Caeiro Apaixonado, ou a Sublimação da Natureza
Tu não me tiraste a Natureza...
Tu mudaste a Natureza...
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as coisas.
Bendita a doença que atingiu Alberto Caeiro e bendita a magnificação do real que é efeito secundário da paixão. Os nove poemas que compõem O Pastor Amoroso são a destilação da curva passional num espírito que era todo olhos, de súbito tornado olhos e coração.
A paisagem da poesia caeiriana já não é deserta - há alguém para além dos rebanhos de ovelhas e da visita ocasional do menino Jesus. Caeiro já não anda sozinho pelos campos, mas isso não o distrai. Em vez disso, é como se a sua visão se multiplicasse, como se o outro fosse uma extensão de si que o leva a uma Natureza que, agora, o penetra e o habita.
Até os princípios mais basilares da sua filosofia de vida se invertem, chegando o poeta a afirmar “Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar”. O pensamento, doença da vista, transforma-se em órgão de visão interior, instrumento da memória alegre e segura, já que lhe permite ver a sua amada, sem ter de enfrentar a sua presença - de que tem “qualquer medo”. Um "pensamento visível" fá-lo “andar mais depressa”, e isso já não é um impedimento à fruição completa e demorada do mundo: é um motor que o leva pelo mundo em direção ao que lhe confere sentido.
O poeta que, antes, desejava a inconsciência necessária para não conseguir dizer-se contente, declara, agora, “sou feliz”. O pastor amoroso existe por dentro e por fora, existe no mundo, no outro e em si, e sabe-se caleidoscópico face à variedade imprevisível do que o rodeia. Existe um passado que recorda e um futuro por que anseia, uma completude que o extravasa e uma ausência que sente presente. Existem, por momentos, Alberto Caeiro e o seu avesso.
Perde, por fim, o pastor amoroso o seu cajado, tresmalha-se o seu rebanho e não há mais no horizonte do que apenas a paisagem. Amar sem ser amado abate até os espíritos mais puros, e é de novo o sol que consola o poeta bucólico e lhe seca as lágrimas de quem regressa, solitário, aos seus antigos trilhos. “Porque não se é amado como se nasce mas como acontece”, Caeiro resigna-se e volta-se na direção do futuro, que é a mesma do seu passado, a da contemplação dos montes calmos que não possuem o poder de provocar esta cegueira que é o sentir. Não se apagará, contudo, da sua obra este êxtase, este florir de uma luz nova numa paisagem antes objetiva, este agudo aproximar dos contornos da metafísica.
O poeta combalido olhou, então, em volta
E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor, uma liberdade no peito.
