à mulher o fardo da culpa da ruína da humanidade, enquanto as ninfas preservam o estatuto de prémio providenciado pelos deuses – “O prémio, lá no fim, bem merecido”.

21
Jun24

"As Vinhas da Ira" - John Steibeck

Helena

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Após ter sido deixado em liberdade condicional por bom comportamento, Tom Joad apanha boleia até junto da sua família, no Oklahoma. Pelo caminho, encontra Casey, um antigo pregador, amigo da família, que o ajuda a chegar junto dos seus. Quando os encontram, eles estão em preparativos para partir para a Califórnia. A “Dust Bowl” instalara-se nos céus dos estados do Sul, uma tempestade de poeira prolongada, causada pela exploração exaustiva dos solos, que dizimara as colheitas e afetara drasticamente a qualidade do ar. Grandes empresas apoderam-se das terras dos agricultores e substituem a mão de obra humana para a sua exploração por tratores. Da Califórnia chegavam panfletos a anunciar a necessidade de trabalhadores, com ilustrações que deixavam adivinhar uma região paradisíaca, repleta de árvores de fruto e de oportunidades para se enriquecer.

Contudo, à medida que percorrem a Rota 66, os Joads vão-se apercebendo de que a vida a oeste não é o prometido pelos panfletos. Caravanas de camiões enchem as estradas na mesma direção que eles, e todos vão em busca de trabalho. Trabalho esse que, segundo os relatos de quem viaja em direção contrária, é escasso e mal pago.

Determinados a descobrir por si próprios e sem lugar para onde voltar, os Joads persistem na sua viagem até ao fim. Pelo caminho, param em acampamentos de migrantes que a polícia insiste em dispersar e em infraestruturas do governo sem qualquer oferta de trabalho na área envolvente, ganham alguns companheiros de viagem e perdem outros, debatem-se com a fome e com a escassez. Chegados à Califórnia, encontram postos de trabalho sazonais que empregam muitos trabalhadores por muito pouco dinheiro, já que a resposta aos anúncios de emprego suprira as necessidades, e que aquilo que um se recusaria a ganhar é aceite por outro mais desesperado e faminto. Em circunstâncias em que parece ser cada um por si, começam a manifestar-se os primeiros movimentos grevistas, logo reprimidos violentamente pela polícia. Os Joads, inocentes, humildes, com duas crianças e uma mulher grávida na família, tentam, como tantos outros na mesma situação que eles, sobreviver.

“Talvez, pensei eu, seja melhor amar todos os homens e todas as mulheres; talvez que o Espírito Santo seja apenas o espírito humano. Talvez que todos os homens tenham em conjunto uma única alma grande de que toda a gente faz parte.”

As Vinhas da Ira destaca-se no panorama da literatura americana pela forma como desafia a mentalidade individualista que uma sociedade fundada no capitalismo liberal como a americana estabeleceu como dogma. O percurso de Tom, a personagem principal desta narrativa e o novo chefe da família deslocada, é marcado pela tomada de consciência de que a conquista de condições de trabalho dignas tem de passar pela união dos trabalhadores famintos e insatisfeitos. As personagens desta narrativa são vítimas do ideal americano da produção fácil de riqueza, que, na realidade, apenas assiste a uma mão-cheia de oportunistas que vivem em paz com a exploração de multidões afundadas na precariedade. Casey, de forma mais dramática, e os Joad, gradual mas inevitavelmente, morrem em defesa do seu direito de viver condignamente.

Steinbeck é célebre pelo simbolismo nas suas obras, em particular em pormenores d’As Vinhas da Ira. No nado morto de Rosa de Sharon, por exemplo, a teoria literária identifica uma referência ao bebé Moisés, lançado ao rio numa cesta, sendo que este bebé levaria a quem o encontrasse a mensagem da miséria em que viviam os trabalhadores chegados do Este. Já eu, vi  na gravidez de Rosa de Sharon a representação daqueles que nascem e crescem num labirinto de precariedade de que não conseguem escapar, geração após geração.

