Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

H-orizontes

H-orizontes

17
Dez23

“Pequenos Delírios Domésticos” – Ana Margarida de Carvalho

Helena

Pequenos-Delitos-Domesticos.jpg

Esta compilação de contos da autoria de Ana Margarida de Carvalho é um conjunto de histórias sobre a (não) pertença, o conhecimento de nós próprios e do outro, a partida e o regresso, o trauma e a redenção. Treze contos e dois poemas levam-nos a universos mais ou menos verosímeis, povoados por personagens, na sua maioria, peculiares e misteriosas.

O enredo de cada história é singular, desde o regresso a casa de um membro de uma organização terrorista para ajudar um amigo de longa data a pôr em prática as suas intenções de suicídio, a uma viagem a uma ilha sem sol para a escrita do epitáfio de uma conhecida sua em estado terminal. As personagens evadem-se ou regressam a um tempo ou a um espaço com uma significação subjetiva pesada, rica, nostálgica, destrutiva.

“estes Europeus nunca hão de compreender que o mais importante nunca está no centro das fotos, mas nas periferias, ou até mesmo fora do retângulo.”

Iniciei esta leitura com expectativas baixas e um pouco a medo, já que a modalidade do conto não costuma cativar-me e que o estilo de Ana Margarida de Carvalho nem sempre consegue aproximar-se do que considero uma experiência de leitura agradável. No entanto, fui agradavelmente surpreendida com esta coletânea de contos que me manteve interessada do início ao fim, cada um com uma trama que a escrita intrincada da autora apenas enriquecia.

Os meus contos preferidos foram “Do inferno ninguém regressa”, sobre um idoso num lar para refugiados do Médio Oriente, pela forma como conjuga o tratamento da terceira idade e o de pessoas traumatizadas, e “A última ceia”, pelo conceito já por si curioso de uma família em que todos são gémeos, à exceção do que partilhou o útero com um irmão que morreu à nascença. Fascinou-me, ainda, a atualidade do “Eremitério de boas intenções”, sobre o conflito entre duas famílias motivado pela cisão ancestral entre palestinianos e israelitas, prova de que a literatura é uma cápsula de intemporalidade.

Assim, “Pequenos Delírios Domésticos” conquistou meritoriamente um lugar no meu pódio de obras de Ana Margarida de Carvalho, juntamente com “Que Importa A Fúria do Mar” e “Não Se Pode Morar Nos Olhos De Um Gato”.

15
Dez23

“O Crime da Aldeia Velha” – Bernardo Santareno

Helena

prodLIV9789898872005-700x700.jpg

Esta peça de teatro baseia-se em factos reais que ocorreram na aldeia de Soalhães, em 1934. Uma jovem, acusada de práticas de bruxaria, foi queimada viva pela população local, razão pela qual a aldeia ficou conhecida como “Terra do Mata e Queima”.

Em “O Crime da Aldeia Velha”, acompanhamos o desenrolar do drama de Joana, uma rapariga bela que atrai os amores dos rapazes da aldeia e se diverte a manipulá-los. A desconfiança dos habitantes da terra, de que já antes fora alvo a sua mãe, é exacerbada pela morte de dois jovens, numa luta decorrente das provocações de Joana. Depois da morte de um bebé que se seguiu ao seu contacto com Joana e da alteração drástica de comportamentos de mais um rapaz apaixonado por ela, os burburinhos acerca do demónio que a teria possuído sobem de tom. A própria Joana começa a acreditar que traz o diabo no corpo, ainda que o pároco local insista que não é, de todo, disso que se trata. Mas a população vê esta benevolência como a prova de que também o pároco foi vítima do demónio na rapariga e decide tomar as medidas necessárias: exorcizar o diabo em Joana através do fogo purificador.

Bernardo Santareno triunfa, mais uma vez, na representação microscópica da vida em povoações pequenas no início do século passado. A expressividade dos diálogos, numa linguagem que em tudo se assemelha ao registo oral aldeão, deixa transparecer a moldura mental das personagens que povoam a peça – uma moldura mental de desconfiança, intriguismo e profunda religiosidade.

