No seu conto Triunfal, Aquilino Ribeiro reconta o episódio genesíaco do Pecado Original. Apesar de diferir do texto bíblico em vários aspetos, entre eles a transposição do momento em que Eva morde o fruto proibido para um espaço mítico erotizado em que o pomo proibido consiste na descoberta da sexualidade, Aquilino preserva o papel da mulher como catalisadora da perdição humana. A conceção da figura feminina como culpada pela ruína que a sua curiosidade e lascívia trouxeram à espécie humana encontram-se tanto na mitologia cristã, com Eva, como na greco-romana, com Pandora. Proponho-me, portanto, a explorar as semelhanças entre estes dois mitos basilares para a perceção europeia do mundo (mesmo quando recontados), e a forma como influenciam os papéis de género na atualidade.
O primeiro ponto partilhado por Triunfal e o mito da Caixa de Pandora é o facto de a força divina ser retratada como uma entidade ameaçadora e vingativa. Em Triunfal, o deus veterotestamentário é responsável pelo fim da felicidade plena em que Adão e Eva viviam, no Paraíso. É ao informá-los de que tocar na sua “árvore da ciência” lhes traria inexorável ruína que deus cerceia a plenitude dos prazeres do Éden (“o receio de poderem, involuntariamente, trair o amo flutuava em seu cuidado e já enrugava a face lisa do seu mar de doçuras”). O deus veterotestamentário reveste-se, assim, de uma aura de ameaça e imprevisibilidade. Para além disso, a sua natureza inflexível e castigadora revela-se aquando da descoberta de Adão e Eva do “pomo proibido”: “Por cima deles repercutiu, a breve espaço, um formidável trovão que os atirou um contra o outro a bater os dentes de medo”, e, logo de seguida, a voz de deus “ribombou (…) entre as nuvens”, ordenando-lhes que deixassem o Paraíso e abandonando-os sem piedade às “mil tormentas” do mundo terreno. O mesmo traço castigador caracteriza os deuses do mito da Caixa de Pandora. Neste, Pandora é ela própria o castigo divino, enviado para entre os homens como retaliação pela ousadia de Prometeu, ladrão do fogo divino. Segundo a Teogonia de Hesíodo, Pandora, detentora de todos os dons, terá sido lançada à terra para seduzir os mortais e os conduzir à perdição. Assim, tanto o deus cristão como os deuses da mitologia clássica adotam, nestes mitos, uma postura rígida, quase malévola, que responde à irresponsabilidade dos mortais com o castigo desproporcional da ruína da espécie humana.
Também em ambos os registos se verifica a existência de um objeto proibido, cuja prova ou abertura desencadeiam uma série de consequências para a espécie humana. Em Triunfal, as consequências da sucumbência ao fruto proibido começam por ser enunciadas por deus: “Tu, homem, ias regar a terra com o suor do corpo; e tu, mulher, serias votada à condição da criatura mais frágil e cativa entre as criaturas. (…) Nesse fruto, meus meninos, estão açaimados todos os flagelos… ódio, ciúme, angústia… guerra…”, Já o desastre que se segue imediatamente à desobediência de Adão e Eva é a expulsão do Paraíso e a consequente queda para o mundo povoado por todos os males previamente enunciados. O foco desta narrativa é, portanto, uma incógnita cuja descoberta seria portadora de desgraças – pelo menos, segundo a autoridade divina. Isto, no entanto, não corresponde à conclusão do conto de Aquilino: a Adão e Ea junta-se “A criação inteira”, entoando repetidamente “Amor, és tudo!”. Assim, apesar da violação das ordens divinas e da condenação a uma vida de provações num mundo cruel, a descoberta do pomo proibido (neste caso, da sexualidade) traz ao Homem a possibilidade de fruir do prazer do orgasmo e de uma vida amorosa plena. Daí podemos inferir a defesa por Aquilino do carpe diem horaciano e de um vitalismo fundado na alegria do apego terreno. Por isso o seu conto tem como título Triunfal, uma afirmação da vitória do eros somatizado, causa de castigo divino e fonte de júbilo profano. Também o mito da Caixa de Pandora culmina na libertação de males e na descoberta de um bem. Pandora é enviada para junto dos homens com uma jarra que estava proibida de abrir. Contudo, a sua curiosidade leva a melhor e, quando abre a jarra (uma caixa, em relatos posteriores), liberta todos os males que a humanidade ainda não conhecia: o ciúme, a guerra, a doença, o ódio. No fundo da jarra, resta apenas a esperança. Portanto, a abertura da caixa de Pandora trouxe não só o conjunto de maleitas que assolam a vida terrena, como também a esperança que dá ânimo aos Homens para não desistirem de as enfrentar. Assim sendo, ambos os objetos proibidos (o de Triunfal e o do mito clássico) trazem, com a sua descoberta, um universo de infortúnios atenuado por algo positivo que traz à humanidade um motivo para os suportar.