Tal como Ratos e Homens e A Pérola, As Vinhas da Ira é um romance notável pela sua sobriedade. Num registo despido de artifícios, límpido e severo, Steinbeck descreve a viagem de uma família, peripécia atrás de peripécia, desilusão atrás de desilusão, e cada uma delas é mais impactante e mais dura pela crueza do estilo com que são narradas. De facto, como é hábito em Steinbeck, este não é um romance reconfortante e animador, mas sim um lembrete da extensão da mesquinhez e da insensibilidade que a natureza humana pode alcançar. Poucos são os momentos de felicidade que o leitor pode partilhar com as personagens, tal é a sequência de infortúnios de que são alvo. Isto podia fazer com que este romance caísse naquilo a que hoje se chama “pornografia emocional”, livros em que as personagens são vítimas de uma quantidade irrealista de traumas, apenas com o objetivo de provocar sensações desconfortáveis no leitor. O mais perturbador de As Vinhas da Ira é o facto de não ser irrealista nem exagerado, mas sim uma ficção muito próxima da realidade de tantas famílias que deixaram, e ainda deixam, o lugar a que chamam “casa” para tentarem encontrar melhores condições de vida noutro sítio, e que só encontraram mais miséria e o rancor da população local.

Não se deixem, contudo, desencorajar pelo tom pessimista que serve de banda sonora a esta narrativa, já que, no final de contas, por entre as muitas dificuldades que os Joads enfrentam, há raios de esperança, personagens que fazem com que pareça possível que a verdadeira natureza humana seja ser bom e que há sempre quem esteja disposto a ajudar o próximo em momentos de aperto. As Vinhas da Ira ganhou o Prémio Pulitzer em 1940. É revoltante, é chocante, é tocante, é assombroso. Se eu também tivesse estado no júri, também teria votado nele.

 

03
Mai24

“Bichos” – Miguel Torga

Helena

Bichos é uma coletânea de quinze contos, cada um com um “bicho” como protagonista. Em pouco mais de meia dúzia de páginas, conta-se a história de um cão de caça velho que recorda o seu passado, a de um gato mimado que tenta regressar à sua natureza vadia, a de uma mulher que tenta desesperadamente chegar à aldeia vizinha para dar à luz, a de um burro abnegado que se vê rodeado por uma alcateia quando carregava o dono, a de um sapo que ensinou um homem a conectar-se com a Natureza, a de um galo que foi poupado à panela para criação, a de um menino que trepou a uma árvore para alcançar um ninho, a de uma cigarra que gostava tanto de cantar que negligenciou a preparação para o inverno, a de um pardal que conhece os melhores meios para se alimentar durante todo o ano, a de um pastor que perde uma ovelha, a de um melro que observa cinicamente as preocupações das moças, a de um touro que tenta, a todo o custo, virar o jogo contra os toureiros, a de um senhor que coleciona insetos e a de um corvo que se rebelou contra a vontade de Deus.

"Era um bicho. Um inofensivo bicho, igual aos milhares que tinha no escritório embalsamados."

Três destes “bichos” são seres humanos, mas a sua presença não destoa do tom global do livro, já que Torga traz ao de cima a sua face mais animalesca. Em contrapartida, é conferida aos animais uma sensibilidade muito humana. Mais importante do que isso, é-lhes dada uma voz, e com ela o direito de serem ouvidos e considerados como seres vivos sencientes, nossos iguais no que toca à condição de habitantes do planeta Terra. Conseguimos substituir o pardal sabichão de Ladino por um humano egoísta, assim como a grávida de Madalena por um animal selvagem em trabalho de parto.

