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H-orizontes

H-orizontes

29
Mar21

"Princípio de Karenina" – Afonso Cruz

Helena

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Esta história, que mais não é do que uma carta do narrador à sua filha, que nunca conheceu, começa por nos apresentar a um menino que, “coxo da cabeça” por culpa do pai, vive dominado pelo medo do estrangeiro. Esta espécie de fobia foi-lhe impingida em forma de ética pelo pai, para quem tudo o que sugeria a distância, a mudança ou a diferença equivalia a barbaridade e era indesejável, execrável.

Já crescido e casado, o narrador vai-se tornando consciente de que é praticamente impossível escapar ao estrangeiro, que se infiltra nas nossas vidas em forma de alimentos, de objetos, de hábitos e, até, de sombras. Eis quando ele se depara com o derradeiro obstáculo à concretização da vida pacata e imune a tudo quanto é externo que decalcava do pai: a chegada da criada nova, vinda da Cochinchina, o expoente do estrangeiro e da perturbação. “Quando olho para ela, vejo uma janela aberta.” O foco de luminosidade encarnado pela rapariga abala profundamente o narrador e põe em causa tudo aquilo em que, até então, acreditara. Será, no entanto, suficiente para suplantar toda a apatia e tendência à reclusão inscritas nos seus alicerces desde a sua infância?

Bem, que romance! Tão curto, tão simples e singelo, mas tão poderoso! Através de uma criança criada no seio do medo, da desconfiança e da limitação, Afonso Cruz sublinha (põe a negrito, em itálico, em maiúsculas!) o quão importante é ser dono de uma mente aberta, sair da zona de conforto, experimentar coisas novas e gastar a “distância com que nascemos” em viagens, conhecimento e conexões emocionais.

Velados pelas palavras bonitas com que o autor nos embala, encontramos temas duros e bicudos como a morte, a discriminação e os fracassos no amor e na vida. Parte da magia de Afonso Cruz está na capacidade de escrever frases graciosas que, simultaneamente, doem. É com esta dor bonita como companhia que acompanhamos a vida do narrador, a carência de empatia que lhe é transversal e as consequências que isso lhe traz e aos que lhe são próximos. Emergimos desta leitura com uma urgência de valorizar tudo o que nos rodeia, todos os que fazem parte da nossa vida e estão perto de nós, e todos os que fazem parte dela sem que nós o saibamos, porque estamos todos ligados por fios invisíveis, como num piano ou numa bainha de uma saia – no final de contas, os arco-íris são “as costuras do céu”.

“Por mais distantes que estejam acontecimentos ou objetos ou seres vivos, estão unidos pelos arcos invisíveis das costuras do Universo.”

“Princípio de Karenina”, o título deste livro, remete literalmente para a primeira frase de “Anna Karenina”, de Tolstoi: “Todas as famílias felizes se parecem, todas as infelizes são infelizes à sua maneira”. Depois de reconhecer que, de facto, na maioria dos casos, existem infinitos lugares para estar errado, mas apenas um para estar certo, o narrador aponta a felicidade como uma exceção a esta regra. “Não há condições certas para ser feliz.” Por essa razão, não existe uma fórmula para a felicidade, mas em tudo o que acontece podemos encontrá-la, inclusiva e especialmente nos momentos que nos parecem mais difíceis e imperfeitos. “É impossível ser feliz sem dor” e “Sem desequilíbrio, nada se move”. É escusado viver obcecado com a perfeição, com o desejo de ser um “quadrado”, quando são os círculos que permitem o movimento e a evolução. No fundo, “Os seres vivos são desequilibristas”, vivos na sua instabilidade e assimetria, e graças a elas.

“todos os lugares são centros e todos os instantes são começos.”

