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H-orizontes

H-orizontes

22
Nov23

“Mulher, Vida, Liberdade” – Marjane Satrapi (coor.)

Helena

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Mulher, Vida, Liberdade é uma compilação de bandas desenhadas da autoria de 46 autores iranianos, que convergem na representação dos eventos que tiveram lugar no Irão desde a instauração do regime teocrático atual (até) às repercussões da morte de Mahsa Amini na sequência da sua prisão pela polícia de costumes.

Este livro apelativo e de fácil leitura cobre várias histórias de resistência e morte às mãos da polícia no Irão, o impacto do contexto político-social no contexto familiar, prisional e escolar, o surgimento do movimento “Mulher, Vida, Liberdade” e do seu hino, a polícia de costumes e a máquina de propaganda estatal.

Esta compilação é muito enriquecedora pela forma como congrega representações esteticamente muito variadas dos mesmos acontecimentos reprováveis que têm vindo a ter lugar no Irão. Cada autor dirige o seu foco a um problema distinto e aplica-lhe um tratamento gráfico de traços muito próprios que influenciam grandemente a sua receção junto do leitor. O uso da cor, a grossura do traço e a organização do texto são aspetos que marcaram particularmente a minha experiência de leitura, pelo impacto que têm no realçar de aspetos particulares da história que é contada. Alguns capítulos consistem em apenas duas páginas, mas estas são mais do que suficientes para expressar o que o autor pretende através da intensidade notável do seu grafismo.

Para além de ser um testemunho importantíssimo da vida no Irão nos nossos dias, este livro é relevante pela vastidão do público ao qual é acessível. Quer seja através dos desenhos ou da linguagem pouco elaborada, as histórias que figuram nestas páginas são fáceis de entender tanto por leitores adultos como por camadas infantis. Por essa razão, penso que Mulher, Vida, Liberdade, assim como Persépolis, é extremamente relevante enquanto compensação de todos os relatos e informações que ficam presos no Irão pela intransigência do regime teocrático e repressivo em vigor. Ao alcançar mais faixas etárias, sensibiliza um número de pessoas mais vasto para as violações dos direitos humanos que são levadas a cabo diariamente sem que sejam notícia nos telejornais.

Encerrando esta leitura com chave de ouro, a última sequência de vinhetas traz para a “boca de cena” uma conversa na atualidade sobre o futuro do Irão, cujo tom otimista nos deixa com um sentimento de esperança, depois de todo o horror que, ainda que indiretamente, nos foi dado experienciar.

16
Nov23

“Just Kids” – Patti Smith

Helena

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O memoir de Patti Smith faz-nos recuar até à Nova Iorque dos anos sessenta, onde a autora encontrou meios para fazer florescer a sua paixão pelas artes. Chegada à “Grande Maçã” ainda muito jovem, Smith debateu-se contra a precariedade das condições de vida dos aspirantes a artistas que, aqui e ali, povoavam as ruas. Foi nos seus primeiros tempos de vida vivida na corda bamba em Nova Iorque que Patti conheceu Robert, que viria a ser o seu inseparável companheiro na luta por reconhecimento artístico e sustento diário.

Acompanhamos, assim, os altos e baixos da vida da artista, as suas relações, as suas viagens e a sua jornada de descoberta da melhor forma de expressar a sua identidade artística, desde que deixou a casa dos pais até à morte de Robert, por complicações associadas à SIDA.

“Sometimes I just wanted to raise my hand and stop. But stop what? Maybe just growing up.”

A minha experiência de leitura deste memoir foi muito influenciada pelo facto de eu não conhecer previamente a sua autora. Isto fez com que, naturalmente, o meu interesse não fosse equivalente ao que me levou a ler, por exemplo, o memoir do Trevor Noah, no início deste ano. Parti para este memoir como quem parte para uma experiência puramente literária e, nesse sentido, não fiquei muito impressionada. A história é linear, mas é povoada por muitas personagens que nem sempre são muito relevantes. Para além disso, deduzo que esta seja uma narrativa muito atrativa para aqueles que se reveem na perseguição do sonho de uma vida boémia ou nos sacrifícios a que estariam dispostos a fazer para vingar no mundo da arte. Como não é o meu caso, poucas coisas me uniam à voz narrativa, a apenas aspetos pontuais captavam realmente a minha atenção. Esse foi o caso dos encontros casuais com pessoas de renome que Smith relata esporadicamente, entre eles uma vez em que se cruzou com Salvador Dalí, outra com Allen Ginsberg e outra com Jim Morrison. Nova Iorque era um formigueiro de artistas nos anos sessenta, e este livro é a prova viva disso.