Os meus contos preferidos foram Morgado e Miura. Estes foram, também, os contos que mais me perturbaram. O sofrimento animal contado em primeira pessoa atinge-nos e enterra-se como as lâminas dos toureiros no dorso de Miura. Funcionando como um espelho, em que o animal sente e pensa e o homem parece desprovido de emoções e poder da razão, somos confrontados com a chocante bestialidade humana – a insensibilidade e o sadismo que o abandono de um animal em condições perigosas e a exploração do sofrimento de outro para entretenimento, respetivamente, revelam.

Alguns leitores consideram que cada um destes contos é uma representação de um tipo social da época da ditadura de Salazar. Na minha opinião, são representações de tipos sociais que se podem encaixar em qualquer época. Daí considerar esta leitura tão pertinente para todas as alturas, e invariavelmente eficaz no reforço da consciência de cada um enquanto cidadão do mundo.

30
Abr24

“História de um homem comum” – George Orwell

Helena

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George Bowling, o protagonista do História de um homem comum, também publicado sob o título Emergir para respirar, é um homem de quarenta anos que vive nos subúrbios de Londres com a mulher e os filhos, e que ganha a vida trabalhando numa agência de seguros. Saturado da rotina e da sua família barulhenta, Bowling decide usar o pouco dinheiro que conseguiu guardar longe da vista da mulher numa viagem curta e revitalizadora a Lower Binfield, a sua querida terra natal.

Através de uma analepse, ficamos a conhecer um pouco da infância de Bowling, antes da Primeira Guerra Mundial, e dos episódios a que regressa com mais felicidade nas suas recordações (principalmente, dos que se relacionam com a sua paixão pela pesca). Essa é a Lower Binflield a que Bowling deseja regressar, e assim escapar ao mundo industrializado, regimentado e à beira de uma inevitável Segunda Guerra Mundial, que o rodeia em Londres. No entanto, quando finalmente se decide a levar a cabo os seus planos, a Lower Binfield que encontra não é aquela que lhe provia a sua memória de há vinte e cinco anos…

“Pensando bem, neste momento não deve haver, em toda a Inglaterra, uma única janela de onde alguém esteja a disparar uma metralhadora.

Mas, e daqui a cinco anos? Ou dois anos? Ou um ano?”

Apesar de, geralmente, preferir a não-ficção de Orwell às suas obras de ficção, História de um homem comum foi uma leitura muito agradável. Para além de ser mais fácil para o leitor embrenhar-se nesta história do que no mundo distópico de 1984, Orwell triunfa invariavelmente na transmissão das suas convicções sociopolíticas através de personagens imaginárias. A indignação intermitente de George Bowling com o estado da sociedade em que vive, atenuada pela pesada inércia que prende os trabalhadores ao ganha-pão quotidiano, é uma manifestação de todos os George Bowlings que, apanhados numa conjuntura (inter)nacional pouco promissora, numa vida familiar aborrecida e num emprego mediano, veem no fascismo uma inevitabilidade que, embora incómoda, passará ao lado dos trabalhadores mais insignificantes do sistema. Bowling fica perturbado com a passagem de bombardeiros pelo céu de Londres, mas não partilha da urgência dos representantes dos movimentos antifascistas que dão palestras em reuniões de bairro. Nos pensamentos de Bowling que passam para a página encontramos não só uma recusa à resistência ativa, mas também uma pista para aquilo que Orwell sempre teve preocupação em sublinhar: o extremismo é tão nocivo quando tem origem à direita como à esquerda do espectro político.

À parte a leitura política que se possa fazer deste romance, A história de um homem comum espelha o modo de vida dos trabalhadores da sociedade capitalista em que ainda vivemos, presos no seu emprego desinteressante e maquinal e na sua família barulhenta e esgotante. É, ainda, um testemunho do desejo que reside em cada um de regressar ao espaço e ao tempo onde outrora se foi feliz, e da desilusão que acompanha a desgostosa tomada de consciência da desapiedada passagem do tempo.