27
Mar21

"Por Quem os Sinos Dobram" – Ernest Hemingway

Helena

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Em plena Guerra Civil Espanhola, Robert Jordan, um dinamitista americano simpatizante dos republicanos, é encarregado de fazer explodir uma ponte nas linhas fascistas, na serra de Guadarrama. Para cumprir a sua missão, Jordan conta com a ajuda do “bando de Pablo”, um grupo de guerrilheiros que vive escondido na zona fascista. Entre eles contam-se Pablo, o chefe, cuja cobardia contrasta com a bravura do seu passado; Pilar, sua mulher e suporte da vida do grupo; Anselmo, um velho que não gosta de matar homens; e Maria, uma rapariga de cabelo rapado que foi resgatada das garras dos fascistas num ataque a um comboio, e por quem Robert se apaixona assim que a vê.

Apesar de o dinamitista desconhecer o propósito do ataque que deve levar a cabo, não duvida de que, de uma maneira ou de outra, será um contributo indispensável para a causa da República, uma pequena intervenção que se repercutirá no destino de muitos e pela qual vale a pena morrer. “Nenhum homem é uma Ilha isolada; cada homem é uma partícula do Continente, uma parte da Terra; se um Torrão é arrastado para o Mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um Promontório, como se fosse a Casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque faço parte do Género Humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.” (John Donne – epígrafe)

Ler Hemingway era uma experiência que eu adiava indefinidamente, até descobrir que, por trás deste título, se encontrava uma das narrativas de referência sobre a Guerra Civil Espanhola. Decidi então aliar o primeiro contacto com este Nobel da Literatura e a pesquisa para o trabalho de História que terei de apresentar no terceiro período deste ano letivo.

Não costumo ler as sinopses dos livros, para evitar spoilers e me surpreender com o enredo. Neste caso, o enredo surpreendeu-me pela negativa, quando percebi que a destruição da ponte não seria apenas a primeira grande peripécia da obra, como também a única. A ação desenrola-se ao longo dos quatro dias que Robert Jordan leva a concluir a sua missão nas montanhas. O que preenche as páginas de um livro tão longo sobre um período tão breve são os pensamentos (por vezes repetitivos) do dinamitista, diálogos entre as personagens e relatos do passado de algumas delas – as partes mais interessantes e substanciais da história.

O estilo, que antecipava difícil e complexo, é, pelo contrário, muito simples. Há quem refira que essa simplicidade é o “bote salva-vidas” deste romance, uma vez que um estilo rebuscado o tornaria intragável, de tão aborrecido, e não posso deixar de concordar. Ao exigir menos esforço e permitir um ritmo de leitura mais rápido, torna o romance mais suportável.

Perturbou-me, no início, o facto de Hemingway se referir sempre ao americano como Robert Jordan, quando podia fazê-lo através de um dos nomes ou da alternância entre os dois. Acabei por me habituar e assumi-o como uma escolha de estilo consciente.

Apreciei particularmente a inclusão de expressões características da língua espanhola corrente.

As personagens não são particularmente marcantes, assim como as relações que estabelecem entre si. A relação amorosa de Robert Jordan e Maria, em especial, é muito pouco realista, até para uma história de amor à primeira vista. O passado traumático de Maria (vítima de abusos sexuais pelos fascistas), o papel de Pilar como sua “instrutora”, os seus diálogos com Robert, a sua submissão e o modo súbito como tudo acontece são os principais responsáveis pela condenação de um possível amor em tempos de guerra.

Aquilo que tornou esta leitura mais difícil para mim foi a referência frequente ao armamento e à hierarquia militar, aspetos que não domino, e a personalidades que desconheço.

Apesar de me ter permitido conhecer uma nova faceta da Guerra Civil Espanhola (a perspetiva dos guerrilheiros), penso que este livro é facilmente ultrapassado pelo Homenagem à Catalunha de Orwell, cuja leitura recomendo para uma melhor compreensão deste período.

“Nos que gostam de matar há sempre qualquer coisa de podre.”

“Ninguém pode provar a nacionalidade e a política de um corpo morto.”