Contrariamente ao que acontece com a maioria das peças de teatro que já tive oportunidade de ler, não senti que “O Crime da Aldeia Velha” precisasse de ser visto em palco para ser plenamente apreciado. As didascálias são muito claras e expressivas, de modo que este texto dramático pode ler-se quase como se se tratasse de um texto narrativo.

Em suma, esta é uma peça de leitura fácil e cativante, uma adaptação bem conseguida de acontecimentos reais e uma representação perturbadora das consequências mais radicais da ignorância e da superstição.

 

02
Dez23

“Giovanni’s Room” – James Baldwin

Helena

81IceqICE0L._AC_UF1000,1000_QL80_.jpg

Esta narrativa de amor falhado inicia-se com David, a personagem principal, na sua casa no sul de França, contemplando as consequências das suas ações levadas a cabo durante os meses que passou sozinho em Paris, enquanto a sua noiva viajava por Espanha.

Recuando no tempo, acompanhamos desde o início a jornada conturbada de David na sua relação com um jovem barista que conheceu numa noite em que acompanhava um dos seus amigos parisienses. Giovanni, belo e sedutor, desperta em David impulsos que, ainda que não sentidos pela primeira vez, ele tende a reprimir e a contrariar. Com o passar do tempo, a sua intimidade com Giovanni aumenta, assim como o amor genuíno que este nutre por David. Contudo, David está preso dentro de si, preocupado com o regresso de Ella, com os preconceitos da sociedade e com a sua autoperceção. Giovanni é um rapaz vulnerável na Paris buliçosa e sem piedade, mas também o seu casamento com Ella balança, periclitante, sobre a necessidade de encaixar numa sociedade padronizada e de cumprir os sonhos que alimentara desde sempre. Encurralado entre mundos mutuamente exclusivos, David é forçado a encontrar-se com quem ele realmente é.

“If you cannot love me, I will die. Before you came I wanted to die, I have told you many times. It is cruel to have made me want to live only you make my death more bloody.”

Giovanni’s Room (O Quarto de Giovanni em português) não é um livro que recomendaria a leitores que precisam de gostar das personagens que povoam os romances que leem. David é uma personagem imperfeita e falível que despoleta no leitor um cocktail de emoções, muitas delas negativas. É um narrador egoísta e perturbado que deixa que as consequências do seu conflito interno reverberem naqueles que o rodeiam. Por errar uma e outra vez, por tentar gerir todas as esferas da sua vida e não conseguir por não saber como o fazer, por não ser capaz de tratar corretamente aqueles que lhe são próximos por nem sequer se perceber a si próprio, David é mais do que uma personagem de papel e tinta, é a voz real daqueles que tentam trilhar um caminho na vida enquanto se descobrem a si e aos outros.

O amor e as suas diversas facetas são o pilar da história conturbada de David em Paris. O amor não correspondido, o amor carnal, o amor incondicional, o amor imaginado e o amor prometido entrecruzam-se nas relações que as personagens estabelecem entre si. Como substrato desta complexidade de sentimentos amorosos, encontramos o problema da indefinição da identidade sexual de um indivíduo numa sociedade heteronormativa que o influencia grandemente. Não fosse a insistência de David em abafar os impulsos sexuais que ele sabia serem vistos como condenáveis, não teria de gerir um casamento insatisfatório enquanto torturava Giovanni com a volubilidade dos seus sentimentos. O efeito borboleta despoletado pelas ações do narrador nas vidas de todos os que o rodeiam fez-me refletir acerca do impacto que cada um de nós pode ter naqueles que nos são queridos – muitas vezes, sem que nos apercebamos disso.

Esta leitura deixou-me a braços com uma grande tristeza - uma tristeza boa, se é que isso é possível. Só uma narrativa bem tecida pode despertar no leitor sentimentos reais em relação a personagens fictícias. Esta não é uma história com um final feliz, assim como não o são as de muitas vidas.

Por se tratar de uma narrativa circular, só no fim podemos entender por completo a situação na qual David se encontrava no início do romance. Foi com outro olhar que regressei às primeiras páginas e revi a opinião que formara no início de um narrador deslocado, inocente e preocupado. Este é daqueles livros que pede uma releitura que se afigura tão boa ou melhor do que a primeira.

Mais sobre mim

Arquivo

    1. 2024
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2023
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2022
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2021
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2020
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2019
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2018
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2017
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D

Pesquisar

Bem vindo

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.