Orwell escreveu o História de um homem comum em Marrocos, enquanto recuperava de ferimentos que sofrera na Guerra Civil Espanhola. Assim, percorre este livro um sentimento pessimista relativamente a conflitos armados, que devemos interpretar como um apelo à adoção de uma atitude oposta à de Bowling: baixar os braços face à aproximação da guerra não resolverá conflitos do presente nem do futuro. Apesar de ser uma obra menos célebre do autor, recomendo a leitura deste livro enquanto prova da sua versatilidade e da sua perspetiva sobre a condição humana, que viria a agudizar-se ao longo da sua carreira literária.

28
Mar24

“A Letra Escarlate” – Nathaliel Hawthorne

Helena

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Na Boston puritana do século XVII, uma mulher sobe ao cadafalso com uma criança nos braços. Sobre o seu peito, sobressai a letra A bordada a vermelho. Hester Pryne, a mulher no cadafalso, foi condenada a usar a letra escarlate no seio e, em consequência, ao opróbrio da sociedade, por ter cometido o pecado do adultério. Recusando-se a revelar o homem que teria sido cúmplice da sua perversão, Hester entrega-se a uma vida isolada dos olhares de desdém dos seus vizinhos.

À situação difícil que o pecado de Hester a tinha votado junta-se a chegada do seu marido, que ficara em Inglaterra quando ela partira para o Novo Mundo e que ela já julgava morto. Desonrado pelo adultério de Hester, o seu marido adota outro nome (Roger Chillingworth), oculta o seu casamento e faz com ela uma chantagem emocional – se ela revelasse a sua verdadeira identidade, ele revelaria a do seu cúmplice pecador.

Inicia-se, assim, uma vida de tormento para Hester Pryne: malvista pelos seus pares, questionada pela sua filha acerca da letra que traz ao peito e obrigada a testemunhar a angústia crescente do homem que com ela pecou – motivada, grandemente, pelo pérfido Roger Chillingworth...

“Não há estrada por onde saiamos deste triste labirinto.”

Este é um livro sobre o pecado, em particular sobre a demonização de que são vítimas aqueles acusados de pecar. Hester Pryne, pecadora por se ter deixado levar por uma afeição externa ao seu casamento, vê-se obrigada a passar o resto da sua vida isolada num casebre afastado do centro de Boston, sem se relacionar com os restantes habitantes e condenando à mesma vida triste a filha que resultou da união adúltera. Sabemos que Hester é uma mulher dotada, hábil na costura, humilde e sempre disponível para apoiar aqueles que precisam. Apesar disso, o seu caráter é demonizado pelos habitantes conservadores da aldeia, puritanos vindos da Europa para construir uma sociedade adequada aos seus valores do outro lado do Atlântico. Assim, A Letra Escarlate é não só um relato pungente da vida de uma pecadora no seio de uma comunidade de religiosidade extrema, como uma crítica à mentalidade puritana contraditória que fez da vida de Hester Pryne uma estrada de solidão e desconsolo. Saídos do Reino Unido em busca de um ambiente mais tolerante para poderem praticar a sua fé, os puritanos acabaram por se tornar uma comunidade intolerante, sendo Hester uma vítima da rigidez dos códigos morais e religiosos por que se regiam.

A tradução desta edição d’A Letra Escarlate (Relógio d’Água, 2017) foi feita por Fernando Pessoa, e não tenho nada a apontar nela. Apesar de não ter lido a versão original deste livro, já li alguns contos de Hawthorne em inglês, pelo que me parece que a cadência da narração e o leque de vocabulário escolhidos coincidirão com aquilo que o autor pretendia concretizar na versão inglesa. Tendo gostado do enredo e apreciado a qualidade da tradução, foi o estilo da narração que acabou por não me cativar e que fez com que a minha impressão geral do livro não fosse a mais positiva. Ainda não encontrei o livro de um autor romântico que me vai fazer começar a deleitar-me com este género.

