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H-orizontes

H-orizontes

22
Out24

“Go Set A Watchman” – Harper Lee

Helena

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Vários anos depois do final de To Kill A Mockingbird, Jean Louise é-nos apresentada como uma jovem adulta, residente em Nova Iorque, que regressa de tempos a tempos a Maycomb, a sua terra natal. É um destes regressos que constitui o enredo de Go Set A Watchman. Muito mudou desde a última vez que tivemos notícias da família Finch: Jem, o irmão de Jean Louise, morreu, vítima de um ataque cardíaco; Atticus envelheceu e vive agora com dores nas articulações, acompanhado pela sua irmã Alexandra; Hank, após anos de relacionamento amoroso com Jean Louise, tenta repetidamente levá-la a aceitar o seu pedido de casamento.

Dois grandes dilemas aguardam Jean Louise nesta estadia em Maycomb. Por um lado, ela sabe que a sua relação com Hank se baseia num amor unilateral a que não consegue corresponder, mas não encontra forma de lho dizer. Por outro, depois de assistir a um conselho municipal onde abundam discursos racistas aos quais Atticus não se opõe, Jean Louise encontra a confusão e o desamparo da sua criança interior, criada numa conceção irrealista do seu próprio pai. Assim, esta é a história de Jeane Louise na sua jornada de descoberta de si mesma e dos que a rodeiam, agora através de um olhar adulto e ciente do mundo vasto que existe para lá dos limites de Maycomb.

“Mr. Stone set a watchman in church yesterday. He should have provided me with one. I need a watchman to lead me around and declare what he seeth every hour on the hour. I need a watchman to tell me this is what a man says but this is what he means, to draw a line down the middle and say here is this justice and there is that justice and make me understand the difference.”

Numa tentativa de surpreender os leitores com uma modelação do caráter aparentemente reto e previsível de Atticus Finch, Harper Lee constrói uma narrativa algo forçada acerca das nuances dos dilemas morais enfrentados por aqueles que crescem sob a influência de uma visão do mundo de que não se conseguem libertar. Neste mea culpa pela narrativa do salvador branco que alicerça To Kill A Mockingbird, Harper Lee cai, em Go Set A Watchman, no extremo oposto: a vilanização de Atticus através do olhar desapontado de Jean Louise, aqui a cicerone da frustração branca dos estados do Norte face ao conservadorismo sulista.

Muito pouco acontece, de facto, nesta narrativa que tenta “ganhar pontos” ao pôr-se do lado das “causas certas”: o fim do racismo, a emancipação da mulher e a resolução de conflitos geracionais. Estas questões não deixam de impulsionar reflexões interessantes, e o desfecho do romance em todas estas dimensões não me desagradou, mas é-me difícil ver Go Set A Watchman como uma continuação natural de To Kill A Mockingbird e como uma narrativa com mais polpa do que a abordagem desses temas, sem um bom enredo que a suporte.

É um conselho comum para aspirantes a escritores que escrevam a história que sentem que precisa de ser contada. Na minha opinião, esta história não é relevante o suficiente para ser contada, tendo resultado na sensação de que se trata de um epílogo longo e pretensamente provocador do clássico que o precede (e em relação ao qual guardo a memória de uma experiência de leitura agradável). 

19
Out24

“Crime e Castigo” – Fiódor Dostoiévski

Helena

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Num apartamento acanhado de S. Petersburgo, Raskólnikov, ex-estudante de Direito, vive na pobreza e no desânimo. Depois de um longo período de reflexão, decide-se a levar a cabo um plano que satisfaria, simultaneamente, as suas necessidades económicas e morais: matar a velha a quem ele e outros desgraçados empenhavam os seus bens. Com isto, Raskólnikov poderia não só obter fundos para retomar os seus estudos, mas também contribuir para um bem maior, libertando a sociedade de uma figura vil.

Contudo, e apesar da sua crença profunda na impunidade daqueles que cometem atos comummente condenáveis com uma finalidade nobre em mente, Raskólnikov mergulha numa espiral de paranoia e culpa, assim que foge do apartamento em que assassinara a prestamista e a sua irmã (que aparecera no sítio errado, à hora errada). A notícia do crime espalha-se por Petersburgo, tanto pelos agentes de autoridade como pelo círculo mais próximo de Raskólnikov, e este não consegue controlar o profundo transtorno que lhe causa qualquer referência ao assassinato. Apesar de ninguém o acusar de nada, Raskólnikov vive sob a impressão de que todos sabem aquilo que tenta esconder.

Enquanto este dilema o consome, outros acontecimentos continuam a preencher a vida daqueles que o rodeiam. Dúnia, a sua irmã, prepara-se para casar com Piotr Petróvitch, um homem rico e sem escrúpulos, numa tentativa de resgatar a família da precariedade. Caberá a Raskólnikov manifestar-se contra estas intenções, quando Dúnia e a sua mãe se mudarem para S. Petersburgo. Svidrigáilov, o homem que manchara a reputação de Dúnia ao culpá-la pelas acusações de adultério de que fora vítima, segue-a até Petersburgo após a morte da sua esposa. Num dos seus passeios ébrios, Marmeladov, um homem que arruinou a família com o seu alcoolismo, morre atropelado por uma carruagem. Apesar da sua situação económica, Raskólnikov decide ajudar a família do morto, da qual faz parte Sófia Semiónovna, uma prostituta de fé inabalável que virá a desempenhar um papel fundamental no desenlace deste jogo das escondidas entre Raskólnikov, as autoridades e a sua consciência.

“Sou ser humano precisamente porque erro. Ainda ninguém chegou a uma verdade qualquer sem antes se ter enganado catorze vezes, ou talvez cento e catorze, e isso é um mérito, neste sentido. Mas não, nem sequer sabemos errar por nossa própria cabeça! Diz-me um disparate, mas à tua maneira, aí dou-te um beijo! Um disparate nosso, à nossa maneira, é quase melhor do que uma verdade alheia; no primeiro caso, somos seres humanos, no segundo somos pássaros!”