21
Mar21

Saturno e Laura

Helena

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Ele era um órfão sem nome plantado à sorte num campo de trigo. Pelo menos, não tinha memória de que alguma vez tivesse sido de outra maneira.

Todos os seus dias amanheciam numa bruma com sabor a solidão e abandono, filtrada pelas frestas no telhado remendado à pressa da sua cabana num canto da praça. Não se lembrava de como tinha ali chegado, nem fazia ideia de quem eram os seus pais. Não que isso tivesse qualquer importância – as pessoas da vila tinham-no adotado como se fosse filho da terra, e recebia da caridade popular tudo aquilo de que precisava para sobreviver. A princípio, pensou que isso se devia à profunda misericórdia dos corações devotos dos camponeses. À medida que foi crescendo, porém, apercebeu-se de que não era a piedade que movia a caridade dos simples – era o medo. Todos receavam o rapaz cuspido pela fúria divina e os seus olhos bicolores, todos escrutinavam pelo canto do olho a palidez doentia da sua tez na torreira da seara, todos evitavam trocar palavras com a voz sumida daquela pilha de pele e osso coberta de farrapos.

Todos, menos Laura. Laura era a mais jovem das ceifeiras, e também a mais bonita. A sua compleição delgada e discreta destacava-se de entre os corpos atarracados das mulheres nos trigais. Nos dias mais tórridos dos meses mais quentes, a voz de Laura erguia-se acima de todas as outras. Quando Laura cantava, algo dentro do órfão a acompanhava numa sinfonia.

Certo dia, quando se dedicava afincadamente à ceifa com a sua navalha, ele ouviu atrás de si o som de tecido a roçar as espigas.

- Que estás a fazer?

O jovem estremeceu. Conseguia contar pelos dedos das mãos as vezes em que alguém lhe tinha dirigido a palavra.

- Estou a… a cortar as…

A sua voz desvaneceu-se quando, voltando-se lentamente, deparou com Laura e os seus olhos de tempestade. Segurou a navalha com as duas mãos, suplicando ao Deus em que não cria para que a rapariga não reparasse no tremor que as dominara. Qualquer outra pessoa lhe teria lançado uma interjeição de desprezo e recuado à pressa, mas Laura aproximou-se e pegou-lhe nas mãos. O coração do rapaz batia com força tal que ele se afligiu, receando que Laura o pudesse ouvir.

- Não podes segar com uma faca assim! Não tens uma foice?

O órfão encolheu os ombros. A jovem sorriu e voltou-se, mergulhando na seara. Os tremores ainda não o tinham abandonado quando ela reapareceu e lhe estendeu uma foice de lâmina lisa.

- Experimenta com esta. Não é melhor?

Ele acenou que sim. Ela acocorou-se junto dele e fitou-o com curiosidade. Os olhos de Laura eram da cor da trovoada, mas brilhavam como o sol de agosto.

- Como te chamas?

O órfão ficou calado. Mesmo que soubesse a resposta, o nó que se lhe alojara na garganta não lhe teria permitido replicar. A rapariga esboçou um sorriso doce.

- Eu sou a Laura. Costumo ver-te por aí, sozinho... Posso ser tua amiga, se quiseres.

O rapaz voltou a acenar. A jovem julgou captar a sombra de um rubor nas suas faces cavadas. Satisfeita, levantou-se e voltou a embrenhar-se no mar de espigas.

Laura era a sua única companhia, e suprimia a necessidade de qualquer outra. Todas as manhãs o esperava na praça, encostada à fonte, e até ali o acompanhava em cada entardecer. Laura compreendia a natureza tímida do órfão e depressa aprendeu a modelar palavras a partir da sua mudez. Quando o trabalho acabava, sentava-se na terra e ensinava-o a entrançar as flores das ervas daninhas. Entre silêncios e coroas de flores, viam as estações passar.

