“a máquina de fazer espanhóis” leva-nos a ver o mundo a partir da perspetiva do Sr. Silva, de 84 anos, que, após a morte da sua mulher, o pilar da sua vida, é internado num lar.
É no “Feliz Idade” que, depois de ultrapassar, em parte, a raiva em relação ao mundo e à vida despoletada pela morte da esposa, o Sr. Silva faz novas amizades e se familiariza com a proximidade da morte. Munido de uma total descrença na metafísica, tudo o que lhe resta é aguardar o momento em que deixará de ter de viver sem a “sua Laura”, aproveitando o compasso de espera para refletir sobre a sua conduta no passado, para passar tardes ao sol com os seus colegas do lar e para descobrir que, afinal, há relações extrafamiliares que fazem da vida um lugar melhor.
É fascinante a maneira como Valter Hugo Mãe, nos seus trinta e oito anos, conseguiu captar de uma forma tão vívida e precisa a perspetiva de um idoso obrigado a renunciar à sua liberdade para se ver limitado pelas quatro paredes de um lar. De entre as impressões do Sr. Silva, destacam-se a revolta relativamente à ideia que os mais jovens fazem dos idosos, a consciência do inevitável e o receio em relação aos quartos da ala esquerda, com vista para o cemitério, o último nível antes da morte. Apesar dos momentos de alegria que pontuam o dia a dia dos idosos, o cenário daqueles cuja estadia no lar é apenas um caminho doloroso para a morte permanece uma realidade exasperante.
Através do Sr. Silva e das conversas que se desenrolam entre as personagens, é abordada e criticada uma série de assuntos que continuam a marcar a nossa sociedade: o desleixo no exercício da cidadania, a desvalorização da liberdade e o seu abuso e o individualismo crescente. São, também, recorrentes as reflexões acerca do salazarismo, de como a dignidade dos portugueses foi rebaixada por Salazar e de como a inércia em tempos de repressão acaba por ser sinónimo de conivência com o regime opressor.
É particularmente interessante o modo como, por entre o relato de um idoso nos seus últimos anos de vida, Valter Hugo Mãe encaixa neste cenário deprimente alguns elementos divertidos: a personagem que se apresenta como o Esteves do poema “Tabacaria” de Álvaro de Campos, as brincadeiras do Sr. Silva com a estatueta da Virgem Maria (a “mariazinha”) e o estratagema que ele cria para que a Dona Marta receba as cartas do seu marido por que tanto esperara durante anos. A criação mais notável é a da “máquina” no quarto da ala da esquerda, que é trazida durante a noite pelos funcionários do lar e tem a função de enfraquecer os utentes, atacando os seus pontos fracos, de modo a apressar a chegada da morte.
“Estávamos bem era a falar castelhano, com salários castelhanos e uma princesa bonita para as revistas. Que filho da mãe de erro este de proclamarem soberania nos arremedos de uma península!” Por mais do que uma vez, é expresso pelas personagens o desejo de que Portugal nunca se tivesse tornado independente. Portugal é a verdadeira “máquina de fazer espanhóis”.
Apesar de não me ter cativado tanto como esperava (talvez por retratar uma realidade tão longínqua para a minha faixa etária), este livro marcou-me por conjugar harmoniosamente um relato da vida nos lares a partir “de dentro” com um apelo urgente ao exercício da cidadania, à prática do espírito crítico e à crença dos Homens nos seus semelhantes.
“o ser humano é só carne e osso e uma tremenda vontade de complicar as coisas”
“deus é uma cobiça que temos dentro de nós”