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H-orizontes

H-orizontes

27
Jul21

“1984” – George Orwell

Helena

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No ano de 1984, no superestado da Oceânia, nada resta do mundo como hoje o conhecemos – pelo menos, nada do que nos pareceria importante para o bem-estar de qualquer sociedade. Em cada canto, um telecrã a vigiar todos os movimentos de todos os cidadãos. Em cada casa, a total ausência de lealdade familiar, com as crianças a serem educadas para denunciarem os próprios pais à mínima suspeita. No cinema, filmes baseados na violência gratuita e na propaganda. Na conjuntura internacional, uma guerra permanente e infrutífera. Em todos os muros, a imagem do Grande Irmão, a encarnação do Partido, infalível, imortal.

É neste mundo que vive Winston Smith, um membro do Partido Externo que trabalha no Ministério da Verdade, no Departamento dos Arquivos. A sua função é alterar os documentos antigos que põem em causa a infalibilidade do Partido. Por exemplo, se tinha sido previsto um aumento de 50% na produção de botas e esta só tivesse crescido 30%, o Departamento dos Arquivos devia alterar todos os registos da antiga declaração do Partido para que os resultados superassem o que tinha sido previsto.

Ao contrário da esmagadora maioria da população, Winston tem consciência de como a classe dirigente altera o passado e da cegueira dos populares, tão embrenhados no duplopensar que não se apercebem da manipulação de que são vítimas.

Apesar de saber que a sua atitude se encaixa perfeitamente no conceito de pensarcrime, o que, mais tarde ou mais cedo, lhe custará a vida, Winston está decidido a fazer a diferença e a contribuir para o restabelecimento de um Estado livre, objetivo e igualitário. Mas será possível escapar às garras da Polícia do Pensamento? Serão as suas convicções firmes o suficiente para não se deixarem abalar pela influência omnipresente e esmagadora do Partido?

A última e mais célebre obra de Orwell leva-nos numa viagem ao futuro distópico que aguarda a civilização moderna. No seu típico registo lúcido e fascinante, Orwell constrói aquilo que ele próprio denominou uma “sátira”, que funciona como um sinal de alerta: “olhem o que vos acontecerá se não fizerem nada para o evitar”. Num mundo em que é tão fácil difundir um ideal pelas massas, em que somos escrutinados pelos algoritmos das redes sociais, em que se assiste ao aumento dos adeptos de extremismos, a leitura de 1984 é especialmente pertinente.

A minha primeira impressão deste livro não foi muito positiva. Para além de considerar que a voz de Orwell é mais cativante nos seus ensaios, sendo menos adequada a narrativas, achei que a personagem principal era muito fraca. Winston, apesar de idealista, não tem força suficiente para se afirmar e para assumir uma posição clara face ao dilema com que é confrontado. No entanto, com o avançar da leitura, fui percebendo que não poderia ser de outra maneira, uma vez que Winston é o fruto do meio em que está inserido – um meio opressivo, repressivo, intolerante e em vigilância permanente. Assim, numa narrativa focada na experiência de Winston, partilhamos as suas sensações, quase sentindo na pele o efeito esmagador de um Estado regido pela manutenção da desigualdade, pela adulteração dos factos e pelo controlo total dos cidadãos arregimentados.

Em 1984, o típico discurso anti totalitarista do autor alia-se à sua considerável capacidade criativa. Orwell não se limitou apenas a profetizar o futuro de uma sociedade consumida pelo autoritarismo e por valores desumanos, como também construiu integralmente elementos sobre os quais esse futuro se alicerça. Este é o caso da novilíngua, a única língua cujo vocabulário se reduz ao longo do tempo, a fim de limitar os meios de expressão dos cidadãos e a sua capacidade de formularem pensamentos críticos. Orwell redige também excertos do livro de Goldstein, o líder da conspiração contra o regime, e é nele que assume a sua faceta de ensaísta e elabora uma análise social coerente de um mundo ainda por vir.

Em conclusão, o objetivo do 1984 encontra-se muito além da crítica ao regime estalinista em vigor aquando da data da sua publicação. 1984 é um futuro possível, uma hipótese aterradora que nos cabe evitar que se torne realidade.

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18
Jul21

“O ano da morte de Ricardo Reis” – José Saramago

Helena

mês de dezembro do ano de 1935 está a chegar ao fim, quando o Highland Brigade chega ao porto de Lisboa. Entre os viajantes do navio encontra-se Ricardo Reis, heterónimo pessoano regressado do Brasil por ocasião da morte de Fernando Pessoa.

Na capital, Ricardo Reis instala-se no Hotel Bragança, onde conhece Lídia, a criada, em tudo oposta à musa do poeta, sua homónima. Junto de Lídia, Reis reencontra o fervor de uma relação de amor físico, ocasional e desigual – a simplicidade humilde da criada contrasta fortemente com o estatuto elevado e o discurso do heterónimo. A este amor carnal opõe-se o amor platónico que Ricardo Reis vai nutrir por Marcenda Sampaio, uma rapariga de Coimbra que visita Lisboa todos os meses em busca de cura para a sua mão paralisada.

