Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

H-orizontes

H-orizontes

22
Out23

“O Pecado de João Agonia” – Bernardo Santareno

Helena

Picture-035.jpg

Em meados dos anos sessenta do século passado, a família Agonia aguarda em casa o regresso de João, filho que partira para Lisboa para cumprir o serviço militar obrigatório. João regressa, mas vem diferente: mais sombrio e fechado em si próprio, sente repúdio pela capital que deixou e deseja recolher-se à pacatez em que cresceu.

Em casa, Fernando, irmão mais velho, tenciona agendar um casamento com Maria Giesta, e Teresa, a irmã mais nova, tenta ignorar o interesse que Tóino, irmão de Maria Giesta, tem vindo a demonstrar por ela, rapariga quase demasiado crescida para continuar solteira. Em vez de partilhar e contribuir para esta alegria, João Agonia virá perturbá-la: a sua afeição crescente por Tóino e as notícias de Lisboa trazidas por Manuel alteram profundamente o ambiente da casa e a perceção que as personagens têm umas das outras.

No canto da sala, os agouros da avó Rosa recrudescem intermitentemente…

Esta peça de teatro, de leitura obrigatória para o meu terceiro semestre de Literatura Portuguesa, surpreendeu-me pela positiva. Nunca tinha lido peças da autoria de Bernardo Santareno e a verosimilhança que ele confere às réplicas das personagens contribui grandemente para uma boa experiência de leitura (já que ela nunca se equipara ao assistir a uma representação ao vivo).

O Pecado de João Agonia pode ser visto como uma obra problemática nos tempos que correm, tendo em conta alguma da linguagem a que se recorre relativamente ao tratamento de membros da comunidade LGBTQ+. Contudo, inserindo a peça no seu tempo e tendo em atenção o facto de se tratar de uma obra que tem como centro a injustiça e a irracionalidade na discriminação e maltrato dos homossexuais, penso que é perfeitamente legítimo.

Mesmo sabendo que se tratava de uma tragédia inserida no século XX, não estava à espera de um final tão drástico, mas que, simultaneamente, fez sentido. O Pecado de João Agonia é um grito de alerta que nos chega de há meio século e nos confronta cruamente com comportamentos que mudaram menos do que seria necessário.

12
Out23

“Jesus Cristo Bebia Cerveja” – Afonso Cruz

Helena

500x.jpeg

No coração do Alentejo, uma mão-cheia de personagens envida esforços para a realização do maior desejo de Antónia, uma senhora idosa que quase não se consegue mexer: ir a Jerusalém. À falta de meios e de dinheiro, o professor Borja tem a grande ideia de trazer Jerusalém ao Alentejo. Simulando um avião num bar de strip e a Terra Santa na aldeia de uma inglesa rica, a senhora terá a sensação de viajar até ao Oriente.

Rosa, neta de Antónia, de quem partiu a vontade de satisfazer o desejo da idosa, deixou o amor rude de um pastor em troca do amor científico do professor, muito mais velho do que ela. O professor, pesado da vida e do conhecimento, pensa que a essência humana é o que está escrito no ADN. Miss Whittemore, a inglesa, acha que o que fica de nós depois da morte é um pensamento. O sargento Oliveira está determinado a encontrar o responsável pelos graffitis filosóficos no muro branco da aldeia da inglesa. O padre Teive associa a dor das chibatadas no traseiro que o pai lhe infligia por querer ser padre à experiência do divino. Margarida, filha do professor, morreu aos cinco anos e deixou um Nada antinatural no peito do pai. Estas e outras histórias entretecem-se numa teia de intenções, decisões e filosofias que, no final de contas, são tudo o que temos.

“o hábito faz a vida endurecer como a côdea do pão”

Jesus Cristo Bebia Cerveja ficou um pouco aquém daquilo que esperava de uma obra da autoria de Afonso Cruz. Perpassa este livro uma sensação geral de dump de escrita criativa. É próprio de Afonso Cruz juntar nos mesmo planos personagens muito diferentes que contam com características muito próprias (por exemplo, um homem com o nome dos quatro evangelistas e um professor paralelo a si mesmo). No entanto, neste romance, as peculiaridades das personagens fazem com que ele pareça algo desconexo. Apesar de haver uma linha condutora que as une num fim comum, fiquei com a impressão que muito deste livro vive da explicitação de características peculiares das personagens que o povoam.

Da mesma forma, mesmo estando habituada às incursões filosóficas na bibliografia de Afonso Cruz, fiquei um pouco saturada pela insistência nas suas referências e cadeias argumentativas relacionadas com a inexistência de Deus. Não por não concordar nem por achar que deviam ser completamente eliminadas, penso apenas que algumas podiam ter sido conseguidas com mais naturalidade e concretizadas em raciocínios menos densos.