Contrariamente ao que receava que fosse ser a minha experiência de leitura de Crime e Castigo, fui sendo embalada ao longo de todo o romance, mesmo com as alterações substanciais do ritmo da narrativa. Devorei o início do livro em pouco tempo – a descrição do assassinato perpetrado por Raskólnikov foi um isco eficaz para o meu interesse. Daí em diante, fui de mão dada com as personagens, desejosa de saber o desfecho da encruzilhada moral que orbitavam. Talvez por influência do final ficcionado que Afonso Cruz sugere para este romance no seu Os livros que devoraram o meu pai, esperava que passasse pela tentativa da personagem principal de aliviar a sua culpa através da perpetração de mais assassinatos. Spoiler alert: não é isso que acontece. No entanto, a alternativa real a esta proposta não me desiludiu. Mesmo quando me deparava com uma sequência narrativa mais ou menos monótona, uma intervenção ousada do perturbado Raskólnikov despertava em mim a urgência de falar com ele, para evitar que se incriminasse. Acabei, portanto, por criar laços de afeto com as personagens, no seu vaivém por São Petersburgo.

A narrativa de Raskólnikov é uma história sobre a impossibilidade de escapar ao código moral que rege a sociedade, por mais racionais que sejam as motivações que tenham levado à perpetração de um crime. Apesar de Raskólnikov acreditar profundamente na defesa da absolvição dos criminosos que agem em função de propósitos nobres, isso não o impede de ser engolido por uma espiral de paranoia que distorce irremediavelmente a sua perceção do mundo. É particularmente interessante que o narrador heterodiegético de Crime e Castigo não adote uma postura aprovadora ou condenadora dos pensamentos e ações de Raskólnikov.  Afinal, é a vida em sociedade que dita a aceitabilidade de um código moral.

Como é hábito em Dostoiévski, a riqueza deste romance vai muito além do conflito moral que atormenta a personagem principal. Rodeiam-na personagens ricas em características e atitudes que fazem delas janelas para a sociedade russa novecentista. Proliferam num ambiente opressor na sua podridão a prostituição, a pobreza, a fome e a degradação moral.

Afinal, e contrariando as previsões de leitores de Dostoiévski que me são próximos, gostei muito de Crime e Castigo (incomensuravelmente mais, aliás, do que de Noites Brancas, do mesmo autor). Ecoo, portanto, a recomendação de gerações sucessivas de apreciadores de literatura russa: leiam Crime e Castigo para espreitarem, sem medo, para o buraco negro da natureza humana.

29
Set24

“Os livros que devoraram o meu pai” – Afonso Cruz

Helena

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Depois de completar doze anos, Elias Bonfim descobre que o facto de ser órfão de pai não se deve a qualquer tipo de acidente que tenha ceifado a vida ao seu progenitor. O seu pai, Vivaldo Bonfim, já não está neste mundo, mas não de uma forma eufemística. Vivaldo migrou, antes de Elias nascer, para o mundo das histórias. Trabalhador no 7º Bairro Fiscal, Vivaldo escapava às burocracias entediantes através dos livros, uma forma de escapismo tão eficaz que acabou por engoli-lo – por devorá-lo.

No décimo segundo aniversário de Elias, a sua avó paterna oferece-lhe a chave para a biblioteca de Vivaldo. A partir daí, Elias lança-se numa busca fervilhante pelo seu pai através das narrativas que este tinha visitado através da leitura. Em paralelo com a sua vida escolar, partilhada com Bombo, o seu melhor amigo, e Beatriz, a sua grande paixão, os seus dias são marcados por viagens de mãos dadas com a literatura. Na Londres de Stevenson, na S. Petersburgo de Dostoievski, na ilha de Wells e no futuro distópico de Bradbury, Elias calcorreia as ruas e conversa com as personagens que tinham conhecido ou ouvido falar de Vivaldo Bonfim.

“Para uns, a raiz é a parte invisível que permite à árvore crescer. Para mim, a raiz é a parte invisível que a impede de voar como os pássaros. Na verdade, uma árvore é um pássaro falhado.”

Li Os livros que devoraram o meu pai, pela primeira vez, quando tinha catorze anos. Desde aí, muito cresceu a minha biblioteca pessoal e a minha enciclopédia mental. Não será, portanto, de estranhar que a minha experiência de leitura tenha sido substancialmente diferente, oito anos e toda uma educação literária depois. Agora que O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, Crime e Castigo, Fahrenheit 451 e A Ilha do Dr. Moreau fazem parte do meu repertório, pude perceber melhor o entretecer destes quatro romances numa trama deslumbrantemente coerente. Só agora abarco na totalidade o alcance da imaginação de Afonso Cruz no prolongamento da vida das personagens de cada um dos romances referidos após o seu fim original (Prendick, de A ilha de Dr. Moreau, terá sido internado num asilo por suspeitar ser ele próprio uma experiência de Moreau e estar a transformar-se num cão, por exemplo). Isto não quer, de todo, dizer que esta leitura tenha como requisito um conhecimento prévio dos livros acima mencionados. Pelo contrário, é uma excelente introdução a algumas obras da literatura canónica, graças ao fabuloso poder de síntese do autor.

As minhas impressões relativamente ao estilo de Afonso Cruz permaneceram, contudo, intocadas, já que reencontrei com o mesmo fascínio a forma original e singela como o autor projeta uma ideia ou uma imagem na página. Ainda que o registo desta narrativa reflita a simplicidade que o seu público-alvo requer, em nada isso faz com que Os livros que devoraram o meu pai seja uma leitura menos deleitosa do que, por exemplo, O Princípio de Karenina.

Percebi, principalmente, que, contrariamente àquilo que me ficara na memória desde a minha última leitura, este não é um livro sobre um menino que anda à procura do pai, nem sobre os problemas da sua vida amorosa, nem sobre a sua relação com o seu melhor amigo. Os livros que devoraram o meu pai é um livro sobre livros, sobre leitores, e sobre como livros e leitores são, em última instância, uma e a mesma matéria – afinal, todos somos feitos de histórias.