Posto isto, enquanto clássico das literaturas americana e mundial, A Letra Escarlate é um livro que vale a pena acrescentar à biblioteca pessoal de qualquer um. É especialmente interessante enquanto leitura complementar d’As bruxas de Salem, de Miller, cuja ação decorre no mesmo período, no coração de uma povoação dominada pelo mesmo espartilho puritano que serve de pilar a este romance.

23
Mar24

“O Processo” – Franz Kafka

Helena

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Joseph K., gerente de um banco, acorda numa manhã da sua vida pacata para se deparar com a visita de membros do aparelho judicial, que lhe comunicam que se encontra envolvido num novo e complexo processo. Apesar de não o prenderem, deixam K. num estado psicológico de prisão perpétua, já que não conhece a natureza do seu processo, nem os seus responsáveis na Justiça, nem o motivo de estar envolvido nele.

Ao longo de 190 páginas, Joseph K. tenta em vão clarificar o seu processo judicial e provar a sua inocência – algo praticamente impossível, dado não se conhecer aquilo de que o consideram culpado. Quase “atirado” de um lado para o outro pelas exigências da irracional Justiça, K. vai-se movimentando naquele que se revela o universo corrupto, incompreensível e contraditório dos processos judiciais. No final de contas, lutar contra a sua sentença ou aceitá-la passivamente parecem levá-lo ao mesmo resultado desolador de uma condenação sem fundamento.

«Mas eu não sou culpado», respondeu K., «é um erro. E, por falarmos nisso, como é que um homem pode ser considerado culpado? Somos todos homens, tanto uns como outros.»

Através da história bizarra de Joseph K, Kafka leva-nos a refletir acerca do funcionamento das instituições fundamentais da sociedade ocidental – especialmente, acerca da completa ausência de sentido prático que as caracteriza. Apesar de as autoridades comunicarem a K., no início do seu processo, que ele não vai ser preso, o que efetivamente acontece é uma prisão alargada a toda a existência do arguido. O processo entranha-se na vida de K., tanto pela incógnita em que consiste a acusação que o envolveu, como pela ininteligibilidade do seu desenrolar. Por mais que K. tente intervir para acelerar o decorrer dos acontecimentos, tudo o que ele se dispõe a fazer é irrelevante ou nocivo para o seu estatuto de acusado. A impossibilidade de se sair vitorioso de uma batalha com as instituições é resumida pelo pintor com que K. se encontra para tentar encontrar uma solução: um caso só pode ser resolvido através de uma absolvição definitiva, de uma absolvição aparente ou de um adiamento indefinido. A primeira nunca ocorre, a segunda conta com uma absolvição ratificada pelo juiz, mas não pelo Supremo Tribunal (o que leva a que seja possível que o processo seja recuperado e recomeçado a qualquer momento), e o terceiro, que consiste em evitar que o processo passe das primeiras fases, exige visitas constantes ao juiz e uma vigilância permanente da situação do acusado. Em suma, um acusado está inevitavelmente condenado a uma vida de instabilidade e preocupação, afundado em burocracia que não consegue entender.

O próprio recurso aos conhecimentos do pintor constitui parte da crítica à rede de influências que permeia o funcionamento das instituições. Só com o recurso a pessoas com ligações mais ou menos lícitas ao sistema judicial consegue fazer algum progresso (ainda que apenas aparente e insatisfatório) no decorrer do seu processo.

Um aspeto que captou particularmente a minha atenção foi a ubiquidade do sistema judicial, materializada pela existência de escritórios do tribunal em sótãos de zonas residenciais. Assim como as vidas dos residentes se encontram permanentemente debaixo de extensões do aparelho judicial, literalmente, também as vidas dos cidadãos estão condenadas a desenrolar-se sob a inexorável burocracia segundo a qual, bem ou mal, nos regemos.