Passeava o jovem pelas ruas sombrias, numa noite de insónia, quando avistou a figura de Laura, acenando-lhe do alpendre da sua casa de paredes brancas como o luar, incitando-o a         aproximar-se. Hesitante, juntou-se a ela. Envolta num xaile de algodão escuro, com o cabelo solto desenhando arabescos de negrume sobre o seu rosto, Laura parecia fundir-se no manto da noite que os rodeava. Com um ligeiro movimento de cabeça, a rapariga indicou-lhe o céu, e ele    deixou-se envolver pela imensidão do breu estrelado.

- É lindo, não é? Olha para aquelas estrelas. Parece que formam o desenho de uma panela. Esta constelação chama-se Ursa Maior. E aquelas três ali, consegues vê-las? São o cinto da constelação de Órion. Ah, olha, é Saturno!

Um ponto de luz de um brilho extraordinário surgiu no campo de visão do órfão. Subitamente, sentiu o seu rosto contrair-se, como se algo lhe puxasse os cantos dos lábios. Sorria, pela primeira vez.

Laura observava-o, uma centelha alegre bailando-lhe no olhar de cinza.

- Gostas dele? É o meu astro preferido do céu inteiro – e, dizendo isto, abarcava com os braços esguios toda a envergadura da esfera celeste. Ele voltou a acenar com a cabeça, concentrado agora nos contornos de prata que a Lua imprimia nas mãos de Laura, abertas para o Espaço. – Tenho uma ideia: vou chamar-te Saturno. Pode ser?

Os seus olhares encontraram-se, por fim, e ela pôde ver como o do rapaz cintilava em reflexos multicoloridos enquanto um murmúrio rouco emergia de entre os seus lábios:

- Sim.

A este encontro seguiu-se outro, depois outro, e outro ainda. Tornou-se um ritual: os jovens encontravam-se a coberto da teia dos astros e projetavam os seus sonhos no firmamento. Saturno gostava de observar os cristais de luar que coroavam os cabelos de Laura, de a ouvir falar sobre as figuras mágicas nas estrelas e que ela encostasse a cabeça no seu ombro como quem regressa a casa. Se ele pudesse decidir o Destino, ficariam assim para toda a eternidade. Mas não podia, e nada do que é bom dura para sempre.

Foi num fim de tarde de julho. O horizonte sangrava em raios de sol poente e nem uma leve brisa corria para aplacar o calor e as emoções. Saturno parou em frente da porta da casa de Laura, de promessas nos bolsos e coração aberto. Preparava-se para bater quando lhe chegou aos ouvidos uma voz que o fez hesitar: uma voz masculina, áspera, desconhecida, cuspida pela janela aberta.

- Partamos já hoje. Está tudo preparado.

- Assim seja! – respondia Laura, numa excitação quase histérica que Saturno nunca lhe ouvira.

Atingiu-o uma onda de angústia e de questões sem resposta. Quem era aquele homem? De onde vinha? E para onde pretendia levar Laura? O choque pregara-o ao chão. Não se apercebeu dos passos assertivos que se aproximavam da porta. A mãe de Laura emergiu do vão sombrio, uma mulher rechonchuda, de olhos radiosos e cabelos de alcatrão, que lhe ofereceu um sorriso rasgado.

- Olá, querido. Precisas de alguma coisa?

De entre o emaranhado de emoções que lhe toldava o raciocínio, Saturno não conseguiu formular mais do que um balbuciar incoerente que se desvaneceu assim que avistou Laura no reflexo do espelho do aparador. A sua silhueta fina, firme, imaculada, rodopiando nos braços de um homem portentoso e desconjuntado, grotesco. O seu riso de rouxinol deslizava pelo corredor estreito, enterrando-se como punhais nos ouvidos de Saturno. Tudo fora nada, as carícias nas mãos ingénuas, os sorrisos de viés em noites de lua cheia, os ocasos de segredos partilhados no alpendre… Nada. A mãe de Laura continuava a fitá-lo, solícita, da soleira da porta. Saturno voltou-se abruptamente e começou a correr, esmagando sob os seus pés as pedras da rua. O seu coração descia nas trevas como o sol no horizonte.