12
Set24

“O lodo e as estrelas” – Telmo Ferraz

Helena

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“A todos os que trabalharam em túneis de minas ou barragens e hoje têm silicose.” Esta é a dedicatória de O lodo e as estrelas, um conjunto de entradas de diário do padre Telmo Ferraz que nos transportam para as arribas mirandesas (em particular, as da aldeia de Picote) durante a construção das barragens hidroelétricas do Douro. Através de pequenos quadros, abrem-se as portas das barracas precárias onde viviam os trabalhadores famintos, pobres, doentes e mal pagos. O padre Telmo, observador no terreno, conheceu, acompanhou e ajudou todas as pessoas mencionadas neste livro e muitas mais que não são mencionadas, mas que ainda hoje são lembradas nas pequenas povoações vizinhas das centrais. Esta é a história daqueles que morreram debaixo de telhados de papel, de estômago vazio, depois de dias a tossir sangue.

“Pensei: anquanto chobir, este Probe tem de quemer la lhama de ls caminos, cun l fiel que le trai la lhembráncia cuntina de la mulher i de ls filhos.”

(“Pensei: enquanto chover, este Pobre tem de comer a lama dos caminhos, com o fel que lhe traz a recordação contínua da mulher e dos filhos.”)

Lancei-me para a leitura de O lodo e as estrelas apenas com o conhecimento de que se tratava de um relato fidedigno das condições de vida dos trabalhadores na construção das barragens do Douro. Surpreendeu-me, por isso, quando deparei com uma narrativa constituída pelas entradas do diário do Padre Telmo Ferraz, em vez de com um registo narrativo convencional. Mas, como diz o famoso slogan, “primeiro estranha-se, depois entranha-se”, e rapidamente se me afigurou como a melhor maneira para transmitir a brutalidade da realidade descrita pelo pároco impotente face à miséria absoluta em que viviam os que o rodeavam.

O facto de esta ser uma edição bilingue (em português e em mirandês) enriquece imensamente o conteúdo do livro, já que isso permite que a história se ancore na realidade tanto geográfica como linguística. Os trabalhadores das barragens, vindos de fora, não falavam mirandês – pelo contrário, a discriminação e a troça sentida pelos locais relativamente à sua língua resultou numa tentativa de reprimir o seu uso nas gerações mirandesas seguintes. Hoje, a valorização da língua mirandesa (em muito impulsionada pelo tradutor deste livro, Amadeu Ferreira, de pseudónimo Francisco Niebro) e a sua consequente reivindicação pelos habitantes das terras de Miranda têm vindo a fomentar a tradução de obras canónicas, como a Bíblia, e locais, como O lodo e as estrelas.

A dureza das circunstâncias transmitidas para o mundo pelo Padre Telmo Ferraz é tal que O lodo e as estrelas foi censurado pelo regime salazarista, que vigorava aquando da sua publicação. Esse facto reforça a importância desta leitura, um olhar pungente para o avesso da narrativa gloriosa da revolução hidroelétrica do Estado Novo. Em português ou em mirandês, as palavras deste livro são as estrelas cuja luz ilumina aqueles cujas vidas e cujas vozes se perderam no lodo.

 

29
Ago24

“Slaughterhouse-Five” – Kurt Vonnegut

Helena

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Kurt Vonnegut partiu da sua experiência enquanto prisioneiro de guerra na Segunda Guerra Mundial para escrever Slaughterhouse-Five. Este livro tem como personagem principal Billy Pilgrim, um soldado americano que ganhou a capacidade de viajar no espaço e no tempo após ter sido raptado por extraterrestres do planeta Tralfamadore.

Num vaivém de saltos temporais, abrem-se janelas de onde se pode espreitar o passado e o futuro de Billy. Destacam-se pequenos flashes da sua infância, descrições de quando foi capturado pelos alemães em solo europeu e transportado para um campo de prisioneiros, momentos da sua vida como optometrista, recordações da sua lua de mel, relatos crus da sobrevivência ao bombardeamento aliado de Dresden e a sua sobrevivência a um acidente de avião que desencadeará a sua urgência em contar ao mundo o que aprendeu em Tralfamadore. Mais do que a possibilidade de viajar no espaço e no tempo, interessa a Billy levar às pessoas a conceção da vida mais ampla dos Tralfamadorians: o tempo ocorre simultaneamente, todos os momentos estão estruturados desde sempre para ocorrer da forma em que ocorrem, e a morte é uma circunstância pontual que não interfere com todos os momentos da vida que existem no mesmo plano de tempo, como quem olha para as montanhas numa cordilheira.

Constrói-se, assim, um mosaico de episódios aparentemente desorganizados e finitos, mas, na verdade, coesos e intemporais.

“There are almost no characters in this story, and almost no dramatic confrontations, because most of the people in it are so sick and so much the listless playthings of enormous forces. One of the main effects of war, after all, is that people are discouraged from being characters.”

Quanto mais leio acerca de Vonnegut e da teia de significações que vive por trás da manta de retalhos de Slaughterhouse-Five (Matadouro Cinco na edição portuguesa), mais esta obra me fascina. O meu deslumbramento começou com a descoberta dos acontecimentos de 13 de fevereiro de 1945 em Dresden, que a narrativa aliada abafou durante vários anos e que, atualmente, é um foco de debate pelas questões éticas que levanta. Afinal, milhares de toneladas de explosivos mataram 25 000 pessoas numa cidade comummente considerada segura (menos do que o meio milhão apregoado pela propaganda nazi, mas, ainda assim, um número que nos deixa, no mínimo, desconfortáveis). Vonnegut, enquanto prisioneiro de guerra que testemunhou esta demonstração de suprema insensibilidade humana, transfere para Slaughterhouse-Five o profundo ceticismo resultante do trauma profundo de quem foi obrigado a resgatar os corpos de civis dos escombros de Dresden. Para Vonnegut (e, consequentemente, para a personagem de Billy Pilgrim), a existência da guerra e das atrocidades que a envolvem é inevitável, devido à podridão da natureza humana.  Se isto levou alguns leitores a pôr em causa a mensagem anti-bélica deste romance, parece-me óbvio que se trata precisamente do contrário: Slaughterhouse-Five é um espelho de uma mente lavrada por cicatrizes mal saradas, provocadas por conflitos que condenam gerações jovens inteiras. Jovens, sim, já que, como Vonnegut sublinha no subtítulo The Children’s Cruzade e ao longo da narrativa, são os mais novos que constituem o maior volume de soldados e é a eles que se saqueiam as vidas em prol de um “bem maior” vazio. Billy Pilgrim é, de facto, um anti-herói, mas pela dessensibilização e pela apatia que caracterizam não só alguém que foi enviado para um contexto que não procurou, mas também alguém incapaz de processar a sequência de experiências traumáticas de um prisioneiro de guerra de outra forma que não a sua supressão pela indiferença.