A minha experiência de leitura d’O Processo foi surpreendentemente positiva. Acabei por gostar muito mais deste livro do que do célebre A Metamorfose, talvez por tê-lo lido numa fase da vida em que consigo compreender melhor o que realmente está em causa numa história aparentemente sem sentido, ou por ter uma mensagem crítica mais fácil de destrinçar. Este pode ser, no fundo, um livro sobre a falta de sentido da vida, e sobre como não importa o que façamos para tentar compreendê-la ou combater o seu rumo. Recomendo esta leitura a toda a gente.

04
Mar24

“Breasts and Eggs” – Mieko Kawakami

Helena

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Este livro está dividido em duas partes: na primeira, Natsuko, a personagem principal, recebe a sua irmã, Makiko, e a sua sobrinha, Midoriko, em sua casa, em Tóquio. Para além de a dinâmica entre Makiko e Midoriko estar nitidamente em crise, já que Midoriko se recusa a dirigir qualquer palavra à progenitora, Makiko vive obcecada com o seu corpo imperfeito e com os implantes mamários que tenciona fazer num futuro próximo. Na segunda parte, anos depois, Natsuko é já uma autora publicada, numa crise de inspiração para o seu próximo livro, e desejosa de completar a sua vida com a presença de um filho. Mas Natsuko é uma mulher solteira, pelo que teria de recorrer à inseminação artificial e a um dador de sémen, e ter um filho nessas circunstâncias ainda é um fenómeno rodeado de estigma na sociedade japonesa. Como se isso não bastasse, a sua investigação em relação ao processo de doação leva-a a entrar em contacto com uma comunidade de pessoas unidas pela sua condição de filhos gerados por intervenção externa. As histórias de vida de algumas das testemunhas, as conversas com aqueles que a rodeiam e a pesquisa que aprofunda fazem-na pensar e repensar a validade dos seus desejos. Afinal, a ninguém foi pedida permissão para nascer…

Breasts and Eggs traz para cima da mesa tópicos de discussão muito pertinentes acerca do lugar do corpo da mulher na sociedade, especialmente na japonesa. A ansiedade de Makiko ao querer corresponder a um ideal que não consegue atingir sem intervenções estéticas, a perturbação de Midoriko face às mudanças que o seu corpo, e o das suas colegas, atravessa na puberdade, e a consciência de Natsuko da reprovação geral de que seria alvo uma grávida solteira são alguns dos problemas que poderiam derivar, num debate, em trocas de ideias acerca dos fatores socioeconómicos que podem estar envolvidos no recurso a cirurgias plásticas, da procura de um sentimento de pertença num corpo que nos é estranho, e da (as)sexualidade da mulher. Nesse sentido, este é um livro provocador no âmbito do feminismo, da crítica social, da exposição da precariedade económica e da educação sexual. Põe, ainda, em causa a moralidade da escolha de ter filhos, por todo o sofrimento não-autorizado a que se sujeita o fruto da vontade egoísta dos progenitores.

Apesar de reconhecer o interesse que reside no tratamento literário dos temas referidos acima, Breasts and Eggs acabou por não ser concretizado da maneira que eu consideraria mais lógica e coerente. Isto deve-se ao facto de a primeira parte parecer um projeto de uma história quase totalmente independente da segunda parte do romance. O tópico da insatisfação de uma mulher com o seu próprio corpo, inspirada pelos ideais irrealistas que absorveu da sociedade, é circunscrito à primeira parte, assim como as entradas (interessantes e ricas) do diário de Midoriko, em que ela se debate com o seu processo de crescimento. Em comparação com esta primeira secção, a segunda ficou aquém daquilo que gostava que tivesse sido. Longas conversas sobre a maternidade e acontecimentos sem grande importância para a questão central da ação preenchem o espaço que podia ter sido preenchido com peripécias mais relevantes, ou simplesmente eliminado. “Breasts”, em suma, era uma linha narrativa mais promissora e cativante do que “Eggs” se revelou.

Assim, apesar de ter sido uma leitura fácil e fluida, com reflexões interessantes sobre a relação de uma mulher com o seu próprio corpo e a ética da maternidade, Breasts ans Eggs não me deixou fascinada. Pode ser que outro livro de Kawakami me conquiste.