Interessou-me particularmente que a maior parte da ação se aclimatasse no cerne daquela que ficou conhecida como a “Beat Generation”. Allen Ginsberg, Jack Kerouac e William Burroughs são nomes que já me eram familiares, que pertencem a um período que me fascina e que orbitavam os mesmos espaços que Patti Smith, ao mesmo tempo que ela. Esta coincidência inesperada despertou a minha curiosidade em relação à obra de Patti Smith e à forma como se insere neste movimento cultural e literário.

Não esperava que a história de Robert tivesse um fim tão prematuro, nem sabia que também tinha sido uma vítima da epidemia de SIDA que vitimou tantas pessoas nos anos oitenta.  A descrição da vivência de Patti da doença e da morte daquele que a acompanhou ao longo do seu processo de autoconhecimento e conquista da independência foi a minha parte preferida de todo o memoir. É um retrato tocante da vulnerabilidade do ser humano quando confrontado pelas forças que escapam ao seu controlo, e uma ode à amizade que se eterniza no livro que, afinal, foi Robert a pedir-lhe que escrevesse.

Em suma, Just Kids é um livro sobre a persistência, o sacrifício, o amor e a perda, dominado pela certeza de que, no final, é a arte que nos salva.

03
Nov23

"The Handmaid's Tale" - Margaret Atwood

Helena

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Nesta realidade distópica, a religião toma as rédeas do sistema de valores e as mulheres são submetidas a uma objetificação desumana. As mulheres são divididas em grupos femininos com funções específicas: as Marthas, as Handmaids e as Aunts, por exemplo, A narrativa põe em destaque os meandros da vida das Handmaids, mulheres potencialmente férteis, responsáveis por gerar filhos para as esposas inférteis de funcionários do Estado. Offred, a narradora, é uma Handmaid que ainda se lembra de como era ter uma vida autónoma, um trabalho e a liberdade de poder ler e dizer o que quisesse. Agora, não pode deter propriedade, tem de reduzir o contacto visual com outros ao mínimo, os dissidentes do regime aparecem enforcados e até as palavras nas tabuletas foram substituídas por símbolos, pois nem essa leitura era desejável. Para além de tudo isso, Offred não sabe o que foi feito de Luke, seu companheiro, nem da sua filha.

Os vidros são inquebráveis, os banhos são controlados e o acesso a objetos cortantes é proibido, porque toda a gente sabe: a morte é a única saída.

“All I can hope for is a reconstruction: the way love feels is always only approximate.”

Esta leitura veio confirmar aquilo de que já desconfiava: distopias não fazem parte dos meus géneros literários favoritos. É-me difícil reorganizar o meu mapa mental para me submergir completamente no universo da distopia. Apesar disso, penso que prefiro a abordagem de Atwood, de dar a conhecer o funcionamento da sociedade distópica através da ação e das personagens, em vez da explicação concentrada e, por vezes, aborrecida e complexa, do universo criado noutros livros do género.

Esta clássico moderno é, de facto, uma leitura importante pelas reflexões que suscita relativamente à realidade em que vivemos. Isto é reforçado pelo compromisso da autora de retratar apenas situações que já tivessem tido lugar no passado ou no presente. A vida em Gilead mimetiza os princípios do grupo de puritanos que se instalaram no estado do Massachussets no século XVII. A gravidez forçada foi implementada por Pol Pot no Camboja. A proibição do aborto é uma realidade em muitos países dos nossos dias. No universo teocrático chauvinista de Atwood, as conquistas da mulher na sociedade foram completamente destruídas e a atmosfera quotidiana é claustrofóbica e castradora. Importa reter que esta “descida aos infernos” não se realizou do dia para a noite: foi o resultado de uma desvalorização de indícios de totalitarismos e de uma tolerância crescente face às ameaças às liberdades fundamentais dos indivíduos. A opressão normaliza-se, como demonstra a narração de Offred: “Is that how we lived, then? But we lived as usual. Everyone does, most of the time. Whatever is going on is as usual. Even this is as usual, now.”

Para além da forma orgânica como as analepses de Offred são entretecidas na narrativa, sem quebras de qualquer tipo, achei particularmente interessante o pormenor dos nomes atribuídos às Handmaids. O seu nome depende da família que servem, pelo que Offred significa ser “de Fred”, Offglen “de Glen”, e assim por diante. A importância de um nome no estabelecimento de relações de dominância é maior do que pensava, e isso é claro no estatuto de permanente inferioridade e submissão a que as Handmaids são remetidas. O mesmo fenómeno de perda de identidade a favor da ideologia vigente verificou-se, por exemplo, na atribuição de números aos prisioneiros nos campos de concentração nazis.

Em suma, num registo fragmentado que espelha o estado perturbado da mente de Offred, The Handmaid’s Tale é um livro que nos alerta para a ameaça permanente de regimes insensíveis aos direitos fundamentais dos cidadãos, e para quão fácil é atuar como seu conivente ao preferir o conforto da adaptação acrítica ao perigo da subversão.

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