Mais do que uma história que faz de uma personagem pré-existente o seu protagonista, reinventando-a, O ano da morte de Ricardo Reis é um romance de crítica aos mais variados aspetos do período em que a ação se desenrola. O avanço do fascismo na Europa, a iminência da guerra civil espanhola, a miséria do país no tempo da ditadura, a cegueira do fanatismo religioso e a hipocrisia e dissimulação do regime salazarista são pontos-chave das suas reflexões e dos comentários que pontuam as suas conversas com o fantasma de Fernando Pessoa.

“o homem, claro está, é o labirinto de si mesmo”

Este não foi o primeiro livro de Saramago que li – e ainda bem.

Em primeiro lugar, O ano da morte de Ricardo Reis é, em comparação com o Memorial do Convento, muito mais complexo, não em termos de linhas narrativas, mas em termos de conteúdo. Este livro apresenta, paralelamente a uma linha de ação simples, reflexões de um teor e profundidade que podem ser pouco acessíveis às pessoas que não possuem uma bagagem intelectual considerável. Esses momentos da narrativa correspondem, geralmente, aos encontros de Ricardo Reis com o fantasma de Fernando Pessoa, durante os quais eles se dedicam a discutir os assuntos da atualidade e a debater problemas existenciais. Embora a maior parte das reflexões seja muito interessante, desenrolam-se, por vezes, raciocínios difíceis de compreender, para além de serem pontuados pelos aforismos saramaguianos que me deixam sempre com a sensação de que não entendi o seu sentido por completo.

O ano da morte de Ricardo Reis exige, como seria de esperar, um conhecimento relativamente aprofundado acerca do heterónimo, da sua poesia e da sua filosofia de vida. Caso contrário, a verdadeira magia deste romance passar-nos-á ao lado. Certos comportamentos de Reis, a sua relação com Pessoa e os outros heterónimos e as suas reflexões são baseados nos princípios pelos quais Ricardo Reis se rege – a renúncia ao compromisso e à perturbação, a consciência aguda da mortalidade e a convicção de que “Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo”.

“Não digamos, Amanhã farei, porque o mais certo é estarmos cansados amanhã, digamos antes, Depois de amanhã, sempre teremos um dia de intervalo para mudar de opinião e projeto, porém ainda mais prudente seria dizer, Um dia decidirei quando será o dia de dizer depois de amanhã, e talvez nem seja preciso, se a morte definidora vier antes desobrigar-me do compromisso, que essa, sim, é a pior coisa do mundo, o compromisso, liberdade que a nós próprios negámos.”

Outro motivo que me leva a preferir o Memorial do Convento ao O ano da morte de Ricardo Reis é o período histórico em que a ação se desenrola. No Memorial, a ação remonta ao século XVIII, ao período de construção do convento de Mafra. Já O ano da morte de Ricardo Reis insere-se no período do regime salazarista e do avanço dos fascismos em território europeu. Apesar de considerar muito relevante esta altura da História e de ter desfrutado da forte crítica do autor à conjuntura portuguesa da época, principalmente através da ironia, este não me atrai tanto como os períodos históricos anteriores – no final de contas, nunca fui grande fã da História do pós-século XIX.

Apesar de tudo, a genialidade de Saramago volta a transparecer, inegável, através das páginas do romance. O seu estilo particular acrescenta riqueza a uma obra já de si engrandecida pela incrível capacidade criativa do autor Nobel da Literatura.

Em conclusão, penso que este é um livro de leitura obrigatória para os fãs de Saramago, constituindo em simultâneo um exemplar do seu poder inventivo e um compêndio da essência da portugalidade.

06
Jul21

“Oscar et la dame rose” – Éric Emmanuel Schmitt

Helena

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A vida de Oscar desenrola-se inteiramente entre as paredes do hospital. Com apenas dez anos, é vítima de um cancro que nenhuma das estratégias implementadas pelos médicos conseguiu resolver. Sabendo-se na reta final da sua vida, Oscar acede à sugestão de Mamie Rose, a senhora que o acompanha, de viver os doze dias que o separam do fim do ano como se cada um deles equivalesse a dez anos da sua vida.

Assim, Oscar atravessa todas as fases da vida em menos de duas semanas: a intensa adolescência, as responsabilidades da idade adulta, a meia-idade atribulada e as reflexões profundas de quem entra na velhice. Apesar da sua tenra idade e da sua condição frágil, engendra planos de fuga e chega a casar com a Peggy Blue, uma menina cuja doença dava à sua pele um tom azulado.

O relato dos seus dias chega-nos através das cartas que Oscar escrevia a Deus, fruto de outra sugestão de Mamie Rose, através das quais ele reflete sobre a vida, o envelhecimento e as pequenas conquistas e descobre o sentido da espiritualidade.

“P. S. Je ne sais pas ton adresse: comment je fais?”

Assim como as pessoas, os livros não se medem aos palmos. Oscar et la dame rose, apesar de curto e simples, encerra uma história muito especial e singela que parte da inocência de uma criança para retratar a realidade cruel de uma doença terminal.

Para além da sua doçura, este livro conta com um enredo muito original e com o sentido de humor do narrador para alegrar e aplacar a gravidade da situação de Oscar.

Num novo olhar face à doença, à religião, à vida e à morte, Schmitt oferece-nos uma pequena grande obra, inspiradora, única e capaz de derreter os corações mais duros.

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