Nunca mais voltou a vê-la, a ela e aos seus olhos de céu tempestuoso, a ela e aos seus cabelos de azeviche, a ela e à sua pele áspera, tisnada pelo sol. Levou a cor dos dias, o doce dos frutos, o perfume das flores. Restavam pobres analfabetos nas searas, de olhos postos no trigo e cantilenas na ponta da língua. Quase conseguia ver os seus dedos nodosos aflorar as espigas, quase sentia o roçagar da sua saia junto a si… quase. Não apareceu na desfolhada, nem regressou nas Labaredas.

Nunca mais voltou a vê-la, a ela e à sua garganta fremente, a ela e à sua cintura discreta, a ela e aos seus joelhos esfolados. Deixou a vila, levando consigo apenas a foice de Laura e os farrapos negros que tinha no corpo. Começou a procurá-la nos suspiros. Nunca fora bom com conversas. Podia ser que alguém, sentindo a vida escapar-se-lhe por entre os dedos, tivesse por último impulso chamar por Laura, ou deixasse escapar um fiapo de informação sobre o seu paradeiro. Cada noite, um corredor diferente, mas sempre o mesmo: havia sempre uma porta que ia dar a um quarto em que uma alma desprevenida jazia no catre, exalando sonhos. Junto à cabeceira, esguio e mudo como um espectro, Saturno sugava-lhes o sussurro derradeiro, esperando encontrá-la nos laivos finais da lucidez alheia. Em vão. De tantas expirações aspiradas, deixou de envelhecer.

Nunca mais voltou a vê-la, a ela e ao seu andar de quem flutua, a ela e aos seus modos rudes, a ela e à sua postura desenvolta de desafio. Procurava agora na noite e no dia, por entre gritos, gemidos e súplicas, esgares de incredulidade e surpresa dos que não o tinham visto aproximar-se. Nem um sinal da camponesa com pele trigosa e cabelos de noite, nem sequer vestígios da voz pecaminosa que lha roubara para sempre.

Ainda hoje a procura à beira-rio, no bulício das estradas, nos trilhos nevados, entre os lençóis.

Talvez a Morte seja um rapaz com o coração partido.

(Conto vencedor do concurso escolar Meu Belo Douro)

 

14
Mar21

"A Metamorfose" – Franz Kafka

Helena

kafka.jpg

“Quando Gregor Samsa despertou uma manhã na sua cama de sonhos inquietos, viu-se metamorfoseado num monstruoso inseto.”

Tendo acordado dentro do corpo de um grande escaravelho, Gregor leva algum tempo a assimilar o que aconteceu e as consequências que a transformação acarretará para ele e para os que o rodeiam – pois como poderá viver a sua família, sabendo que um escaravelho gigante ocupa o quarto ao lado?

Com o passar do tempo, Gregor acostuma-se à sua nova forma e às alterações que ela implica: a repulsa pela comida fresca, o incómodo da luz ou a capacidade de trepar pelas paredes e pelo teto.

Por outro lado, a sua relação com a sua família degrada-se drasticamente. De facto, só Grete, a sua irmã, se dispõe a alimentá-lo e a limpar-lhe o quarto, com um zelo cada vez menor. O pai, rude e insensível, chega a atacá-lo com maçãs, e a mãe mal aguenta ser confrontada com o seu novo aspeto.

Através do retrato grotesco de uma vítima de um total isolamento social causado pela sua aparência, A Metamorfose ataca o caráter superficial e materialista da sociedade do início do século XX, que não difere muito da dos nossos dias.

“Tocante” é o adjetivo que me parece mais apropriado para caracterizar esta narrativa. Apesar da sua transformação grotesca e do desprezo a que é votado por todos, Gregor conserva a sua índole humana por muito tempo, preocupando-se com o bem-estar da família, com a felicidade da irmã e com a magnitude do incómodo que ele provoca na casa. Ao transformar a personagem principal num inseto, Kafka realça o contraste entre a sua pureza e o caráter medíocre e materialista dos que o rodeiam, os verdadeiros parasitas.