02
Mar24

“Sei porque canta o pássaro na gaiola” – Maya Angelou

Helena

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Sei porque canta o pássaro na gaiola é um memoir da autoria de Maya Angelou, no qual ela recua até à sua infância em Stamps e partilha a sua experiência de crescimento no sul dos Estados Unidos da América, enquanto menina negra entregue aos cuidados da sua avó.

Nas profundezas do Arkansas, a pequena Marguerite (Maya) familiariza-se desde cedo com a precariedade do trabalho da população negra nas plantações de algodão. Todas as manhãs, os trabalhadores chegavam à loja da sua avó para comprar o farnel do meio-dia e, todas as noites, regressavam de rastos, tanto por causa do trabalho pesado como pela certeza de que este nunca seria suficiente para cobrir as necessidades de uma vida digna.

A casa da avó, onde estão relativamente a salvo da dureza da vida lá fora, não pode proteger para sempre Marguerite e Bailey, o seu irmão mais velho e melhor amigo. À consciência crescente da irracionalidade do ódio que a população branca sente por eles aliar-se-á uma consciência aguda da ausência dos seus progenitores, especialmente depois de serem visitados pelo pai, em Stamps, e visitado a mãe, em St. Louis. Símbolos de uma vida diferente e livre fora dos limites de Stamps, os seus pais tornam-se também símbolos da ascensão social, da instabilidade e do trauma – de facto, é durante a sua estadia com a mãe que Marguerite é assediada e violada pelo seu padrasto, algo que a marca profundamente com um indelével sentimento de culpa.

A narrativa segue pelos anos de amadurecimento dos irmãos, e com ele a sua individualização. É a altura de Marguerite perceber em que medida aquilo em que se quer tornar é condicionado pelo seu passado, pela sua cor de pele e pelas suas decisões de todos os dias.

“As pessoas iam ficar tão espantadas no dia em que eu acordasse do meu sonho negro e feio, e em que o meu verdadeiro cabelo, que era comprido e louro, tomasse o lugar da carapinha que a Mãezinha não me deixava alisar!”

Sei porque canta o pássaro na gaiola provocou em mim aquilo que habitualmente me provoca o género literário do memoir: uma necessidade constante de me relembrar de que aquilo que estou a ler não é um produto de ficção. Tudo é real: o desconforto de Marguerite face aos comentários das crianças brancas sobre a sua avó; o seu amor por Bailey; a sua admiração por Mrs. Flowers, um ícone da emancipação feminina que se destacava no panorama conservador da sua vida em Stamps. Maya Angelou eterniza neste livro a violência da vida negra na América nos anos 30 e 40 do século passado, através do olhar límpido e inocente de uma criança que vai descobrindo o mundo em que vive.

Aquilo que mais me marcou nesta leitura foi a brutalidade da culpa que Marguerite carregou dentro de si durante o seu crescimento, fruto de um evento traumático que, enquanto criança, não tinha ferramentas para compreender nem processar. A tradição religiosa que dominou grande parte da sua infância, juntamente com a relação intermitente que mantinha com os pais, levaram Marguerite a interpretar a sua violação, e as consequências desta, como algo que a tornava indigna de afeto, abandonada pelo deus que venerava. O abuso da inocência de uma criança que ainda não conhece a barreira que separa o carinho do abuso é revoltante, e é-o mais ainda a chantagem emocional com que o abusador tenta silenciá-la.

Assim, Sei porque canta o pássaro na gaiola é uma leitura inspiradora, um testemunho de uma vida marcada por reviravoltas, altos e baixos, traumas e descobertas. Não deixa, no entanto, de ser um livro que aborda temas sensíveis, como a violação e o racismo, de uma forma bastante dura, pelo que não é um livro que recomende para quem procura beleza e conforto. Ainda assim, e porque só enfrentando um passado desagradável podemos construir um futuro mais justo, reitero a minha opinião de que esta é uma história de grande importância para aprendermos a ver a vida a partir dos olhos de outros.