Ainda assim, desfrutei desta leitura que me embalou desde o início com o registo tão afonsocruziano em que surtos de beleza inesperada surgem das situações mais banais da vida das personagens. Ideias de uma originalidade fascinante brotam da página como se ele semeasse nas palavras de todos os dias sentidos que costumam passar-nos ao lado. Nunca me teria ocorrido que no sabor de uma pedra podem residir as sensações de uma memória. E nunca o Alentejo esteve tão perto de Jerusalém.

Um brinde (com cerveja) a esta experiência transcendental!

11
Out23

“Lucy” – Jamaica Kincaid

Helena

81vK7Yv9IYL._AC_UF1000,1000_QL80_.jpg

Lucy é a personagem principal do livro homónimo da autoria de Jamaica Kincaid.

Tendo atingido a maioridade, Lucy abandona a casa dos pais, nas Caraíbas, e parte para os Estados Unidos da América. Aí, passará a viver com a família de Lewis e Mariah, de cujos filhos tem o dever de cuidar.

Neste período de transição repleto de mudanças e descobertas, Lucy vê-se a braços com uma vida numa sociedade completamente diferente e em contacto permanente com uma família cuja aparência harmoniosa esconde problemas. Nesta tentativa de compreender quem é ela própria e quem são, na verdade, os outros, Lucy vai ocupando o seu lugar no mundo e no coração de quem lê este romance.

“An ocean stood between me and the place I came from, but would it have made a difference if it had been a teacup of water? I could not go back.”

Este livro tocou-me muito mais profundamente do que eu esperava. O facto de Lucy, a personagem principal, ter a mesma idade que eu, fez com que muitos dos aspetos tratados neste livro se coadunassem com a minha própria experiência. Apesar de estar do outro lado do Atlântico e de me encontrar numa situação infinitamente mais privilegiada, pude partilhar da não só sensação de estranheza que sair de casa envolve, como também das sensações intensas e contraditórias que crescer acarreta.

O registo pouco floreado da escrita de Kincaid podia contribuir para um relato menos cativante deste processo de emancipação, mas acabou por ter o efeito contrário. Ao manter um estilo simples, a narrativa de Lucy tornou-se simultaneamente mais acessível e mais tocante, mais próxima de quem lê e dos sentimentos que tenta exprimir.

Os livros de que mais gosto são aqueles cuja crítica mais me custa articular, já que nada do que eu possa dizer pode igualar a sensação de conforto que me preenchia ao pegar neste livro para mais uns minutos de leitura. É uma pena que não esteja traduzido e editado em Portugal. Ainda assim, recomendo a sua leitura, especialmente aos jovens adultos que ainda estão a tentar descobrir o lugar onde pertencem.

01
Out23

“Waiting For Godot” – Samuel Beckett

Helena

md_9780571244591_060720201806043.jpg

Waiting for Godot, do Nobel da Literatura Samuel Beckett, é uma peça de teatro que põe no centro do palco Gogo e Didi, dois amigos que estão presos a um compromisso de contornos bastante vagos: um encontro com Godot, uma entidade desconhecida que lhes trará algo que também desconhecem. As únicas personagens que interrompem a monotonia da sua espera, ainda que temporariamente, são Pozzo e Lucky, uma estranha dupla de senhor e servo.

Mesmo quando lhes surge no espírito a ideia de abandonar a paisagem inóspita onde se encontram, Gogo e Didi não se movem. Não podem ir embora, Godot ainda não chegou. Enquanto esperam, o par de amigos tenta preencher o vácuo com hipóteses e reflexões sobre a vida nas circunstâncias hipotéticas de fim da humanidade em que se encontram.

“We always find something, eh Didi, to give us the impression we exist?”

Waiting for Godot é uma peça que se inclui no conceito de Teatro do Absurdo, produções teatrais que partem de ideias existencialistas para expressar a falta de propósito da vida humana.  Assim sendo, não é um texto cujo significado é entregue linear e diretamente ao leitor. Por detrás dos diálogos absurdos entre as personagens, vive o reconhecimento da inutilidade de tentar dar sentido à vida, a valorização da amizade e a prova da incapacidade da linguagem para expressar toda a complexidade da experiência humana. Não é uma peça muito entusiasmante, já que quase nada acontece, mas isso faz parte do seu objetivo: colocar sob os holofotes o que resta dos Homens quando a única coisa que têm é a esperança de encontrar o representante de uma metafísica que os mantém à tona.

Mais do que um par de amigos agarrados à esperança da vinda de um tal Godot, esta é uma peça sobre a esperança da humanidade nalguma espécie de libertação, uma salvação, um resgate milagroso da estagnação agonizante da vida. É uma peça sobre aquilo que nos move, e também sobre o que nos faz ficar.

Mais sobre mim

Arquivo

    1. 2024
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2023
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2022
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2021
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2020
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2019
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2018
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2017
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D

Pesquisar

Bem vindo

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.