"A Papisa Joana" – Donna Woolfolk Cross
Há doze séculos, em 814, nasceu em Ingelheim, na Saxónia do império carolíngio, uma menina que marcaria profundamente a História da Igreja Católica, apesar de, hoje em dia, quase ninguém memorar a sua existência.
Joana de Ingelheim contrariou desde cedo o protótipo feminino medieval: perspicaz, curiosa, inteligente e determinada, era vista como uma aberração pelo seu pai e pelas crianças da aldeia. Consciente de que as suas capacidades não podiam estar destinadas à vida redutora reservada às mulheres da época, Joana aprendeu a ler com o seu irmão mais velho. Mais tarde, ingressou na escola de Dorstadt, graças às influências do mestre grego Asclépios, que reconhecera nela uma inteligência promissora. Foi em Dorstadt que Joana conheceu Geraldo, o seu primeiro e único amor, apesar de ele ser um homem casado e treze anos mais velho do que ela.
Apesar do desprezo de que era alvo por parte dos seus pares e dos seus superiores, Joana destacava-se pela invulgaridade do seu intelecto e espírito crítico indomável.
Sendo a única sobrevivente do violento ataque normando a Dorstadt, Joana refugiou-se no mosteiro de Fulda, onde adotou a identidade de João Anglicus, um disfarce masculino que lhe proporcionaria oportunidades fora do alcance de qualquer mulher. Graças à sua sabedoria e ao seu altruísmo, Joana foi desbravando o caminho para a concretização da sina da vidente da feira de São Dinis: “sois o que não sereis; o que sereis não é o que sois. (…) Sereis grande, maior do que sonhais e sofrereis mais do que imaginais.”.
Através de uma escrita extremamente simples, acessível e cativante, Donna Woolfolk Cross abre-nos as portas para um dos períodos mais difusos da história, para perpetuar a memória de uma personagem que mergulhou no esquecimento: Joana de Ingelheim. O leitor é embalado ao longo das páginas e cria um laço muito forte com a personagem principal, baseado não só na amizade como também, e principalmente, na admiração.
Experienciamos um espectro muito alargado de emoções ao longo da leitura, uma vez que o enredo inclui desde episódios de amor e superação até episódios de violência e traição, numa construção muito equilibrada de momentos mais parados e momentos de adrenalina.
Este livro é uma autêntica viagem no tempo. Basta percorrer algumas linhas para sermos transportados para a plena Idade Média, com todas as personagens, ambientes, crenças e regras sociais que ela inclui. Isto resulta claramente de um trabalho exaustivo de investigação por parte da autora, que inclui na narração acontecimentos verídicos, personagens históricas, ritos antigos, cenários reais e, até, mezinhas e noções de botânica ancestrais. Enriquecendo ainda mais o processo de aprendizagem que este romance proporciona, Donna adiu um apêndice como esclarecimento em relação a este “mito” da Igreja Católica. O papado de Joana era, na verdade, socialmente aceite até ao século XVII, altura em que a Igreja se dedicou fervorosamente à erradicação de todos os seus vestígios, na luta contra o protestantismo. Apesar de dar ao leitor a liberdade de acreditar ou não na existência da papisa, a autora apresenta uma série de argumentos fascinantes que corroboram a sua veracidade.
O romance é finalizado por uma referência a uma série de mulheres que se infiltraram em instituições masculinas ao longo dos séculos, disfarçando a sua verdadeira identidade em prol do aproveitamento das suas capacidades.
Mais do que uma tentativa de preencher as lacunas de uma história centenária, este livro é um panegírico da emancipação feminina e da importância da persistência na perseguição dos sonhos de cada um, ainda que a concretização destes possa implicar a rutura dos cânones estabelecidos.
“Não podes pôr grades no meu pensamento.”