18
Jan24

“O Judeu” – Bernardo Santareno

Helena

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O Judeu é um texto dramático sobre a vida de António José da Silva, um descendente de judeus que se vê encurralado pelo ódio irracional de todos os que o rodeiam, no período áureo da Inquisição portuguesa. Preso e torturado pelos inquisidores duas vezes, assim como Lourença, a sua mãe, e Leonor, a sua esposa, António é um exemplo da crença na importância da liberdade de pensar e representar criticamente um regime que se sabe corrupto e arcaico. No coração de uma sociedade em que os espiões pululavam em cada esquina, António dedicar-se-á à produção de peças teatrais satíricas que lhe trarão o reconhecimento do público e, até, a atenção do rei.

Este, por seu lado, estará entretido na preparação dos casamentos dos infantes e nas visitas às suas numerosas amantes. A magnanimidade do monarca, apreciador da visão mordaz de António, não será suficiente para livrar o acusado de judaísmo da fogueira em que morrerá como mártir pela justiça que não conseguiu encontrar nos cárceres da Inquisição.

Esta peça insere-se no ciclo épico das produções de Bernardo Santareno e, como tal, privilegia o comentário político e social em detrimento da valorização de uma génese trágica que encontramos nas obras do seu ciclo trágico. Tendo lido três peças pertencentes a este último ciclo, penso que o prefiro ao épico. O Judeu não se deu a uma leitura tão rápida e cativante como O Pecado de João Agonia ou O Crime da Aldeia Velha, em muito devido à sua forma e estilo. O facto de muitas das réplicas serem muito longas, em linguagem adaptada à época, e de conteúdo mais complexo abranda o ritmo da leitura. Isto é o oposto do que acontecia nas réplicas perspicazes e concentradas dos outros textos que li.

Ainda assim, é justo que este seja um dos textos mais célebres de Santareno, pela importância dos temas principais da peça e pela inteligência envolvida nos mecanismos da sua construção. Entretecidas nas réplicas das personagens encontram-se excertos de documentos reais, referentes ao caso particular que serve de base a esta peça e à globalidade do funcionamento da Inquisição em Portugal. Para além disso, O Judeu é também uma espécie de “matrioska” teatral, já que são reproduzidos excertos das peças levadas a palco por António José da Silva, textos críticos dentro de um texto crítico, alertando o leitor para o perigo em que ele próprio incorreria se a sua leitura de O Judeu tivesse lugar no período retratado.

A minha experiência de leitura foi curiosa, já que me tenho dedicado a ler outras obras, de não-ficção, acerca da Inquisição. Senti uma diferença substancial entre o impacto que teve em mim a descrição não ficcionada dos acontecimentos e o que teve a leitura de uma história (semi)ficcionada. Apesar de a ficção ocultar ou apenas roçar aspetos muito problemáticos e chocantes que a não-ficção explora em profundidade, é a vivacidade da primeira que torna, paradoxalmente, tudo mais real, mais impactante, mais revoltante, mais próximo de quem lê.

Achei, ainda, relevante a representação da exceção ao comportamento fanático da maioria das personagens por parte do 1º Inquisidor. Num período obscuro que é mais confortável para a contemporaneidade não revisitar, o 1º Inquisidor relembra-nos de que, mesmo sendo fruto do seu tempo, havia quem reconhecesse a falta de sentido, de ética e de humanidade envolvidos nos processos em tudo corrompidos da máquina inquisitorial.

Em suma, O Judeu é uma peça fundamental na paisagem da dramaturgia portuguesa cuja leitura é, no geral, uma experiência agradável que recomendo. Fica em espera a minha vontade crescente de o ver representado em palco, dada a importância da configuração do cenário em algumas cenas que, acredito, teriam um impacto ainda maior quando corporizadas.

 

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