Este é também, portanto, um livro sobre o livre arbítrio (ou a ausência dele). A inevitabilidade da dor, da morte e dos conflitos encontra o seu reflexo na filosofia dos Tralfamadorians. No entanto, se, por um lado, a impossibilidade de escapar à forma como todos os momentos estão estruturados parece castradora, existe conforto na visão da dor como um ponto numa cadeia onde existem simultaneamente muitos outros pontos de momentos de alegria. Mesmo quando tudo parece correr mal, há momentos no passado e no futuro em que esse não é o caso, e esses existem também no presente. Vonnegut transfere essa visão quase cubista da vida para os mecanismos literários que fazem de Slaughterhouse-Five um labirinto de muitas portas, onde se reencontram elementos de alguns episódios noutros que lhes são alheios, padrões de uma tessitura bem engendrada nos bastidores do caos. A cada morte, quer de homens, de lêndeas ou de champanhe: “so it goes”. E inesperadamente, a cada canto, ancorando o leitor à inescapável realidade, uma intervenção de uma personagem seguida de um “That was I. That was me. That was the author of this book.”.

Tal como os livros de Tralfamadore, conjuntos de símbolos em representação de momentos não relacionados que se revelavam objetos de maravilhamento quando olhados como um todo, também Slaughterhouse-Five é um mosaico de episódios aparentemente aleatórios e quase tragicómicos que, à distância de uma análise global, desabrocham num universo de sentidos.

05
Ago24

“The Late Mattia Pascal” – Luigi Pirandello

Helena

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The Late Mattia Pascal, editado em Portugal em junho deste ano pela Relógio d’Água, sob o título O falecido Mattia Pascal, é um romance sobre um homem que morre duas vezes, nenhuma delas correspondendo à morte convencionalmente conhecida. De facto, Mattia Pascal, um homem infeliz, casado com a mulher cobiçada pelo seu melhor amigo na sua infância, azucrinado pela sogra, arrasado pela morte da sua mãe, seguida da das suas duas filhas, fica tão surpreendido como qualquer habitante de Miragno quando encontra, no jornal, durante uma ausência prolongada, a notícia do seu suicídio.

Interpretando a identificação errada do cadáver como um estratagema da sua esposa para se livrar de si, Mattia decide aproveitar o seu estatuto de (teoricamente) morto para iniciar uma nova vida, sem amarras nem preocupações. Pouco a pouco, Mattia constrói e consolida uma nova identidade, a de Andrea Meis, com um passado diferente do seu e, se tudo corresse bem, também um futuro diferente. Contudo, a sua ilusão de liberdade não dura muito, já que depressa se apercebe de que a sua condição o impede de realizar a maior parte das ações que as pessoas vivas tomam como garantidas: adotar um cão, ou procurar apoio das autoridades após ter sido vítima de um furto. Chegado a Roma, hospedado em casa de uma família e apaixonado pela filha do patriarca, manter a integridade da sua nova persona torna-se cada vez mais difícil.

“A deep, painful pity came over me, pity for her and for me, a cruel pity which drove me inexorably to caress her, to caress in her my own pain, which could only find comfort in her, even though she was its cause.”

Pouco antes de iniciar a leitura deste livro, que me foi recomendada por amigos, deparei-me com a informação de que Pirandello, nobel da literatura, era célebre pelo seu trabalho enquanto dramaturgo. Isto fez-me recear que tivesse escolhido a ponta do novelo errada para começar a explorar a sua bibliografia. No entanto, não foi isso que aconteceu. Pelo contrário, a minha leitura de The Late Mattia Pascal foi muito agradável e divertida.

Desde o princípio, o estilo de Pirandello transmitiu-me uma sensação de familiaridade pela sua proximidade ao de Machado de Assis. Isto pode parecer contraditório, já que eu gostei muito deste livro, mas não gostei da minha experiência com o Dom Casmurro de Machado, por este último levar o chamado “derrubar da quarta parede” a um ponto que, a meu ver, é exagerado. Ao tecer comentários direcionados ao leitor, sem que estes se intrometam na relevância da narrativa (ficou-me na memória para a eternidade o excerto em que Machado reconhece que não devia ter escrito o capítulo que o antecedia), Pirandello fez-me rir e sorrir, uma e outra vez, e estabelecer uma afinidade genuína pela voz narrativa.

Fiquei um pouco desapontada com o rumo que a história tomou após a chegada de Mattia a Roma, mas o momentum narrativo que me carregou ao longo do início e do fim do livro acabaram por compensar a estagnação do meu entusiasmo a meio. Isto trata-se, claro, de uma reação completamente subjetiva. Recomendo este livro, tal como me foi recomendado, como uma obra que orbita os conceitos de identidade e de máscara, refletindo acerca da forma como somos condicionados por uma história que nos antecede, quer para nos relacionarmos com os outros, como para estarmos em paz com a identidade que associamos a nós próprios. Parece-me apropriado que a esta leitura se siga a do machadiano As Memórias Póstumas de Brás Cubas.

