"O Labirinto dos Espíritos" - Carlos Ruiz Zafón
O volume que remata a saga do “Cemitério dos Livros Esquecidos” é um livro fantástico, sem o qual, como dizia Zafón, é impossível compreender por completo o universo que a tetralogia encerra.
O início da narração data do fim da década de 1950 e é feita na primeira pessoa por Daniel Sempere, o livreiro já conhecido e tão querido pelos leitores da saga do “Cemitério dos Livros Esquecidos”. No entanto, a ação principal da obra é introduzida por uma analepse que nos leva aos bombardeamentos de Barcelona de março de 1938. É num clima de guerra civil que Fermín Romero de Torres regressa clandestinamente a Barcelona, a fim de comunicar a uma amiga de longa data a morte do seu marido. Os bombardeamentos atingiram o edifício em que Fermín se encontrava com a família do falecido. Foi graças a ele que Alicia Gris, a filha do seu colega, sobreviveu à tragédia, ainda que com um ferimento profundo na anca que a faria sofrer durante toda a sua vida. O tronco da história segue os passos de Alicia, o seu recrutamento, por Leandro, o seu mentor, para uma agência de investigação secreta e a atribuição à rapariga de um caso muito peculiar: o desaparecimento do ministro Valls, outrora diretor da prisão de Montjuïc. Juntamente com o capitão Vargas, da Jefatura, Alicia parte para Barcelona, para seguir um rasto que acaba por levá-la a descobertas que estava longe de imaginar. O caso do desaparecimento não é tão simples como parecia e uma teia de relações cada vez maior acaba por abarcar a família Sempere, David Martín, Miguel Ángel Ubach, o advogado Brians e a família de mais um autor maldito de Barcelona, Victor Mataix, pondo em risco a sua segurança e as suas vidas. A névoa difusa do pós-guerra encobriu estratagemas fraudulentos, crimes, assassinatos e jogos de poder que são revelados aos poucos e encerram a solução de enigmas que pairaram durante décadas sobre Barcelona, o labirinto dos espíritos.
Não tenho a mais pequena dúvida de que a leitura deste livro ficará guardada na minha memória para sempre. Isso deve-se especialmente ao facto de, estando eu a meio da leitura do romance, Carlos Ruiz Zafón ter falecido, vítima de cancro. A notícia da sua morte deixou-me profundamente triste, e não pude deixar de chorar umas lágrimas copiosas ao ler a última página e compreender que este foi o último livro de Zafón que li pela primeira vez, dado que já li todos os outros romances que escreveu. Devo dizer que, ainda que a tristeza tenha marcado a leitura do final do livro, não havia melhor maneira de acabar esta primeira viagem pelas obras de Zafón.
Este romance é incrível e cativou-me imenso, tendo lido as suas 845 páginas num período de tempo invulgarmente curto. De facto, este é o tomo mais extenso da saga, assim como o mais intenso e violento (inclusive em termos de vocabulário). O leitor fica colado às páginas desde o primeiro momento, absorvido pela escrita prodigiosa de Zafón, repleta de figuras de estilo e formas de expressão por que me apaixono uma e outra vez. Com o adensar da narrativa, este romance espicaça a nossa curiosidade e impaciência face ao mistério a resolver, assim como à extensa teia de personagens entre as quais vamos descobrindo as ligações, fascinados. A progressão da ação é constante, pelo que não existem momentos mortos ou desnecessários para a construção do mundo do “Cemitério dos Livros Esquecidos”.
As cenas de perseguições, torturas e assassinatos fazem com que os níveis de adrenalina disparem para valores comparáveis aos da visualização de um filme de ação como Tomb Raider. As descrições são tão realistas que até nos esquecemos de que temos um livro nas mãos, porque a ação parece desenrolar-se fluidamente na nossa imaginação.
Algo que admiro imenso em Zafón é a sua determinação em introduzir nas personagens dos seus romances o gosto pela leitura, um hábito a que é conferida especial importância ao longo desta saga.
As personagens roçam a perfeição, tendo cada uma delas um caráter vincado e uma determinada história de vida, mesmo que se trate apenas de uns simples editores referidos num relato ou de um jornalista que providencia alguma informação para a investigação.
A minha personagem preferida é, provavelmente, Fermín Romero de Torres. Para além de ter uma vida marcada por reviravoltas sucessivas, Fermín é uma personagem profundamente culta e bem-disposta, cujas falas me põem sempre um sorriso nos lábios e me obrigam a fazer incursões ao dicionário. É, no fundo, a voz da consciência nesta história, para além de lhe acrescentar momentos de humor que a equilibram.
Ainda que Zafón refira que “Uma história não tem princípio nem fim, só portas de entrada”, recomendo que esta saga seja lida na sequência em que foi publicada (A Sombra do Vento, O Jogo do Anjo, O Prisioneiro do Céu e O Labirinto dos Espíritos).
O único ponto negativo que tenho a apontar neste livro é a quantidade de gralhas que encontrei na edição que li (Editorial Planeta, 1ª edição).
Após a leitura desta obra, reafirmo que Carlos Ruiz Zafón é o meu autor favorito e que tenho uma admiração sem limites pela sua capacidade de criação de uma trama tão bem distribuída e interligada ao longo de quatro magníficos tomos que, decerto, relerei muitas vezes ao longo da vida.
Na falta de vocábulos que me permitam expressar fielmente todas as impressões que esta obra despertou em mim, espero sinceramente que a leiam e que possam sentir-se tão em casa entre as suas páginas como eu.
"As recordações que enterramos no silêncio são aquelas que nunca deixam de nos perseguir."
"Um roteiro é o que as pessoas inventam quando não sabem muito bem para onde vão e desse modo se convencem e a alguns outros patetas de que se dirigem para um sítio qualquer."
"a doença mais difícil de curar é o hábito"
"Doña Lorena dizia que o nível de barbárie de uma sociedade se mede pela distância que tenta pôr entre as mulheres e os livros."
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