Esta edição (Relógio D’Água, 2005) inclui um prefácio de Vladimir Nabokov, cuja leitura me permitiu não só prestar atenção a certos pormenores (como o abrir e fechar das portas e a repetição do número três), como também ver mais além do que aquilo que parece uma história muito simples.

“Prestemos atenção ao estilo de Kafka. Na sua claridade, no seu tom preciso e formal, em agudo contraste com o assunto tenebroso do conto. Não há metáforas poéticas a adornar esta severa história a preto-e-branco. A nitidez do seu estilo sublinha a riqueza perversa da sua fantasia.” (Vladimir Nabokov) Reconhecendo-se em Kafka uma forte influência de Flaubert, “que odiava a prosa bonita”, não é de espantar que a sua própria escrita seja simples e despojada de artifícios, mas também rica em ironia e nuances de sentido.

Ler A Metamorfose é ter nas mãos um ícone da literatura existencialista do século XX, uma crítica à mediocridade e mesquinhez humanas que tira proveito do absurdo para fortalecer o seu impacto.

07
Mar21

"The Go-Between" – L. P. Hartley

Helena

gobet.jpg“The past is a foreign country: they do things differently there.”

Leo Colston, um inglês de sessenta anos, é atingido por uma onda de recordações quando encontra, entre os objetos que guardou da sua adolescência, o seu antigo diário. Depois de recordar o seu fascínio pelos signos do Zodíaco e as maldições fantasiosas que conjurava nos tempos da escola, Leo conduz-nos até ao cerne da narrativa: a sua estadia em casa do seu amigo Marcus no verão de 1900.

No passado que o narrador revisita, o quotidiano de Marcus difere grandemente daquele a que estava acostumado, fruto da categoria social superior do amigo, e o protagonista esforça-se a fim de se incluir no novo meio. Entre idas à missa, banhos no rio e jogos de cricket, Leo vai-se inteirando dos laços que unem os habitantes de Brandham Hall e os seus visitantes, entre os quais o noivado entre Lord Trimingham, um mutilado de guerra descendente de viscondes, e Lady Marian, a irmã de Marcus. A paixão e devoção cegas que Leo nutre por Marian levarão a que ele não hesite em agilizar a troca de cartas entre ela e Ted Burgess, um agricultor da vizinhança, função que acabará por encurralá-lo num dilema inesperado, com um segredo nas mãos.

Este livro fazia parte do currículo de inglês do 12º ano, na altura em que o meu pai estava no Secundário. Assim, esta leitura partiu da minha vontade de, através da partilha de uma experiência, me “unir” ao meu pai de dezoito anos e fechar uma espécie de círculo. Missão cumprida :)

O primeiro aspeto que me surpreendeu em The Go-Between foi a sua complexidade. Pensava que seria um livro bastante acessível, mas a escrita revelou-se mais intrincada do que a de To Kill A Mockingbird, que eu já considerava um pouco difícil. Como sempre, acabei por me adaptar ao registo à medida que avançava na leitura – o que não impediu que me visse obrigada a reler certos excertos variadas vezes até lhes conseguir encontrar o sentido.

Este livro não é particularmente entusiasmante, mas encerra considerações importantes relativamente à inocência na infância, à incompreensão mútua entre adultos e crianças, à pureza das intenções dos mais pequenos e à manipulação de que, por isso mesmo, podem ser vítimas.

Acompanhando-o ao longo do verão escaldante em que teve lugar o seu décimo terceiro aniversário, testemunhamos a tomada de consciência de Leo acerca dos podres da sociedade e da vida adulta, e o seu desencanto face à hipocrisia e maldade que rebentam a bolha da sua ingenuidade.

“Once a go-between never a go-between”

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