 

29
Jul24

“Dora Bruder” – Patrick Modiano

Helena

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A partir do anúncio de um jornal parisiense que comunicava o desaparecimento de Dora Bruder, de quinze anos, em dezembro de 1941, Patrick Modiano lança-se num processo de busca obsessiva pelos pormenores da história desta rapariga, com a qual partilha o espaço geográfico em que se movimenta, ainda que a décadas de distância. Pouco a pouco, vão-se desvendando os contornos da figura misteriosa de Dora Bruder, uma adolescente de ascendência judaica que o seu pai decidiu proteger, não incluindo o seu nome no recenseamento obrigatório dos judeus e fazendo-a ingressar no internato do Sagrado Coração de Maria. Foi desta instituição que Dora fugiu, sem se saber como nem por que motivo. Deixa-se ao leitor a liberdade para preencher as lacunas que os dados concretos deixaram em branco, e para fazer o seu papel nesta cadeia de passagem do testemunho que o tempo não deve quebrar.

Este livro cativou-me pelo conceito de que parte e desiludiu-me pela sua concretização. Pensava que o interesse do autor pela história de vida de uma rapariga parisiense judia o levasse a tecer uma narrativa focada nela, em que preenchesse as lacunas e desse corpo a uma história sólida envolvente. Em vez disso, Modiano descreve o seu processo de busca pela identidade de Dora Bruder, um processo bastante centrado nas interseções da vida desta com a do autor e no estabelecimento de relações entre datas que permitem criar um pequeno friso cronológico do que terá sido grande parte da sua vida, sem, no entanto, a aprofundar em pormenores. A fuga de Dora do pensionado do Sagrado Coração de Maria é um dos períodos deixados em branco que, a meu ver, tinham potencial para dar origem a uma narrativa mais densa. As poucas informações acerca dela e o facto de Modiano ter um especial interesse na sua história por partilhar os espaços em que ela se movimentava, mas que o leitor não frequenta, levam a que a relação do leitor com a figura de Dora não seja tão intensa como aquela que seria de esperar. Para além disso, e como consequência da familiaridade do autor com o espaço em que se movimenta, há muitas referências a ruas parisienses que tive alguma dificuldade em visualizar, já que aos nomes das ruas não se associam descrições.

O que achei mais interessante nesta narrativa foram as pequenas histórias de pessoas que pontuaram a pesquisa de Modiano e aqui encontraram uma voz. Os escritores Friedo Lampe e Felix Hartlaub, um apolítico e um combatente a favor de uma causa que lhe tinha sido imposta, são imortalizados em Dora Bruder como vítimas da máquina de morte que colheu as vidas de homens que, como eles, apenas se interessavam pela beleza do pôr do sol e pelos detalhes do dia-a-dia das pessoas comuns. Fica, também, para a história a ação das “amigas dos judeus”, mulheres arianas revoltadas contra as medidas antijudaicas que usavam estrelas de David ao peito e em volta da cintura, em modo de protesto.

Pode ser que eu e Dora Bruder nos tenhamos cruzado numa má altura e que eu possa regressar a ele mais tarde, com outros olhos. No fundo, gostei deste livro e recomendo-o pela forma inovadora como conta uma história que poderia corresponder à de muitas outras vidas perdidas no caos do Holocausto, sem cair em clichés. A dureza do passado é, de certo modo, atenuada pelo facto de o leitor ser confrontado com factos em segunda mão – o autor encontrou estes registos e transmite-nos as suas conclusões. Em suma, é um livro curto que nos leva numa viagem no tempo e no espaço, até aos dias de pesadelo nazi na Cidade Luz.

20
Jul24

“And Then There Were None” – Agatha Christie

Helena

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Oito pessoas que não se conhecem reúnem-se numa ilha isolada na costa de Devon, a propósito em virtude de de um convite por parte de um casal com que nenhum deles é especialmente familiar – os Owens. Quando chegam à mansão minimalista do casal, esperam-nos apenas dois criados, que lhes garantem pouco ou nada saber sobre os donos da propriedade, apenas que estes se juntariam a eles mais tarde. No entanto, nessa noite, um dos convidados morre asfixiado, ainda antes da chegada de qualquer anfitrião. A voz de uma gravação acusa cada um dos convidados de um crime pelo qual nunca foram julgados e que a maior parte deles se esforça por restringir à sua consciência. O círculo de dez figurinhas sobre a mesa de jantar vê-se misteriosamente reduzido a nove.

À medida que os assassinatos se sucedem, os hóspedes começam, em vão, a tentar ludibriar o assassino, que, contrariamente ao que inicialmente pensavam, se encontra entre eles. Mr. e Mrs. Rogers, Vera Claythorne, o Dr. Armstrong, Lombard, Blore, o general MacArthur e Emily Brent cairão um a um, da forma mais incontrolável e imprevisível, no esquema sanguinário do enigmático U. N. Owen.

« He paused: 

"You'll be cold, perhaps, in that thin dress?"

Vera said with a raucous laugh:

"Cold? I should be colder if I were dead!" »

Agatha Christie afirmava que And Then There Were None tinha sido o seu livro mais difícil de construir. Isso é compreensível, já que se distancia dos universos de Poirot e de Miss Marple na medida em que não existe uma personagem externa astuta para juntar as peças da intriga e resolver o mistério. Isto agradou-me sobremaneira, já que costuma incomodar-me a facilidade sabichona com que é costume Poirot chegar-se à frente, no fim dos romances, para explicar detalhadamente todo o sucedido, como se tudo fosse óbvio. Pelo contrário, as figuras da autoridade a que é atribuído o caso destes assassinatos em série interpretam mal os sinais deixados pelos cadáveres na ilha. Assim, por ser um enigma que se desenrola de dentro para fora, compreende-se que tenha sido um romance de elaboração desafiante, mas também que a sua leitura seja extremamente aliciante.

O leitor fica preso neste loop de assassinatos, tentando, em conjunto com as personagens, prever quem vai ser o próximo a morrer e de que forma. O facto de, sabendo isso ou não, dificilmente se poder evitar o encadeamento de assassinatos, aliado à reclusão das personagens numa pequena ilha deserta, confere ao enredo uma forte sensação de claustrofobia e inevitabilidade.