Por último, Triunfal e o mito da Caixa de Pandora convergem na representação da mulher como veículo da tentação e da ruína. Eva é caracterizada por Aquilino como “um lambisco de primeira”, “curiosa”, “sagaz”, “tentadora e subtil”. É ela que insiste que deus revele aquilo que ela e Adão estão proibidos de descobrir, e ela que enceta a atividade sexual, “Rolando-se enervada e brincalhona” e pedindo a Adão que lhe faça “como as serpentes e como a nuvem”. Adão, por seu lado, é representado como um ser submisso, “cabeçudo” e, portanto, inocente no que toca à violação das ordens divinas. Isto reflete-se, aliás, na escolha de palavras de Aquilino na descrição do ato sexual: enquanto Eva “descaiu sobre nosso pai” e “tentou enlaçar-se” nos seus braços, Adão começou por “estir[ar] a perna num esticão nervoso” e, por fim, “acedeu”. O Génesis tornou-se numa lente através da qual a sociedade europeia construiu as noções de papéis de género, O homem, racional. Opõe-se à mulher, irracional e, por isso, inferior, culpável e perigosa na sua sedução. O mesmo acontece com Pandora, por vezes percecionada como a antecessora de Eva nas histórias de mulheres cuja curiosidade levou a melhor e condenou a humanidade ao sofrimento. Pandora, enquanto produto de uma trama divina com o fim de seduzir os homens e detentora de todos os dons, partilha com Eva o seu poder de enfeitiçar os pobres homens, cujo poder da razão nada pode fazer para resistir às suas artimanhas do plano sexual. Separa-as o nível de envolvimento dos seus pares masculinos no desencadeamento das consequências da sua curiosidade. Se, em Triunfal, o fruto proibido é o próprio ato sexual, de que necessariamente homem e mulher fazem parte, a afronta aos deuses de Pandora é feita sem mais intervenientes, ainda que os males por ela libertados afetem toda a humanidade.
Eva e Pandora, ambas a primeira mulher no mundo e criadas após o homem nas mitologias a que pertencem, são o epítome da figura feminina vencida pela curiosidade que destrói o mundo perfeito que os homens anteriores a elas conheciam. Apesar de a sociedade atual se ter vindo a distanciar dos dogmas religiosos, a preponderância da Igreja Católica europeia ao longo dos séculos e a herança greco-latina na Europa levaram a que histórias basilares como estas se tenham entranhado na mentalidade dos cidadãos. A mulher enquanto culpada pela ruína da humanidade metamorfoseou-se pelo discurso misógino numa criatura menos capaz, menos merecedora de oportunidades e menos preparada para gerir emoções e responsabilidades. Eva, mãe da humanidade, deve, na forma das mulheres de hoje, cumprir o seu “papel de mãe”. Pandora, símbolo da curiosidade irrefreável, deve agora saber controlar-se, não fazer perguntas e não ambicionar a mais do que o seu parceiro. É curioso que a emergência do discurso revivalista do patriarcado orgulhoso coincida com um período em que o estudo das humanidades em geral, e do estudo dos clássicos em particular, é desvalorizado e menosprezado em detrimento das valências científicas, e dificilmente poderá ser visto como uma coincidência.
Em suma, Triunfal de Aquilino estabelece um diálogo claro com o mito da Caixa de Pandora. Em ambas as histórias, as personagens estão sob o poder incontestável de uma divindade atemorizante e vingativa; ambas têm como tema central o conflito entre a curiosidade e a ordem divina, corporizada num objeto (que, em Triunfal, se revela um ato) cuja violação resulta num grande mal, compensado por um pequeno, mas poderoso bem; ambas colocam o fardo da responsabilidade pela desgraça na figura feminina, que em ambas é famosa pela sua sensualidade e astúcia. Ambas, enfim, são parte da herança cultural europeia e manifestação primária do estatuto desigual dos sexos, em relação ao qual ainda há muito a fazer.