Apenas aponto dois aspetos negativos nesta narrativa: o elevado número de personagens, presas no mesmo sítio e com muitas interações, mas apresentadas todas de seguida logo no início, leva a que seja fácil confundi-las entre si; e a atitude final de Lombard não me pareceu adequada ao desfecho da obra. Fora isso, recomendo este clássico moderno – um mistério intrincado e cativante, como aqueles a que Agatha Christie habituou o seu público.

07
Jul24

“Triunfal”, de Aquilino Ribeiro, e o Mito da Caixa de Pandora

Helena

No seu conto Triunfal, Aquilino Ribeiro reconta o episódio genesíaco do Pecado Original. Apesar de diferir do texto bíblico em vários aspetos, entre eles a transposição do momento em que Eva morde o fruto proibido para um espaço mítico erotizado em que o pomo proibido consiste na descoberta da sexualidade, Aquilino preserva o papel da mulher como catalisadora da perdição humana. A conceção da figura feminina como culpada pela ruína que a sua curiosidade e lascívia trouxeram à espécie humana encontram-se tanto na mitologia cristã, com Eva, como na greco-romana, com Pandora. Proponho-me, portanto, a explorar as semelhanças entre estes dois mitos basilares para a perceção europeia do mundo (mesmo quando recontados), e a forma como influenciam os papéis de género na atualidade.

O primeiro ponto partilhado por Triunfal e o mito da Caixa de Pandora é o facto de a força divina ser retratada como uma entidade ameaçadora e vingativa. Em Triunfal, o deus veterotestamentário é responsável pelo fim da felicidade plena em que Adão e Eva viviam, no Paraíso. É ao informá-los de que tocar na sua “árvore da ciência” lhes traria inexorável ruína que deus cerceia a plenitude dos prazeres do Éden (“o receio de poderem, involuntariamente, trair o amo flutuava em seu cuidado e já enrugava a face lisa do seu mar de doçuras”). O deus veterotestamentário reveste-se, assim, de uma aura de ameaça e imprevisibilidade. Para além disso, a sua natureza inflexível e castigadora revela-se aquando da descoberta de Adão e Eva do “pomo proibido”: “Por cima deles repercutiu, a breve espaço, um formidável trovão que os atirou um contra o outro a bater os dentes de medo”, e, logo de seguida, a voz de deus “ribombou (…) entre as nuvens”, ordenando-lhes que deixassem o Paraíso e abandonando-os sem piedade às “mil tormentas” do mundo terreno. O mesmo traço castigador caracteriza os deuses do mito da Caixa de Pandora. Neste, Pandora é ela própria o castigo divino, enviado para entre os homens como retaliação pela ousadia de Prometeu, ladrão do fogo divino. Segundo a Teogonia de Hesíodo, Pandora, detentora de todos os dons, terá sido lançada à terra para seduzir os mortais e os conduzir à perdição. Assim, tanto o deus cristão como os deuses da mitologia clássica adotam, nestes mitos, uma postura rígida, quase malévola, que responde à irresponsabilidade dos mortais com o castigo desproporcional da ruína da espécie humana.

Também em ambos os registos se verifica a existência de um objeto proibido, cuja prova ou abertura desencadeiam uma série de consequências para a espécie humana. Em Triunfal, as consequências da sucumbência ao fruto proibido começam por ser enunciadas por deus: “Tu, homem, ias regar a terra com o suor do corpo; e tu, mulher, serias votada à condição da criatura mais frágil e cativa entre as criaturas. (…) Nesse fruto, meus meninos, estão açaimados todos os flagelos… ódio, ciúme, angústia… guerra…”, Já o desastre que se segue imediatamente à desobediência de Adão e Eva é a expulsão do Paraíso e a consequente queda para o mundo povoado por todos os males previamente enunciados. O foco desta narrativa é, portanto, uma incógnita cuja descoberta seria portadora de desgraças – pelo menos, segundo a autoridade divina. Isto, no entanto, não corresponde à conclusão do conto de Aquilino: a Adão e Ea junta-se “A criação inteira”, entoando repetidamente “Amor, és tudo!”. Assim, apesar da violação das ordens divinas e da condenação a uma vida de provações num mundo cruel, a descoberta do pomo proibido (neste caso, da sexualidade) traz ao Homem a possibilidade de fruir do prazer do orgasmo e de uma vida amorosa plena. Daí podemos inferir a defesa por Aquilino do carpe diem horaciano e de um vitalismo fundado na alegria do apego terreno. Por isso o seu conto tem como título Triunfal, uma afirmação da vitória do eros somatizado, causa de castigo divino e fonte de júbilo profano. Também o mito da Caixa de Pandora culmina na libertação de males e na descoberta de um bem. Pandora é enviada para junto dos homens com uma jarra que estava proibida de abrir. Contudo, a sua curiosidade leva a melhor e, quando abre a jarra (uma caixa, em relatos posteriores), liberta todos os males que a humanidade ainda não conhecia: o ciúme, a guerra, a doença, o ódio. No fundo da jarra, resta apenas a esperança. Portanto, a abertura da caixa de Pandora trouxe não só o conjunto de maleitas que assolam a vida terrena, como também a esperança que dá ânimo aos Homens para não desistirem de as enfrentar. Assim sendo, ambos os objetos proibidos (o de Triunfal e o do mito clássico) trazem, com a sua descoberta, um universo de infortúnios atenuado por algo positivo que traz à humanidade um motivo para os suportar.

Por último, Triunfal e o mito da Caixa de Pandora convergem na representação da mulher como veículo da tentação e da ruína. Eva é caracterizada por Aquilino como “um lambisco de primeira”, “curiosa”, “sagaz”, “tentadora e subtil”. É ela que insiste que deus revele aquilo que ela e Adão estão proibidos de descobrir, e ela que enceta a atividade sexual, “Rolando-se enervada e brincalhona” e pedindo a Adão que lhe faça “como as serpentes e como a nuvem”. Adão, por seu lado, é representado como um ser submisso, “cabeçudo” e, portanto, inocente no que toca à violação das ordens divinas. Isto reflete-se, aliás, na escolha de palavras de Aquilino na descrição do ato sexual: enquanto Eva “descaiu sobre nosso pai” e “tentou enlaçar-se” nos seus braços, Adão começou por “estir[ar] a perna num esticão nervoso” e, por fim, “acedeu”. O Génesis tornou-se numa lente através da qual a sociedade europeia construiu as noções de papéis de género, O homem, racional. Opõe-se à mulher, irracional e, por isso, inferior, culpável e perigosa na sua sedução. O mesmo acontece com Pandora, por vezes percecionada como a antecessora de Eva nas histórias de mulheres cuja curiosidade levou a melhor e condenou a humanidade ao sofrimento. Pandora, enquanto produto de uma trama divina com o fim de seduzir os homens e detentora de todos os dons, partilha com Eva o seu poder de enfeitiçar os pobres homens, cujo poder da razão nada pode fazer para resistir às suas artimanhas do plano sexual. Separa-as o nível de envolvimento dos seus pares masculinos no desencadeamento das consequências da sua curiosidade. Se, em Triunfal, o fruto proibido é o próprio ato sexual, de que necessariamente homem e mulher fazem parte, a afronta aos deuses de Pandora é feita sem mais intervenientes, ainda que os males por ela libertados afetem toda a humanidade.

Eva e Pandora, ambas a primeira mulher no mundo e criadas após o homem nas mitologias a que pertencem, são o epítome da figura feminina vencida pela curiosidade que destrói o mundo perfeito que os homens anteriores a elas conheciam. Apesar de a sociedade atual se ter vindo a distanciar dos dogmas religiosos, a preponderância da Igreja Católica europeia ao longo dos séculos e a herança greco-latina na Europa levaram a que histórias basilares como estas se tenham entranhado na mentalidade dos cidadãos. A mulher enquanto culpada pela ruína da humanidade metamorfoseou-se pelo discurso misógino numa criatura menos capaz, menos merecedora de oportunidades e menos preparada para gerir emoções e responsabilidades. Eva, mãe da humanidade, deve, na forma das mulheres de hoje, cumprir o seu “papel de mãe”. Pandora, símbolo da curiosidade irrefreável, deve agora saber controlar-se, não fazer perguntas e não ambicionar a mais do que o seu parceiro. É curioso que a emergência do discurso revivalista do patriarcado orgulhoso coincida com um período em que o estudo das humanidades em geral, e do estudo dos clássicos em particular, é desvalorizado e menosprezado em detrimento das valências científicas, e dificilmente poderá ser visto como uma coincidência.

Em suma, Triunfal de Aquilino estabelece um diálogo claro com o mito da Caixa de Pandora. Em ambas as histórias, as personagens estão sob o poder incontestável de uma divindade atemorizante e vingativa; ambas têm como tema central o conflito entre a curiosidade e a ordem divina, corporizada num objeto (que, em Triunfal, se revela um ato) cuja violação resulta num grande mal, compensado por um pequeno, mas poderoso bem; ambas colocam o fardo da responsabilidade pela desgraça na figura feminina, que em ambas é famosa pela sua sensualidade e astúcia. Ambas, enfim, são parte da herança cultural europeia e manifestação primária do estatuto desigual dos sexos, em relação ao qual ainda há muito a fazer.

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04
Jul24

"Triunfal", de Aquilino Ribeiro, e a Ilha dos Amores Camoniana

Helena

No seu conto Triunfal, Aquilino Ribeiro reconta o episódio genesíaco do pecado original, distanciando-se de texto bíblico ao transformar o momento em que Eva morde o fruto proibido na descoberta da sexualidade. O pendor sensual de Triunfal está intimamente ligado à descrição dos elementos da natureza que rodeiam as suas personagens, um espaço mítico erotizado que em muito se assemelha à Ilha dos Amores camoniana. Proponho-me, portanto, estabelecer um paralelo entre Triunfal e o episódio da Ilha dos Amores d’ Os Lusíadas, no que se refere à representação da natureza e da figura feminina que a povoa.

Aquilino parte do ideal católico do Jardim do Paraíso para a descrição do universo de perfeita harmonia em que habitam Adão e Eva. Contudo, a sua propensão para a filosofia do carpe diem e para a fruição dos prazeres terrenos leva-o a explorar o cenário genesíaco através de uma lente sensual. Assim sendo, o lugar onde Adão e Eva viviam “na plenitude de um gozo inapreciável” e onde “tudo era admirável” evolui para um cenário catalisador do ato sexual, o que, na reinterpretação de Aquilino, constituía o próprio pecado original. A natureza impele Adão e Eva para a descoberta do prazer carnal, sendo, portanto, um veículo para a glorificação do “Eros somatizado” que é central ao conto. Imediatamente antes de dar início à secção do clímax de Triunfal, Aquilino estabelece um ambiente que precede a sucessão de elementos eróticos que culminam na descoberta do “pomo proibido”: "Os animais (…) enlanguesciam em sonâmbula lassitude; já duas gazelas, na orla do Ribeiro, se perseguiam, arrifando. Agastadas, as flores caíam para a Terra, e no ar o pólen e os aromas (...) rebatiam-se sobre o solo”. A própria Eva enuncia o papel da natureza na facilitação do ato sexual quando refere que ela e Adão estão “enredados em hera” . É de realçar a escolha da hera como planta que envolve os pais da humanidade, tendo em conta que conota fertilidade, conexão e erotismo. À medida que a intimidade entre Adão e Eva avança salienta-se na natureza que os rodeia “aquela languidez; os bichos a arfar; o colapso das rosas; o estado de sideração do Jardim todo”. É, aliás, a imitação da natureza sensual que Eva pede a Adão imediatamente antes da consumação do pecado original, na versão de Aquilino: “Faze-me como as serpentes e como a nuvem”. Pode, portanto, concluir-se que a natureza é quase uma personagem em Triunfal, dada a sua ação catalisadora da descoberta da sexualidade pelos habitantes humanos do Éden, diretamente influenciados pelos seus elementos imbuídos de sensualidade.

Também a Ilha dos Amores (canto X d’ Os Lusíadas) está repleta de elementos naturais que prenunciam o caráter erótico da última paragem dos navegadores portugueses antes do seu regresso a Portugal. Vénus, adjuvante dos Lusitanos, cria esta ilha como recompensa pela coragem e pelo esforço que os portugueses demonstraram nas suas conquistas. Não são, contudo, apenas as belas ninfas com que Vénus povoa a Ilha o único elemento de sedução que os navegadores lá encontram. A elas junta-se uma conjuntura favorável à emergência do desejo sexual: “Na fermosa Ilha, alegre e deleitosa / Claras fontes e límpidas moravam / Do cume, que a verdura tem viçosa; / Por entre pedras alvas se deriva / A sonorosa linfa fugitiva”. A “fonte” e a “linfa”, aliadas à “verdura (…) viçosa”, remetem para as ideias de fertilidade e vitalidade, que encontram continuidade na descrição de árvores de fruto: “Mil árvores estão ao céu subindo, / Com pomos odoríferos e belos; / A laranjeira tem no fruto lindo / A cor que Dafne tinha nos cabelos. / Encosta-se ao chão, que está caindo, / A cidreira cos pesos amarelos; / Os fermosos limões ali, cheirando, / Estão virgínias tetas imitando”. Esta sequência, rica em sensações visuais e olfativas, estabelece uma relação clara com o ato sexual, particularmente da perspetiva estereotípica masculina: a mulher, prostrada como a cidreira, nua, com os seios semelhantes aos limões descritos por Camões como um elemento de forte apelo sexual. Assim, tal como em Triunfal, a natureza é descrita como uma entidade que favorece a propensão sensual das personagens da narrativa. Tal como o cenário que os envolve impele Adão e Eva à descoberta do prazer carnal em Triunfal, também n’ Os Lusíadas os navegadores portugueses são convidados a desfrutar dele, não só pelas ninfas belas e sedutoras, mas também pelos elementos naturais que põem em destaque o caráter sensual de toda a Ilha dos Amores.

A mulher é, em ambos os textos, representada como um objeto do desejo sexual masculino. Eva, um “lambisco de primeira”, emprega os seus poderes de sedução para levar Adão a cometer com ela o pecado original. Adão, inicialmente, “estirou a perna num esticão nervoso”, mas, por fim, “acedeu”, cedendo à insistência da “tentadora e subtil” mulher. N’ Os Lusíadas, as ninfas colocadas na Ilha dos Amores propositadamente para seduzir os navegadores portugueses também possuem a irresistibilidade da figura feminina talhada para satisfazer o homem. Com efeito. Vénus ordenara-lhes “Que andassem pelos campos espalhadas, / Que, vista dos barões a presa incerta, / Se fizessem primeiro desejadas. / Alguas, que na forma descoberta / Do belo corpo estavam confiadas, / Posta a artificiosa formosura, / Nuas lavar se deixam na água pura.” Eva e as ninfas são a tentação personificada, o recetáculo do homem que elas próprias atraem com sagacidade. No entanto, o seu estatuto enquanto figura feminina que habita um universo povoado por homens não é o mesmo. Eva, em Triunfal, é o veículo do pecado, a incitadora à desobediência e a culpada pela ruína da humanidade. A mulher genesíaca que Aquilino retoma é quem desencadeia o primeiro grande castigo da raça humana: a expulsão do Paraíso e a consequente vida num mundo de “flagelos… ódio, ciúme, angústia… guerra…”. Aquilino atenua a carga pejorativa da figura de Eva através de um final que ressalva as possibilidades que por ela foram abertas aos Homens: o prazer carnal e a vivência plena do amor, que é “tudo”. Ainda assim, e contrariamente ao submisso e inocente Adão, Eva continua a ser aquela que trouxe o pecado, e com ele todas as angústias da existência, à espécie humana. Por seu lado, as ninfas da Ilha dos Amores, desprovidas de más intenções e não acarretando terríveis consequências para o futuro da humanidade, são apresentadas como um prémio para uma fruição plena dos prazeres terrenos. Enquanto a sedução de Eva é contrária às ordens divinas, a das ninfas corresponde ao cumprimento escrupuloso das instruções de uma divindade. Eva, transgressora, contrasta com as ninfas, ofertas benignas. O ato sexual, o terrível pomo proibido de Triunfal, encontra uma valorização positiva n’Os Lusíadas – os deuses não só o toleram, como o incentivam. Em suma, em ambas as obras, a figura da mulher é dotada de um forte traço sensual, mas este resulta em consequências diferentes para a sua perceção no que toca ao estigma da culpa. Eva, a primeira mulher, estabelecerá o precedente para a condição inferior da mulher nas sociedades influenciadas pela leitura do Génesis, enquanto ser incapaz de resistir à tentação, de controlar emoções e de gerir responsabilidades. As ninfas da Ilha dos Amores, desprovidas de poder e de personalidade, não carregam o fardo da culpa da queda da raça humana, embora também contribuam para a conceção misógina da mulher enquanto recetáculo incondicional e alegre do desejo do homem.

Conclui-se, portanto, que, embora pertençam a épocas de produção literária distintas e consistam em narrativas muito diferentes, Triunfal e o episódio da Ilha dos Amores n’ Os Lusíadas se tocam em aspetos que envolvem a representação da natureza e da figura feminina. Em ambos os textos, o cenário natural em que as personagens se movimentam é fundamental para o estabelecimento de um ambiente propenso à atividade sexual, recorrendo-se, por vezes, ao simbolismo. Também em ambos a mulher é representada como um ser fundamentalmente sensual, embora, em Triunfal, seja atribuído à mulher o fardo da culpa da ruína da humanidade, enquanto as ninfas preservam o estatuto de prémio providenciado pelos deuses – “O prémio, lá no fim, bem merecido”.

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